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A apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza e ainda a apropriação de coisa achada

Agenda 19/06/2015 às 15:33

Poder-se-ia entender que comete o crime de apropriação indébita quem se apossa de coisa perdida. No entanto, há decisões pelo furto quando se trata de apossamento de coisa esquecida.

Prescreve o artigo 169 do Código Penal:

Art. 169 - Apropriar-se alguém de coisa alheia vinda ao seu poder por erro, caso fortuito ou força da natureza:

Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Parágrafo único - Na mesma pena incorre:

Apropriação de tesouro

- quem acha tesouro em prédio alheio e se apropria, no todo ou em parte, da quota a que tem direito o proprietário do prédio;

Apropriação de coisa achada

II - quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de 15 (quinze) dias.

O núcleo do tipo penal, caput do artigo 169 do Código Penal,  é apropriar-se. A coisa alheia vem ao agente por erro (dar uma coisa por outra, entregar a pessoa errada, supor inexistente obrigação de entregar).

 Diversa é a ação de “quem acha tesouro (depósito antigo de moedas ou de coisas preciosas, enterrado ou oculto, de cujo dono não haja memória) em prédio alheio e se apropria, no todo ou em parte, da cota a que tem direito o proprietário do prédio”, que é outra espécie de apropriação indébita. É mister que o tesouro tenha sido achado casualmente. Se o tesouro for encontrado por pessoa mandada em pesquisa pelo dono do prédio ou terceiro não autorizado, pertencerá ele integralmente ao proprietário do imóvel, e sua apropriação será furto. O elemento subjetivo é o dolo.

Não se confundam os tipos penais que devem ser estudados com a apropriação indébita em que a ação consiste em apropriar-se de coisa alheia móvel de que o agente tem a posse ou a detenção (aliás, segundo autorizada corrente a lei não usa tais expressões com o significado do direito civil, mas como sinônimas para significar uma efetiva relação de domínio com relação à coisa). Pressuposto do fato do tipo penal presente no artigo 168 do Código Penal é que o agente tenha, anteriormente, à ação criminosa, a posse lícita da coisa. Essa circunstância distingue a apropriação indébita do furto e do estelionato. O furto consiste na subtração, com a qual o agente viola a posse alheia, tirando a coisa contra a vontade do possuidor. No estelionato, a coisa é entregue ilicitamente ao agente pelo lesado, induzido em erro, em consequência da fraude. Mas, no crime de apropriação indébita não se exige que a coisa tenha sido confiada ao agente. Alerte-se que, na apropriação indébita, a posse deve ser exercida pelo agente em nome alheio e que se se tratar de coisa fungível e se o agente a tiver recebido como depósito ou por empréstimo, com obrigação de restituir equivalente em espécie, qualidade ou quantidade (depósito irregular), não pode haver apropriação. Mas pode haver apropriação indébita de coisa adquirida com reserva de domínio (RT 353/92). O crime de apropriação indébita consuma-se com a apropriação, ou seja, no instante em que o agente revela a inversão do título da posse, dispondo da coisa ou retendo uti dominus, restando consumado no momento e no lugar em que o agente devia restituir a coisa ou destiná-la a certo fim e a converte em seu proveito (RF 135/524; 172/484; 174/390). Na apropriação indébita pode ocorrer a tentativa, pois o crime é material. Consistindo a materialidade do fato em apropriar-se o agente da coisa, no todo ou em parte, isto é, dela assenhorear-se, em fazê-la própria, em praticar sobre ela atos de disposição, como proprietário, será possível tal crime, previsto no artigo 168 do Código Penal. Ainda  será possível esse delito contra o patrimônio, quando se tratar de penhor (RT 308/100; 332/107). A restituição da coisa pelo agente ao proprietário será entendida como arrependimento posterior (artigo 16 do Código Penal com previsão de causa de diminuição de pena de natureza obrigatória) e não como exclusão da justa causa para a ação penal.

Trata o artigo 169 do Código Penal  de crimes de menor potencial ofensivo para o qual cabem transação penal e suspensão condicional do processo na forma da Lei n. 9.099/95.  

O pressuposto do delito é a posse ou detenção, decorrendo a transferência da coisa por erro, caso fortuito ou força maior. 

O erro é o falso conhecimento a respeito do objeto, e, com ele, a manifestação de entrega da coisa, esta viciada, não correspondendo àquilo que o sujeito deseja. Tal erro pode incidir sobre a pessoa, sobre a coisa ou ainda na obrigação ou na razão de entrega. Caso fortuito (expressão praticamente sinônima de força maior) é todo o fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir, abrangendo os fatos que envolvam força da natureza (terremoto, enchente etc).

Tem-se os depósitos que são efetuados em conta corrente errada  por engano. Os tribunais têm dado decisões desse teor para o problema; se o próprio agente, dolosamente, provocou o engano, o crime será o de estelionato; se não o provocou, o delito será o do artigo 169, cujo dolo apenas surge quando o agente, após saber do erro, recebe ou dispõe da coisa; se dispõe antes de saber do erro, a questão é civil e não pena (TACrSP, Julgados 76/355). Se recebeu,  por erro, sem saber do engano, mas depois de ciente deste passou a usar, haverá o dolo. Quando feito por erro, na conta do agente, a sua negativa em devolver não caracteriza a se pretendia discutir a questão em juízo civil.

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Ao erro de quem transmite a coisa deve corresponder a boa-fé de quem a recebe. A apropriação indébita somente se configura se o agente, ao se aperceber do erro, decide assenhorear-se do objeto que assim lhe foi confiado. Ensinou Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, parte especial, 7ª edição, pág. 374) se o agente desde o início percebeu o erro e silenciou para apropriar-se da coisa, o crime será o de estelionato (artigo 171 do Código Penal) e não o de apropriação indébita. Necessário que o erro deva ser espontâneo e não provocado, pois nesta última hipótese, o crime será, ainda, o estelionato.

A qualidade e a quantidade podem ser elementos essenciais do objeto e,  consequentemente, substanciais – como a identidade – no negócio jurídico. Como expôs Magalhães Noronha (Direito penal, 2º volume, 12ª edição, pág. 360), se o agente, ciente da subtração, não a devolver, estará configurado o crime. A qualidade assume proporções tais que é o ponto central da relação entre aquelas pessoas.

O sujeito ativo pode ser o que se assenhora da coisa alheia que lhe foi transmitida por erro, caso fortuito ou força da natureza. Sujeito passivo é a vítima do delito, o proprietário, aquele que sofre a perda da coisa. Para Mirabete (Manual de direito penal, volume II, 25ª edição, pág. 281) nem sempre será o autor do erro, podendo este ocorrer na atividade daquele que foi incumbido da entrega, pagamento etc.

Ocorre o caso fortuito quando a causa é estranha ao sujeito. Ocorre a força da natureza quando o evento é determinado por forças naturais, que independem do homem. Em verdade, como disse Magalhães Noronha (obra citada, pág. 361), na linha de Angelotti, para efeitos práticos,  a diferença entre caso fortuito e força da natureza é nenhuma.  

O tipo subjetivo é o dolo.

A consumação se dá quando o agente transforma a posse em propriedade, sendo realizada, portanto, com um componente puramente subjetivo.

Há forma privilegiada, como dispõe o artigo 170, aplicando-se o disposto no artigo 155,  2º do CP (se o crime é primário, e de pequeno valor a coisa, o juiz poderá substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa).

Outra espécie a estudar é a apropriação de coisa achada (artigo 169, parágrafo único, inciso II).

Essa hipótese de crime de apropriação indébita já era prevista pelo Código Imperial (artigo 260) e ainda pelo Código de 1890 (artigo 331, n.3), como modalidade de furto.

O objeto material desse crime é coisa perdida.

O perdimento da coisa deve ter sido casual ou por culpa do possuidor ou do proprietário. Ensina Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 376), que se a coisa foi perdida por ação de quem vem, posteriormente, a “achá-la”, o crime será de furto. Se o agente supõe erroneamente que a coisa que veio a achar está abandonada e não perdida,não há que se falar no elemento subjetivo do tipo (dolo), na medida em que o erro seja plenamente justificado.

Tutela-se o patrimônio e eventualmente a posse.

Sujeito ativo do crime de apropriação de coisa achada é quem encontra e se apropria da coisa alheia perdida. Assim o descobridor deve entregar ao proprietário, se souber quem é ele, ou à autoridade competente, a coisa perdida que encontrar. A pessoa que tiver sido encarregada de encontrar a coisa pode cometer o crime se vier a se apropriar dela. O sujeito passivo desse crime será o proprietário ou mero possuidor. (Mirabete, obra citada, p. 268).

A coisa alheia perdida, objeto material do crime, é aquela que se encontra em lugar público ou de uso público, em condições tais que faça presumir, fundamente, seu extravio. A coisa é dada como perdida quando o possuidor ignorando o lugar onde ela  se acha, não pode, por isso, exercitar sobre o objeto um poder de fato, que é próprio da posse. Fala-se em furto quando a vítima apenas esquece a coisa em algum lugar, para onde retorna logo após, quando o sujeito ativo dela se apossa (RT 545/317). Não é coisa perdida, sendo caso de furto, o pequeno brilhante que se desprendeu de um anel, sem que o percebesse o dono, e foi insinuar-se na greta do assoalho da casa deste.

Mas coisa perdida não é coisa abandonada. Se o agente encontra a coisa em um terreno baldio onde é jogado lixo, é crível tratar-se de coisa abandonada e não perdida, não se aplicando o artigo 169, parágrafo único do CP (RT 778/617).

Comete o delito de apropriação indébita (artigo 169, inciso II, CP) quem se apossa de coisa perdida. Data vênia, contrariamente a opinião de Nelson Hungria (Comentários ao código penal, 1980, volume VII, pág. 155) que vê exemplo de crime de furto, comete  crime  de apropriação de coisa achada,  aquele que vendo o proprietário perder a carteira, dela se apossa pacificamente, isso porque não há na hipótese subtração, mas mera apropriação.

Também  revela-se como apropriação a conduta de quem se apoderou de coisa deixada a suas vistas por pessoas que a haviam subtraído um pouco antes (RT 623/309). Se, porém, o agente provoca a perda da coisa pelo proprietário, poderá praticar o crime de furto com fraude, não apropriação.

Poder-se-ia entender que comete o crime de apropriação indébita (artigo 169, inciso II) quem se apossa de coisa perdida. No entanto, há decisões pelo furto quando se trata de apossamento de coisa esquecida. Se não se sabe quem é o proprietário da coisa, não há crime de furto (RT 529/341).

Se a coisa foi furtada, mas depois abandonada pelo ladrão, tornou-se coisa perdida, não estando mais na posse do proprietário, caracterizando-se o perdimento, razão porque não se pode cogitar de furto, mas só de apropriação de coisa achada (RT 571/346). Entretanto, já se decidiu em contrário (TACrSP, Julgados 81/486).

Já se entendeu que se o agente acha o cheque na rua e o desconta com terceiro, alegando tê-lo recebido, o crime é o do artigo 169, parágrafo único, II, e não o de estelionato (RT 445/403).

Conhecendo o dono deve o agente devolver a coisa achada imediatamente; se não o conhece ou se não pode devolvê-lo a esse a lei lhe concede um prazo de quinze dias para a entrega à autoridade, pois existe uma obrigação civil (artigo 1.233 do CC), devendo se conceder ao descobridor, uma recompensa e as despesas que houver feito com a conservação e o transporte da coisa (artigo 1.234 do CC). A entrega deverá ser feita se o dono não for conhecido, à autoridade policial ou judiciária (artigo 1.170 CPP). Não há crime se o agente deixou de entregar à autoridade, dentro de quinze dias, por negligência e não por dolo (RT 454/449).

O tipo subjetivo é o dolo, devendo ficar positivado o propósito de não restituir. Para tanto, Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 376) fala que o crime se pratica dolosamente, e, em consequência, é indispensável que a omissão na entrega se faça com o animus rem sibi habendi. O fato de não entregar a coisa achada à autoridade no prazo de 15 dias, ou ao proprietário que se tenha tornado conhecido, por si só, não caracteriza o crime (RT 391/309), na linha dos ensinamentos de Nelson Hungria.

Consuma-se o crime no momento e no lugar em que ocorre a apropriação e não no lugar e no momento em que foi a coisa encontrada, entrando ilicitamente na posse do agente. Entende-se que na primeira modalidade (não devolução ao proprietário conhecido) será difícil configurar a tentativa, como ocorre na apropriação indébita comum. Na segunda hipótese (não entrega a autoridade competente), seria a tentativa inadmissível, pois o crime está subordinado à condição.

O crime tem forma privilegiada, aplicando-se o artigo 170 do Código Penal já cogitado.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza e ainda a apropriação de coisa achada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4370, 19 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33444. Acesso em: 24 nov. 2024.

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