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O debate sobre a “Lei Ópia” e o ópio em que a mídia brasileira ficou viciada

Agenda 04/01/2015 às 19:34

A renovação da imprensa brasileira poderá ser, paradoxalmente, fruto de um debate ocorrido em Roma séculos antes de Cristo.

Ao discutir questões referente a censura, liberdade de imprensa e destinação das verbas de publicidade da União, BB, CEF e Petrobrás com um colega, sugeri a meu interlocutor que estudasse o capítulo sobre a revogação da Lei Ópia no livro “Ab Urbe Condita Libri”, de Tito Lívio. A referência me pareceu pertinente, mas por amor ao debate me sinto na obrigação de me estender um pouco mais sobre a citação que fiz.

A obra monumental de Tito Lívio foi publicada no século I dC. Dos 142 livros originais apenas 35 chegaram até nós. A Edição brasileira de “Ab Urbe Condita Libri”, feita pela Paumape em 1990, tradução de Paulo Matos Peixoto, tem 6 volumes de aproximadamente 400 páginas cada. O livro registra a história de Roma desde a fundação, narrando os conflitos internos, as vitórias e derrotas militares, conquistas territoriais, mudanças na estrutura política da cidade, etc… Tito Lívio também faz referências aos costumes, religião, política e cultura jurídica do povo romano.

Os debates sobre a Lei Ópia ocorreram ao fim da II Guerra Púnica. Esta Lei, que havia sido aprovada no início da guerra contra o exército cartaginês de Aníbal Barca, proibia as mulheres romanas de comprarem e usarem objetos de luxo e de dirigirem carroças pelas ruas de Roma. O debate foi provocado pelas próprias mulheres, que começaram a exigir a revogação da Lei bloqueando as ruas da cidade.

Tito Lívio narra os principais lances da disputa, reproduzindo os discursos feitos no Senado pelos representantes das duas facções. Catão o velho sustentou a necessidade de preservação da Lei Ópia com vários argumentos. Dentre eles, afirma que “Tal como é necessário conhecer as doenças antes dos remédios, as paixões nascem antes das leis destinadas a refreá-las. O que provocou a lei Licínia sobre o máximo de cinco jeiras de terra senão a paixão desenfreada das pessoas em ampliar suas propriedades? O que engendrou a Lei Cíncia sobre as doações e presentes senão o fato de a plebe já começar a ser tributária do Senado e a pagar-lhe foros?” (p. 367, volume quarto). Um pouco mais adiante, se referindo especificamente a questão do luxo, Catão diz “Querei vós, quirites, inspirar a vossas esposas semelhante rivalidade, para que as ricas aspirem ao que nenhuma outra possa conquistar e as pobres, não querendo ser desdenhadas em virtude dessa diferença, façam esforços que ultrapassem seus meios? Ai está, a partir do instante em que começarem a achar vergonhoso o que não é, não considerarão mais vergonhoso o que deveria sê-lo. Aquela que puder comprará com sua fortuna; aquela que não puder pedirá ao marido. Infeliz do marido, quer ceda quer não ceda… pois então verá dado por outro aquilo que não deu.” (p. 368, volume quarto).

O defensor da revogação da Lei Ópia foi Lúcio Valério. O principal argumento que ele utilizou para defender sua tese foi “Se leis votadas não para um tempo, mas para todos os tempos, em vista de interesses permanentes, não devem, confesso, ser ab-rogadas - salvo as que a experiência condenar ou se tornarem inúteis pela situação dos negócios públicos -, ao contrário, as leis reclamadas por determinadas circunstâncias eu as considero, por assim dizer, mortais e sujeitas a mudar com as próprias circunstâncias. As leis votadas durante a paz são, o mais das vezes, ab-rogadas pela guerra; as votadas durante a guerra, pela paz; enfim, tal como na condução de um barco esta manobra serve em tempo bom, aquela em plena tempestade.” (p. 370, volume quarto). Um pouco adiante, Lúcio Valério faz a seguinte ponderação “Nem magistraturas, nem triunfos, nem insígnias, nem recompensas guerreiras ou butim podem ser concedidos às mulheres; a elegância, as tinturas, as roupas, eis as insígnias das mulheres, eis oque faz sua alegria e sua glória, eia o que nossos ancestrais chamaram a elegância feminina. Em caso de luto, que tiram elas senão a púrpura e o ouro? Findo o luto, que voltam a usar? Para as ações de graças e as preces públicas, que envergam a mais a não ser uma roupa de maior destaque?” (p.373, volume quarto).

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A Lei Ópia foi abolida pelo Senado de Roma e Catão partiu para a Espanha. Para felicidade geral das romanas, elas puderam voltar a comprar e ostentar objetos de luxo.

O debate entre Catão e Lúcio Valério resume de maneira magistral os principais argumentos que podem ser levantados em qualquer tempo para preservar ou não uma Lei. Os defensores da Lei que se quer revogar sempre invocarão a tradição e farão referência aos fundamentos que levaram à discussão e aprovação da mesma. Também usarão o medo do desconhecido para evitar mudanças que consideram indesejadas. Aqueles que defendem a modernização da legislação, a revogação de uma Lei que consideram irrelevante ou prejudicial, farão alusões às necessidades impostas pelas novas circunstâncias, sustentarão que as Leis também podem se tornar inúteis. E, sobretudo, procurarão demonstrar os prejuízos que a Lei tem causado a sociedade ou a parte dela.

No Brasil há uma Lei não escrita segundo a qual algumas empresas de comunicação, bem poucas na verdade, podem abocanhar toda ou quase toda verba de propaganda da União, BB, CEF e Petrobrás. Em razão desta Lei não escrita, a diversificação da imprensa brasileira tem sido bloqueada. O resultado é uma verdadeira catástrofe econômica e cultural. Algumas empresas privadas ficaram tão viciadas nas verbas públicas de propaganda que passaram a depender do Estado para sobreviver. Em razão disto seus donos ficam contando os anúncios oficiais publicados pelas suas concorrentes como se tivessem direito a uma “cota parte” fixa destes recursos, como se o Estado não pudesse usar livremente os recursos de propaganda que dispõe. A União e suas empresas públicas não podem cobrar uma melhora na qualidade das publicações. Em razão disto surgiu e se consolidou a indústria de escândalos mais ou menos inventados pela Veja que passam automaticamente a circular nos outros veículos de comunicação.

As empresas de comunicação privadas são livres e a CF/88 lhes garante a liberdade de imprensa. Os empresários serão ainda mais livres quando não dependerem das verbas de propaganda da União, BB, CEF e Petrobrás. Por outro lado, o Estado não pode ser escravo de algumas empresas privadas de comunicação. A melhora da qualidade da imprensa e a diversificação das fontes de notícia é um valor supremo que deve ser estimulado pelos órgãos estatais. Jornais, revistas e redes de TV que não tem qualquer compromisso com a qualidade do jornalismo que praticam ou que se dedicam exclusivamente a atacar o governo e a elogiar a oposição não podem ser premiadas. A destruição da indústria dos escândalos mais ou menos inventados pela Veja é uma necessidade. E a única maneira de fazer isto é aprovar uma Lei de Meios que permita ao Estado parar de fornecer aos inventores e difusores de escândalos o ópio em que eles ficaram viciados.

A Lei não escrita que garante o ópio das empresas de comunicação brasileiras é a nossa Lei Ópia. E ela deve ser revogada com a aprovação de uma Lei de Meios pelas mesmas razões que foram sugeridas por Lúcio Valério “Se leis votadas não para um tempo, mas para todos os tempos, em vista de interesses permanentes, não devem, confesso, ser ab-rogadas - salvo as que a experiência condenar ou se tornarem inúteis pela situação dos negócios públicos -, ao contrário, as leis reclamadas por determinadas circunstâncias eu as considero, por assim dizer, mortais e sujeitas a mudar com as próprias circunstâncias.”

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

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