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O desafio das ações afirmativas no direito brasileiro

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Agenda 01/11/2002 às 00:00

Sumário: Introdução. 1. Princípio da Igualdade em Sentido Formal e Material. 2. Discriminação. 2.1. Conceito. 2.2. Tipologia. 2.2.1. Discriminações Intencionais Explícitas. 2.2.1.1. Teoria do Impacto Desproporcional. 2.2.2. Discriminações Intencionais Implícitas. 2.2.3. Discriminações Não Intencionais. 3. Conceito de Ações Afirmativas. 3.1. Fundamentos Constitucionais da Ação Afirmativa. 3.2. O Problema das Quotas e as Objeções que se Fazem à Ação Afirmativa. 3.3. Ação Afirmativa no Direito Brasileiro. 3.3.1. Ação Afirmativa e gênero. 3.3.2. Ação Afirmativa e Raça. Conclusão. Referências Bibliográficas.


Introdução

O objetivo do presente trabalho é estudar, brevemente, o problema da possibilidade de implementação de políticas de discriminação positiva – ações afirmativas – no direito brasileiro, tendo em vista as diretrizes constitucionais sobre o princípio da igualdade e sobre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Secundariamente, visa-se, ainda, a uma descrição das medidas afirmativas vigentes e das propostas vanguardistas de sua ampliação.

Cuida-se, inicialmente, da distinção entre o princípio da igualdade formal e o princípio da igualdade material, que conduz ao fundamento teórico constitucional das medidas de desequiparação. Brevemente, estudam-se as modalidades mais comuns de discriminação, seu conceito e tipologia. Outrossim, analisam-se os possíveis fundamentos constitucionais que poderiam ser invocados como suporte constitucional de políticas de ação afirmativa e as críticas possíveis a esse instrumento político de combate à discriminação.

Embora sejam as ações afirmativas definidas de forma abrangente, o estudo concentra-se sobretudo na análise de constitucionalidade das quotas, que encarnam a forma mais difundida e mais radical de ação afirmativa.

Finalmente, são analisados os projetos de lei e leis afirmativas que têm recebido maior destaque nos espaços públicos de discussão como o Parlamento e a mídia escrita. Enfrentam-se, dada a limitação de um trabalho monográfico final de disciplina, apenas dois grandes temas dentre os diversos que são abrangidos pela discriminação positiva: a ação afirmativa de gênero e a de raça. Fazem-se, ainda, nesse tópico, comentários sobre a necessidade de a Corte Constitucional Brasileira enveredar pela análise de prognoses legislativas como condição sine qua non para um controle de constitucionalidade adequado das ações afirmativas.

O tema é inquietante e suscita problemas de aplicabilidade prática e de sustentação teórica. Espera-se provocar o leitor à reflexão e ao menos gerar em sua consciência sérias dúvidas sobre leituras precipitadas que enxerguem no princípio da igualdade formal a panacéia de todas as formas de discriminação.


1. Princípio da Igualdade em Sentido Formal e Material

Na história do Estado de Direito, duas noções de princípio da igualdade têm sido recorrentes nos textos constitucionais. De um lado, na acepção de igualdade formal (1), fala-se na necessidade de vedar ao Estado toda sorte de tratamento discriminatório negativo, ou seja, de proibir todos os atos administrativos, judiciais ou expedientes normativos do Poder Público que visem à privação do gozo das liberdades públicas fundamentais do indivíduo com base em critérios suspeitos tais como a raça, a religião ou a classe social. De outro, sustenta-se que, além de não discriminar arbitrariamente, deve o Estado promover a igualdade material (2) de oportunidades por meio de políticas públicas e leis que atentem para as especificidades dos grupos menos favorecidos, compensando, desse modo, as eventuais desigualdades de fato decorrentes do processo histórico e da sedimentação cultural.

Note-se que o segundo conceito de igualdade absorve e amplia o primeiro (3), pois igualdade formal e igualdade material são manifestações do princípio da isonomia em duas gerações sucessivas de direitos fundamentais. Para ser mais explícito, o princípio da igualdade material não só veda o tratamento discriminatório, como também preconiza a implementação de políticas públicas tendentes a exterminar ou mitigar as desigualdades de fato.

A diferença está basicamente na postura do Estado em relação à igualdade, pois, enquanto o Estado Liberal se contenta em não produzir institucionalmente a desequiparação, o Estado Social, berço da Segunda geração, arroga para si a missão de produzir a equalização como compromisso constitucional.

Nunca, porém, é demais exaltar o caráter tranformador que assumiu a igualdade mesmo no século XVIII, quando da instauração do incipiente Estado Liberal. Com efeito, o princípio da igualdade formal é uma conquista civilizatória da revolução burguesa. Seja na vertente francesa do movimento revolucionário, seja na americana, trata-se de uma idéia-força que aboliu definitivametne os privilégios nobiliárquicos e eclesiásticos, com prejuízo notável, portanto, para uma visão hierarquizada da sociedade ocidental consagrada desde os tempos da filosofia aristotélica (4) em benefício da plena realização das capacidades do indivíduo e da contenção do poder estatal por instrumentos normativos constitucionais. Como bem observa BOBBIO,

"Os testemunhos da época e os historiadores estão de acordo em considerar que esse ato representou um daqueles momentos decisivos, pelo menos simbolicamente, que assinalam o fim de uma época e o início de outra, e, portanto, indicam uma virada na história do gênero humano." (5)

Não seria exagerado dizer que o princípio da igualdade formal corresponde, assim, ao núcleo duro do ideário burguês, por meio do qual a nova classe dominante pôs, de forma definitiva na história do Estado Constitucional, fim à idéia medieval e moderna de que os indivíduos deviam ser tratados segundo o estamento ao qual pertenciam por nascimento. Com ele, portanto, são incompatíveis privilégios fiscais e de jurisdição incorporados à razão de Estado e se instituiu um padrão objetivo de controle sobre o exercício do poder.

Na sua essência, como se nota, está o postulado de que sejam todos os indivíduos tratados como sujeitos iguais de direitos em virtude de serem dotados de humanidade e razão, sendo irrelevante sua classe social, religião, raça ou gênero para esse fim. Como corolário, a lei e o aplicador do direito passam, portanto, a ser mensageiros de uma neutralidade estatal em relação ao destinatário da norma jurídica.

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Por isso, a igualdade dos indivíduos perante a lei, nessa perspectiva, consiste no poder de exigir uma abstenção do Estado no que tange ao tratamento desigual fundado em fatores não racionais e não universalizantes. Observa GILMAR FERREIRA MENDES:

"Como observado, enquanto direitos de defesa, os direitos fundamentais asseguram a esfera de liberdade individual contra interferências ilegítimas do Poder Público, provenham elas do Executivo, do Legislativo ou, mesmo, do Judiciário. Se o Estado viola esse princípio, então dispõe o indivíduo da correspondente pretensão que pode consistir, fundamentalmente, em uma: (1) pretensão de abstenção (Unterlassungsanspruch); (2) pretensão de revogação (Aufhebungsanspruch); (3) pretensão de anulação (Beseitigungsanspruch)" (6)

Nesse sentido, o princípio da igualdade assume uma função de defesa contra atos do poder público, vedando-se qualquer discriminação como forma de impedir a instituição de privilégios incompatíveis com a razão humana. Esse batião de defesa do indivíduo expressa um mandamento constitucional geral obstativo da atividade do legislador e do aplicador do direito, impondo-lhes quase sempre um não fazer. De fato, aquele não pode, segundo critérios arbitrários, estipular tratamento jurídico discriminatório que se baseie na premissa da desigualdade; este, a seu turno, deve ser cego quanto a tais fatores no momento da aplicação do direito.

Todavia, a experiência constitucional do século XX no mundo ocidental demonstrou que, na maioria dos Estados, certos grupos de indivíduos jamais conseguiram atingir padrões aceitáveis de igualdade material, de oportunidades, ou de ocupação de espaços públicos relevantes com base na simples premissa de que a lei não os discriminaria. Sistematicamente, seja em razão do gênero, da compleição física, do credo ou da etnia, dados empíricos demonstraram a utopia da isonomia jurídica como remédio para as desigualdades. Surge a idéia da especialização do sujeito de direito, que BOBBIO destaca:

"Assim, com relação ao abstrato sujeito "homem", que já encontrara uma primeira especificação no "cidadão" (no sentido de que podiam ser atribuídos ao cidadão novos direitos com relação ao homem em geral), fez-se valer a exigência de responder com nova especificação à seguinte questâo: que homem, que cidadão?Essa especificação ocorreu com relação seja ao gênero, seja às várias fases da vida, seja à diferença entre estado normal e estados excepcionais na existência humana." (7)

Exemplo notável da insuficiência da isonomia formal são os países em que o passado colonial legou aos negros, no período pós-abolição, posições inferiores de decisão e participação como os Estados Unidos, Brasil e África do Sul. Preconceitos profundamente enraizados nas culturas nacionais demonstraram sua enorme força de resistência contra o elemento transformador contido na idéia da igualdade formal.

O Estado Social, sucessor do Estado Liberal, nega, portanto, com veemência, a premissa da neutralidade estatal. Não basta, segundo esse novo paradigma de organização dos poderes públicos, garantir um Estado que seja cego para distinções arbitrárias. É insuficiente vedar que a lei condene o indivíduo com base no grupo em que este se inseriu segundo padrões naturais ou culturais. Faz-se mister, nessa perspectiva, implementar, por meio da lei e de instrumentos de políticas públicas, a igualdade de oportunidades, ainda que seja necessário estipular benefícios compensatórios para grupos historicamente discriminados. Essa, portanto, a adequada função de não discriminação dos direitos fundamentais, como anota CANOTILHO:

"Uma das funções dos direitos fundamentais ultimamente mais acentuada pela doutrina (sobretudo a doutrina norte-americana) é a que se pode chamar de função de não-discriminação. A partir do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade específicos consagrados na constituição, a doutrina deriva esta função primária e básica dos direitos fundamentais: assegurar que o Estado trate seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais. (...) Alarga-se [tal função] de igual modo aos direitos a prestações (prestações de saúde, habitação). É com base nesta função que se discute o problema das quotas (ex.: parlamento paritário de homens e mulheres) e o problema das affirmative actions tendentes a compensar a desigualdade de oportunidades (ex.: quotas de deficientes). (8)

Surge, portanto, ao lado da discriminação negativa, proscrita pelo ideário liberal, o conceito de discriminação positiva, isto é, aquela destinada a suprir a situação de desvantagem imposta historicamente a indivíduos por causa de sua origem étnica, de sua religião, compleição física, nacionalidade ou gênero.

2. Discriminação

2.1. Conceito

Segundo o texto da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação ratificado pelo Brasil, discriminação é

"qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública" (9)

Note-se que o tratado internacional citado, ao definir o que seria discriminação, elegeu, como elementos do conceito, aquelas características naturais e culturais do indivíduo que, historicamente, têm sido recorrentes, sem, no entanto, com isso estabeler um sistema taxativo. Do mesmo modo, o simples fato de a definição não contemplar campos da vida privada, o que, inicialmente, situa o problema no âmbito da eficácia vertical dos direitos fundamentais (Estado em face do particular), não obsta a que o conceito se estenda, em determinadas circunstâncias, às relações entre particulares, deslocando-se, portanto, para a eficácia horizontal dos mesmos direitos.

Registre-se, ademais, que a discriminação, no sentido em que definida, assume, sempre, um caráter negativo, de reprovabilidade. Como se verá na tipologia das discriminações, haverá também as legítimas, que se fazem tendo em conta um fim lícito, o princípio da proporcionalidade e a existência de uma real situação de desigualdade que as justifique.

2.2. Tipologia das Discriminações

Formula-se, neste tópico, classificação das discriminações inspirada na tipologia proposta por JOAQUIM B. BARBOSA GOMES no seu fundamental estudo Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade, embora se cuide de inseri-la em dois grandes grupos, as discriminações intencionais (explícitas e implícitas) e as discriminações não intencionais.

2.2.1. Discriminações Intencionais Explícitas

Há discriminação explícita quando o próprio critério discriminatório exsurge com nitidez a um primeiro exame do veículo normativo ou do ato que introduz a exclusão. Todas as modalidades explícitas são discriminações intencionais, mas o contrário não se verifica, pois existem discriminações intencionais implícitas.

Há discriminação intencional (10) quando, deliberadamente, uma pessoa é vítima de tratamento desigual em qualquer atividade pública (acessibilidade a concursos e promoções por exemplo) ou privada única e exclusivamente em virtude da sua raça, cor, sexo, ou qualquer outra característica que a distinga da maioria dominante (11).

O Brasil, de forma inadequada, tenta enfrentar essa modalidade discriminatória por meio da tutela penal, que, como se sabe, impõe o severo ônus da acusação ao Ministério Público. Da mesma forma, em ações cíveis indenizatórias, é do autor o ônus da demonstração do tratamento discriminatório.

Embora a discriminação intencional configure, normalmente, situação de fato ilícita, porque contrária ao princípio da isonomia em sentido formal, em determinadas circunstâncias, pode ser ela admissível, notoriamente quando a discriminação for essencial para o desenvolvimento de uma modalidade de trabalho ou tarefa que exija habilidades técnicas específicas ou que seja mais adequadamente realizada por integrantes de um sexo ou raça. É que, de fato, a natureza do negócio, em algumas situações, pode tornar necessário que haja a seleção discriminatória de indivíduos.

Exemplifica-se, por exemplo, com a exigência que se faz de que uma pessoa, para o exercício da advocacia, tenha recebido o grau de bacharel em direito e sido aprovada no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. A discriminação feita atende a uma finalidade pública e moralmente sustentável, pois é necessário um mínimo de qualificação técnica para o manejo adequado de ações e uma base acadêmica considerável para as atividades em que há operação com o direito.

Cite-se, outrossim, com os mesmos fundamentos, a possibilidade de haver, em um concurso público para agente penitenciário de presídio feminino (12), a exigência, em edital, de que os candidatos sejam todos do sexo feminino, a fim de evitar constrangimentos de natureza moral nas atividades de contato direto como revistas e freqüência a locais onde as presidiárias terão a sua vida privada necessariamente exposta e controlada por terceiros. O mesmo raciocínio com sinal trocado seria aplicável a presídios masculinos, a fim de evitar eventuais abusos sexuais ou violência das mais variadas espécies baseadas na diversidade de gênero.

A própria OIT, dando acolhida a essa teoria das necessidades do negócio (business necessity (13)), elaborou a convenção de n.º 111, a fim de atestar a sua regularidade e conformidade com os princípios gerais de direito.

Ao lado dessa modalidade de discriminação intencional legítima, situam-se aquelas que foram batizadas de discriminações positivas (14) (na terminologia do direito europeu) ou ações afirmativas (terminologia do direito americano).

A discriminação positiva ocorre quando se implementa uma política pública ou privada distributiva destinada a promover a igualdade material de grupos historicamente discriminados.

Essa modalidade de discriminação, concebida nos Estados Unidos e largamente desenvolvida no direito americano, funciona como um meio ativo de impedir que a mera garantia de igualdade formal perpetue desigualdades estruturalmente firmadas e compartilhadas inconscientemente pela cultura de uma sociedade.

Tem, notavelmente, um caráter redistributivo (15) e restaurador e pressupõe, necessariamente, uma desigualdade oficial ou historicamente comprovada. A justificativa (16) para essa modalidade de discriminação parte sobretudo de dois fatos: a) da temporariedade da sua instituição e b) dos objetivos sociais equânimes que são por elas perseguidos. Esse é o tipo de discriminação que se constitui no objeto precípuo do presente trabalho e será, pois, objeto de estudo pormenorizado nos itens subseqüentes.

Deve-se, nesse ponto, justificar a inserção dessa modalidade de discriminação positiva entre as discriminações intencionais. De fato, quando se sustenta que há intencionalidade na discriminação positiva, é claro que esta constatação se refere ao ente público ou privado que procura implementá-la.

Não se desconhece, no entanto, que a discriminação pretérita que motivou a discriminação positiva superveniente pode ter sido intencional ou meramente velada.

O fato, no entanto, é que a desigualdade ou discriminação pretérita projeta seus efeitos sobre o presente, tendo impacto desproporcional sobre os grupos vitimados e preconizam que, deliberadamente, o Estado ou o particular (notadamente empresas) tomem medidas concretas tendentes a mitigar os prejuízos causados anteriormente pela segregação ou exclusão.

2.2.1.1. Teoria do Impacto Desproporcional

Nesse ponto específico, vale tecer breves considerações sobre o instrumento teórico que se concebeu para debelar várias modalidades de discriminação denominado Teoria do Impacto Desproporcional.

Como bem lembra o professor JOAQUIM B. BARBOSA GOMES, a Disparate Impact Doctrine é uma derivação do princípio constitucional da proporcionalidade, tal como concebido modernamente na doutrina como exigência da adequação, necessidade e razoabilidade constitucionais materiais das leis. Segundo essa idéia-força,

"toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semi-governamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material, se em conseqüência de sua aplicação resultarem efeitos nocivos de incidência desproporcional sobre certas categorias de pessoas" (17).

A jurisprudência americana, para avaliar essa modalidade de impacto, vale-se, com efeito, de substratos sociológicos e estatítiscos, fazendo, ademais, quando estritamente necessário, controle de constitucionalidade de prognoses legislativas.

Cita-se, por exemplo, o famoso caso Grigs v. Duke Power Co., em que os autores, negros empregados da empresa ré, se queixavam do programa de ação afirmativa delineado pela empresa (que só o implementou após fortes pressões políticas e sociais do movimento em defesa dos direitos civis) como forma de permitir a contratação e a promoção de integrantes dessa etnia, por entenderem que os critérios elaborados tinham impactos raciais desproporcionais.

O Judiciário Federal da Carolina do Norte, acolhendo a pretensão então manifestada, entendeu que o novo critério dos "testes de inteligência" exigidos para a promoção e admissão, ao invés do antigo critério da mera apresentação de diplomas escolares, favorecia a admissão de brancos, porque a maioria dos negros candidatos havia freqüentado escolas segregadas de pior qualidade. Lembre-se, por ser oportuno, que o caso, datado de 1970, ocorreu apenas 16 anos após o precedente da Suprema Corte – Brown v. Board of Education – que selou o destino da segregação das escolas e da teoria do equal but separate nos Estados Unidos.

2.2.2. Discriminações Intencionais Implícitas (18)

A discriminação, muitas vezes, não assume um caráter explícito ou facilmente identificável pelo agente que impõe a exclusão. Muitas vezes, pode ser até mesmo um efeito colateral de uma prognose legislativa mal feita e, como tal, sujeita ao crivo do controle de constitucionalidade.

Tal ocorre com a denominada discriminação na aplicação do direito (19). Nela, não há um caráter ostensivo da discriminação. Existem, basicamente, dois subtipos dignos de destaque.

No primeiro subtipo, a norma, em si, não contém um elemento discriminatório reconhecível prima facie, mas a aplicação da norma revela resultados disparatados que apontam para o desfavorecimento desarazoado de um grupo em favor de outro. No segundo subtipo, embora o critério discriminatório não seja intencionalmente declarado, existe verdadeiro desvio de finalidade legislativa, pois, sub-repticiamente, sob o pálio de um critério aparentemente neutro, o legislador introduz um critério com propósito discriminatório.

O caso clássico dessa segunda modalidade no direito americano é o Yick Wo (20), no qual foi declarada manifestamente inconstitucional a prática interpretativa da lei que regia o procedimento de permissão municipal para exploração de lavanderias na cidade de San Francisco. As estatísticas demonstravam que, sob a falsa aparência de neutralidade, embora o percentual de pedidos de pessoas de origem oriental fosse da ordem de 25% do total, apenas 1% lograva sucesso, enquanto os 75% restantes conseguiam 99%. No caso, não se julgou relevante a manifestação explícita do ânimo que levou à elaboração da norma, mas a sua aplicação na órbita administrativa.

2.2.3. Discriminações Não Intencionais

A discriminação não intencional decorrente da omissão é a chamada discriminação de fato (21). Essa modalidade de discriminação decorre não de um propósito explícito ou implícito de exclusão de determinado grupo, ou de um ato comissivo administrativo ou legislativo ou de particular, mas sim da indiferença e postura passiva do poder público em face de grupos sociais marginalizados, que são deixados ao relento por uma identificação errônea do conceito de igualdade com o mero conceito de igualdade formal.

Pela falta de implementação de políticas públicas ou privadas capazes de reverter o quadro de exclusão de oportunidades, ocorre uma naturalização das desigualdades, que nem sequer é notada e passa a ser tida como uma forma de discriminação inconsciente, ou, se se preferir uma expressão mais irônica, uma discriminação cordial, fundada em um exercício de poder simbólico pelos agentes da exclusão.

Sobre o autor
Alexandre Vitorino Silva

advogado em Brasília (DF), mestrando em Direito e Estado na UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Alexandre Vitorino. O desafio das ações afirmativas no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -243, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3479. Acesso em: 23 nov. 2024.

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