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O papel da sociedade na política de segurança pública

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Agenda 01/11/2002 às 00:00

INTRODUÇÃO

A banalização da violência urbana e os crescentes índices de criminalidade amedrontam cada vez mais a população brasileira. Não se vive hoje sem o medo constante da agressão física ou moral; não se consegue mais estabelecer um sentimento de segurança plena.

O quadro se agrava com a constatação da incapacidade da polícia em controlar ou diminuir essa onda de violência utilizando-se do sistema tradicional de Segurança Pública. Isso porque a ação isolada das diversas forças policiais e o policiamento repressivo, feito exclusivamente por homens fardados, caracterizado pelo excesso de burocracia e pela má formação dos oficiais, já não são suficientes.

Essa violação diária da ordem pública, contudo, está prestes a extrapolar o limite do suportável pelo homem, se é que já não extrapolou. O caminhar da humanidade está numa encruzilhada: ou se faz alterações sérias nas políticas de segurança pública, ou se chegará ao estado da inviabilidade da vida na Terra.

Conhecer e estudar o sistema constituem o primeiro passo na luta contra a violência. Mas não bastam. É preciso o engajamento sincero e comprometido dos que acreditam na mudança. É preciso que se elaborem medidas realmente eficazes e possíveis de serem executadas, despidas de toda e qualquer intenção eleitoreira. É preciso uma mudança de mentalidade, em que as pessoas não aceitem passivamente a violência, e realmente lutem contra ela. É preciso que se restaurem valores éticos e morais, de preservação da dignidade humana. É preciso que as pessoas se unam em prol de um mesmo objetivo. Enfim, é preciso uma mudança de paradigmas, o que requer tempo e esforço.

Nessa busca pela construção de uma nova consciência é que se pretende dar ênfase à responsabilidade da sociedade pela segurança pública, prevista no art. 144 da Constituição Federal. Para tanto, revelam-se primordiais os programas de policiamento comunitário, que estreitam as relações entre a polícia e a comunidade e incentivam uma política de segurança preventiva.

Observando o trabalho dos conselhos comunitários, verifica-se a real possibilidade de discussão entre a comunidade e os agentes de segurança acerca dos problemas locais. É uma atividade que viabiliza a mediação de conflitos, a proposta de soluções por quem mais conhece as dificuldades quotidianas, o monitoramento das atividades policiais, bem como a elaboração conjunta da política de segurança e de prevenção do crime. Ademais, o policial revela-se amigo da população, gerando a confiança mútua essencial ao combate à criminalidade.

Diante disso, e com o intuito de encontrar soluções efetivamente fortes, será feita uma abordagem alternativa da questão da segurança, através de um estudo detalhado sobre os programas de policiamento comunitário, com destaque ao existente no Ceará, realizado pelos Conselhos Comunitários de Defesa Social, hoje coordenados pela Secretaria de Segurança Pública e Cidadania do Estado.

Ciente de que não existem fórmulas milagrosas para combater os problemas sociais, pretende-se, pois, contribuir para uma melhoria na segurança dos cidadãos, na tentativa de resgatar valores de convivência pacífica e harmoniosa entre as pessoas.

A partir da conjugação de esforços e do apoio da ação da sociedade civil organizada, será proposta uma nova forma de pensar a segurança pública, uma nova forma que depende, antes de tudo, da vontade sincera e consciente de cada indivíduo que integra a sociedade.


2. UM PROBLEMA CHAMADO VIOLÊNCIA

Nos dias atuais, a violência pode ser considerada um dos maiores problemas da sociedade. Seja a doméstica, nascida no seio familiar, seja a proliferada nas ruas, seja a praticada pelos policiais, dentro ou fora dos cárceres, é um dos males mais assustadores e preocupantes. Nas palavras de Orlando Fantazzini [1], presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara do Deputados, a violência no Brasil já assumiu "proporções de guerra".

De acordo com dados publicados no Boletim IBCCRIM nº 113, de abril deste ano, a violência figura como a segunda preocupação da população brasileira, perdendo apenas para o desemprego (SOUZA, 2002:09). O mesmo dado pode ser encontrado no relatório oficial brasileiro sobre desenvolvimento sustentável, divulgado em junho deste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, que constatou um preocupante crescimento da violência. No ranking da UNESCO, o Brasil ocupa o 3º lugar no índice de assassinatos de jovens entre 15 e 24 anos, tendo havido um aumento de 48% na última década.

Os números são assustadores. Uma pessoa é assassinada a cada 13 minutos no Brasil. Em 1999 houve 9.027 assassinatos na Grande São Paulo, que tem 17 milhões de habitantes. É um número de mortes maior do que o da guerra de Kôsovo. Em 1994, 34 chacinas mataram 134 pessoas. Em 1999, 306 pessoas morreram em 88 chacinas. Nesse mesmo ano, a quantidade de roubos em São Paulo foi de 110.098.

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As páginas policiais são as mais lidas e a mídia que explora o assunto tem o público mais fiel. As reportagens mostram cada vez mais a guerra civil em que se transformou o dia a dia do cidadão brasileiro:

"O taxista (...) foi assaltado sete vezes, obrigado a mudar de casa e de bairro e, ao chegar do trabalho no atual endereço, encontrou a filha em pânico porque havia sido ameaçada de morte. Um colega da menina, de 15 anos, sofreu abuso sexual dos 6 aos 11 anos, praticados por um policial militar. Nos últimos 12 meses a adolescente testemunhou uma execução e perdeu quatro amigos assassinados. Um dia antes de contar sua história (...), havia sofrido uma tentativa de estupro. Ela canta numa igreja freqüentada pela diarista (...), de 69 anos, que pariu seis filhos. Perdeu quatro por morte violenta, dois deles envolvidos com drogas. Dos que restaram, um passa o dia sentado no sofá da sala em depressão. A filha mudou-se para outra cidade, onde protege a nora e os netos, expulsos pelos matadores dos próprios filhos" (BRUM, 2002:52).

Cada vez mais, pessoas se matam nas ruas, nas avenidas e nas favelas. Os estádios de futebol são palcos das guerras mais sangrentas. Assaltos a bancos acontecem diariamente, menores morrem por causa de um aparelho celular, mulheres são estupradas a toda hora, testemunhas de crimes são fuziladas. Nos acidentes de carro, não se presta socorro. Não mais se respeita mulheres grávidas, idosos e crianças, muito menos templos religiosos, escolas e transportes públicos. Seqüestros, relâmpagos ou não, viraram rotina. Frauda-se o Fisco e a Previdência Social dia após dia, assim como superfaturam-se obras públicas, desviam-se verbas do orçamento fiscal e traficam-se drogas. É a neobarbárie.

Diante desse quadro, essencial que se busque a origem de toda essa violência. Porque as soluções mais eficazes são aquelas que combatem as causas dos problemas, e não apenas seus efeitos externos. Ou seja: a solução está na adoção de medidas preventivas, corretivas e educacionais, de resultados duradouros.

A miserável condição em que vive a maior parte da população brasileira, oriunda da omissão do Poder Público, pode ser considerada a primeira grande razão da explosão da violência. É culpa do modelo de sociedade imposto pela Globalização, baseado numa lógica dos mercados, que não valoriza o ser humano e estimula a competitividade e o individualismo, um modelo formado em castas, que gera a concentração de renda e produz as desigualdades sociais. O tráfico de drogas também é responsável pelo número enorme de assassinatos ocorridos, principalmente contra jovens.

Os meios de comunicação, ao divulgarem de forma exacerbada a violência, e ao banalizarem-na em filmes, novelas e desenhos animados, também fazem nascer mais violência. A mídia introjeta nas mentes de cada cidadão uma cultura de terror, dizendo a todos que não há solução para o problema, só restando a aceitação mansa e pacífica.

Da mesma forma, as políticas de direito penal máximo e "tolerância zero" dificultam a construção de soluções eficazes. A visão do Estado paternalista, aplicador de penas cruéis aos delinqüentes, já não subsiste. A sociedade que se contenta em encarcerar aquele que cometeu o crime esquece que ele um dia retornará ao convívio social, de forma muito mais violenta no que depender do atual sistema carcerário brasileiro.

Ao falar sobre violência carcerária, o prof. César Barros Leal, em seu livro Prisão - Crepúsculo de um Era, aponta todos aqueles que contribuem para a atual situação do sistema.

"A concorrer para essa ultrajante realidade estão a incúria do governo, a indiferença da sociedade, a lentidão da justiça, a apatia do Ministério Público e de todos os demais órgãos da execução penal incumbidos legalmente de exercer uma função fiscalizadora, mas que, no entanto, em decorrência de sua omissão, tornam-se cúmplices do caos" (LEAL, 1998:69).

A violência familiar muito contribui para o crescimento da violência. O exemplo dos pais tem bastante influência na formação dos filhos, que tendem a perpetuar a agressividade vivida em casa. É a violência praticada contra a mulher, a criança e o adolescente, dentro do lar, que raramente torna-se pública, devido ao medo das vítimas de sofrerem nova violência.

"Um arquétipo social violento (...) gera indivíduos com problemas de conduta e dificuldades de relacionamento com o meio, indivíduos que nas ruas serão violentos e, posteriormente, marginalizados..." (BRAZ, 2001: ?).

O que ocorre é a perda dos valores essenciais à boa formação do ser humano. Os conceitos éticos e morais deixaram de ser transmitidos pela educação familiar. Porque essa educação é falha. O castigo corporal começa nos primeiros anos da infância, e a violência psicológica é praticada durante todo a formação do indivíduo, principalmente com ameaças e chantagens. O que dizer então dos casos de abuso sexual cometido pelos pais?

José Vicente da Silva Filho, coronel da Polícia Militar, resume a parcela de culpa da sociedade

"a sociedade tolera a desordem, incentiva comportamentos desviantes e soluções agressivas aos corriqueiros conflitos humanos, além de consumir produtos de entretenimento que exploram a degradação do caráter humano. Dando audiência a programas xulos, oferecendo mercado para a prostituição, contrabandistas e traficantes, mostrando no desrespeito e na violência do trânsito o quanto despreza a cidadania, a sociedade mais que se omitir, passa a ser mantenedora e incentivadora do clima permissivo da transgressão da impunidade" (FILHO, 1998:7).

Em síntese, a violência está ligada a vários outros problemas sociais. Suas causas são inúmeras, o que a torna mais difícil de ser combatida.


3. O CLAMOR DA SOCIEDADE

Em face dessa onda de violência, que transformou a vida cotidiana brasileira numa verdadeira guerra civil, a sociedade brada por soluções. Não por um modelo mágico, nem por alternativas eleitoreiras, mas por uma política verdadeiramente séria e comprometida com o social.

Algumas esferas já começaram a se mobilizar. Em 1989, em Yamoussoukro, Costa do Marfim, a UNESCO iniciou um programa chamado "Cultura de Paz", com o objetivo de mobilizar o maior número de pessoas para contribuir para uma cultura de paz. Posteriormente, através do "Manifesto 2000 por uma cultura de paz e não-violência", tentou passar a todos os países a idéia de que cada ser humano é responsável por traduzir os valores, atitudes e padrões de comportamento que inspiram uma cultura de paz na vida diária.

Em 2000, através da Medida Provisória nº 2029, foi editado o Plano Nacional de Segurança Pública. Dentre as 124 medidas, destaca-se a preocupação com o engajamento de toda a sociedade na luta pela diminuição da violência, como bem demonstrou Samuel Buzaglo:

"O grande desafio desse plano é justamente obter o apoio da população, porque se mais esse plano cair no descrédito, talvez se percam de forma irreversível as rédeas da segurança pública" (BUZAGLO, 2001:52).

Assim, tenta-se implantar um novo paradigma, um novo modelo que preze o envolvimento comunitário. O estabelecimento de políticas descentralizadoras e a criação de conselhos de segurança pública nos âmbitos federal, estadual e municipal, bem como a instituição de agentes comunitários de segurança pública e de justiça, com a finalidade de propiciar a efetividade das decisões judiciais pela atuação dos próprios cidadãos, são propostas do referido Plano.

No mesmo sentido, foram traçadas estratégias comunitárias, com o intuito de estimular os debates entre os órgãos de segurança e a sociedade. Destaca-se ainda a obrigatoriedade de inclusão de um serviço comunitário nas universidades de todo País, de modo a estimular o contato dos jovens com a realidade social dos excluídos.

Igualmente, os itens 89, 91 e 92 do Plano sugerem a criação de Centros Integrados de Cidadania em áreas críticas das grandes cidades e de um Centro Nacional de Formação Comunitária, com o objetivo de capacitar líderes comunitários.

Neste ano, a 7ª. Conferência Nacional de Direitos Humanos teve como tema "Um Brasil sem violência: tarefa de todos". O Senado Federal aprovou em junho deste ano seis projetos de combate à violência. O Governo Federal criou, no último dia 05, uma ação emergencial voltada para os jovens, com ênfase nas medidas de prevenção, utilizando como base as escolas e os projetos sócias já existentes.

Percebe-se, pois, a preocupação de vários setores da sociedade em resolver o problema da violência. Pacotes, planos, conferências, projetos e campanhas estão sendo realizados com essa finalidade. No entanto, sem a interferência de cada parte integrante da sociedade, a partir de uma conscientização de que a responsabilidade pelos problemas sociais é de todos, dificilmente todas essas ações obterão êxito.


4. SEGURANÇA PÚBLICA

4.1. CONCEITUAÇÃO CLÁSSICA

Numa ótica tradicionalista, a função maior do Estado é prestar segurança (do latim secure, significa "sem medo") aos seus cidadãos, garantindo-lhes a sua incolumidade física e moral, reflexo de uma convivência pacífica e harmoniosa entre os indivíduos. Sob esse prima, o conceito de segurança pública está ligado ao de poder de polícia, estando a ordem pública assimilada à ordem interna do grupo.

Com o surgimento do chamado Estado de Direito, o poder de polícia sofreu limitações, mas o Welfare State fez ressurgir a segurança preocupada com todos os campos da vida humana, em níveis nacional e internacional. O poder de polícia, que incorporou valores sociais, assim passou a ser definido:

"…atividade administrativa do Estado que tem por fim limitar e condicionar o exercício das liberdades e direitos individuais visando a assegurar, em nível capaz de preservar a ordem pública, o atendimento de valores mínimos da convivência social, notadamente a segurança, a salubridade, o decoro e a estética" (NETO, 1998:71).

Moldou-se, pois, um novo conceito de segurança pública. Dentre as várias correntes, firmou-se como consenso "ausência de perturbação e disposição harmoniosa das relações sociais" (NETO, 1998:71). Então, segurança pública foi conceituada como a garantia da ordem pública interna [2], sendo esta

"…o estado de paz social que experimenta a população, decorrente do grau de garantia individual ou coletiva propiciado pelo poder público, que envolve, além das garantias de segurança, tranqüilidade e salubridade, as noções de ordem moral, estética, política e econômica independentemente de manifestações visíveis de desordem" (NETO, 1998: 81).

Em outras palavras, segurança pública seria a garantia dada pelo Estado de uma convivência social isenta de ameaça de violência, permitindo a todos o gozo dos seus direitos assegurados pela Constituição, por meio do exercício do poder de polícia.

Em todo caso, percebe-se sempre manifesta as noções de manutenção do estado de ordem e repressão a tudo o que ameace a paz social. Da mesma forma, o elemento Estado se faz presente em todas as conceituações, sendo a polícia o único agente capaz de combater a violência e a única responsável por garantir a segurança. Com origem em um regime totalitário, a polícia clássica paternalista tem a função de reprimir, e é orientada contra o cidadão, e não a favor dele.

Para Luís Antônio Francisco de Souza, a maioria das instituições policiais do País ainda atua nesse sentido. Com a política ultrapassada de capturar criminosos, demonstram a incapacidade de prever os problemas da comunidade e de planejar técnicas preventivas, da mesma forma que falham por não trabalharem em conjunto com essa mesma comunidade.

Em artigo publicado no Boletim do IBCCRIM, afirma enfaticamente:

"O clamor público por uma política de segurança que, ao mesmo tempo, controle a criminalidade, aumente o sentimento de segurança do cidadão e dê respostas adequadas às demandas de prestação de serviço não parece ter sido suficiente para que houvesse uma mudança de qualidade na implementação de mudanças permanentes. A polícia, em nossa democracia, ainda concebe o público como uma ameaça ou um obstáculo" (SOUZA, 2002:9).

4.2. CONCEPÇÃO MODERNA: O PAPEL DA SOCIEDADE NA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA.

A Constituição Federal de 1988 trouxe uma inovação terminológica no que tange à responsabilidade pela segurança pública [3]. Consoante o caput do art. 144 da Carta Magna, é dever e responsabilidade de todos.

Art. 144 – "A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos..." (BRASIL, 2002:68) (grifou-se).

Isto significa que todos os cidadãos brasileiros são responsáveis pela segurança de toda a sociedade. Portanto, mais do que uma atitude cidadã, zelar pela integridade física e moral dos indivíduos, bem como pela manutenção da ordem pública, é um dever constitucional.

A constitucionalização dessa responsabilidade, no entanto, apenas normatiza uma regra lógica. Ora, atribuir aos integrantes de uma comunidade a obrigação de velar por sua própria segurança é uma questão de bom senso. Porque a sociedade tem o dever de se interessar e lutar por todas as causas que lhe dizem respeito, estando ultrapassado o entendimento no qual o Estado, e apenas ele, é o responsável pelos problemas sociais.

Sobre a autora
Roberta Laena Costa Jucá

acadêmica de Direito em Fortaleza (CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JUCÁ, Roberta Laena Costa. O papel da sociedade na política de segurança pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3525. Acesso em: 14 nov. 2024.

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