CAPÍTULO IV – DA ADOÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Primeiramente, cumpre observar que, no contexto da presente pesquisa, a súmula é compreendida como um enunciado capaz de expressar o entendimento reiterado de um Tribunal acerca de certa matéria de direito.
A palavra súmula vem do latim (summula), significando sumário, resumo, que, no âmbito jurídico, vem se referir a teses jurídicas solidamente assentes em decisões jurisprudenciais, das quais se retira um enunciado: o preceito doutrinário que extrapola os casos concretos que lhes deram origem e que pode ser orientado para o julgamento de outros casos.
As súmulas, no ordenamento jurídico pátrio, não possuíam qualquer efeito vinculante, seja sobre órgãos do Poder Judiciário, seja sobre o próprio Tribunal que a elaborou, ainda que existisse uma tendência à aplicação reiterada das mesmas pelos Tribunais, com vistas a promover a valorização da jurisprudência destes.
A adoção da Súmula Vinculante no sistema judicial pátrio tem se mostrado tema complexo a ensejar opiniões das mais variadas correntes, apresentando a novidade de se oferecer efeito vinculante àquelas súmulas emanadas do Supremo Tribunal Federal, com este propósito.
Em linhas gerais, a Súmula Vinculante foi criada com o intento de impedir que uma pendência judicial, em que o seu teor substancial já tenha sido objeto de discussão e decisão pelo Judiciário, em diversos processos, seja, novamente, submetido ao crivo deste poder, estabelecendo-se, dessa forma, entendimentos uniformes sobre determinada matéria.
Observa-se, com isso, que a Súmula Vinculante encontra por fundamentos a proteção da segurança jurídica, da igualdade entre os sujeitos e da interpretação uniforme dos casos idênticos, de modo a compor um mecanismo de previsibilidade e garantia aos jurisdicionados.
Foi a pretexto de resolver a repetição de processos exatamente idênticos que se acenou com essa proposta da Súmula Vinculante, ou precedentes de efeitos vinculantes, que valeriam para os casos porvindouros, obrigando juízes e administração pública a se submeterem aos seus enunciados. Essa possibilidade pautou-se, ainda, na busca pela qualidade da prestação jurisdicional - por vezes comprometida pela quantidade de processos - e a efetivação da uniformidade jurisprudencial, indispensável à boa distribuição da justiça, representada pela estabilidade jurídica e pela pronta solução das demandas, poupando-se as partes de ônus injustificáveis e de prestação jurisdicional que se poderia, e deveria, evitar.
Em oposição à implantação da Súmula Vinculante encontram-se argumentos relativos ao fato de que o trabalho de juízes de instâncias inferiores, apto a trazer novos entendimentos aos julgados, estaria sobremaneira comprometido, não podendo o juiz, inclusive, abrir mão da formação de sua própria convicção, em nome da celeridade da prestação jurisdicional, sobretudo ao se ter em mente que esta não é o único nem maior valor a ser considerado em matéria judicial. Ademais, estaria a Súmula Vinculante a restringir o acesso ao duplo grau de jurisdição, acarretando, também, a concentração de poderes nas cúpulas do Judiciário.
De toda sorte, como identificado em passagens anteriores, o problema central que se apresenta consiste na identificação do regime jurídico constitucional da Súmula Vinculante. Somente após a delimitação deste é que será possível a análise dos caracteres identificadores e dos limites normativos afetos a este instituto jurídico, bem como a sua adequação, ou não, à ordem constitucional insculpida pela CF/88, ressaltando-se que, na presente pesquisa, o enfoque de análise é a viabilidade da adoção da Súmula Vinculante, no tocante apenas à separação de poderes do Estado[22].
Para que isso possa ser feito satisfatoriamente é preciso considerar, em primeiro lugar, que a Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, introduziu a Súmula Vinculante no ordenamento jurídico brasileiro ao acrescentar à Constituição Federal o seguinte dispositivo:
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei[23].
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.
Do dispositivo inserto na Carta Maior (art.103-A) nota-se que a Súmula Vinculante surge a partir da necessidade de reforço à idéia de uma única interpretação jurídica para nortear a aplicação do texto constitucional ou legal, de maneira a serem assegurados, principalmente, a segurança jurídica e o princípio da igualdade.
Quanto à segurança jurídica, faz-se importante notar que a Súmula Vinculante exige a discussão sobre os múltiplos argumentos jurídicos associados aos dispositivos normativos em exame, antes de sua edição pelo STF, para que, após inúmeras discussões sobre casos repetidos, seja observado um critério uniforme para a resolução de casos idênticos.
Dessa forma, busca-se uma maior estabilidade das relações jurídicas, indicando um mínimo de previsibilidade a respeito de quais são as normas a serem observadas e de que modo as mesmas serão interpretadas para a conformação de relações jurídicas válidas e eficazes.
Por força do princípio da segurança jurídica, essência do nosso próprio Estado de Direito, cuida-se de evitar alterações surpreendentes, capazes de desestabilizar a situação dos administrados e de minorar os efeitos traumáticos que resultem de novas disposições jurídicas.
Nesse sentido:
(...) é sabido e ressabido que a ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo, pois, de antemão, o que devem ou o que podem fazer, tendo em vista as ulteriores conseqüências imputáveis a seus atos. O direito propõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o chamado ‘princípio da segurança jurídica’, o qual, bem por isso, se não é o mais importante dentre todos os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais importantes entre eles (...) Tanto mais porque inúmeras dentre as relações compostas pelos sujeitos de direito constituem-se em vista do porvir e não apenas da imediatidade das situações, cumpre, como inafastável requisito de um ordenado convívio social, livre de abalos repentinos ou surpresas desconcertantes, que haja uma certa estabilidade nas situações destarte constituídas. (MELLO, C.A.B, 2005, p. 113)
A segunda importante finalidade do instituto, relativa à preservação do princípio da igualdade, corrobora a necessidade de uma mesma interpretação jurídica para uma questão idêntica, que se repete em diversos processos e pode ser associada às exigências da celeridade processual, consagrada no art. 5º, inciso LXXVIII, da CF/88, com o fim de impedir o prolongamento indeterminado de conflitos cujo posicionamento jurídico o STF já definiu.
Impõe-se, por conseguinte, o tratamento impessoal, igualitário e isonômico, que deve o Poder Público dispensar aos administrados, partindo-se da constatação de que se trata de norma fundamental, inserta no art.5º, caput, da CF/88.
Além disso, a garantia de direitos idênticos a todos que se encontrem em uma mesma situação jurídica, mesmo que não tenham ingressado em juízo mas, eventualmente, possam ser atingidos pela atuação da administração (também sujeita ao enunciado da Súmula Vinculante) tem em vista a redução de processos e a agilização do provimento jurisdicional.
Nesse sentido, o princípio da isonomia é de lata significação política, particularmente quando se pensa no Estado de Direito e no regime democrático, de modo que o fato de haver decisões diferentes acerca de situações idênticas e de este fenômeno ser tolerado pelo sistema, indubitavelmente arranha os princípios da segurança jurídica e da isonomia.
Importante notar que a aplicação do princípio da isonomia, no contexto da Súmula Vinculante, não afasta a possibilidade da individualização da demanda no caso concreto.
Quanto a este aspecto, é importante ressaltar que é indispensável a avaliação do caso posto à análise e a subsunção do mesmo ao enunciado da Súmula Vinculante. Mantém-se, dessa forma, a possibilidade de serem apontados novos pontos característicos que não se encontram analisados na Súmula Vinculante, bem como a necessidade de modificação desta, tal qual anteriormente mencionado, fundamentando-se, por conseguinte, o motivo pelo qual não seja hipótese de aplicação de determinado precedente no julgamento em análise.
Novas reflexões podem ensejar novas interpretações, de modo que, acompanhando estas possibilidades, a Súmula Vinculante está a admitir revisão e cancelamento, de modo a se adaptar e acompanhar a evolução social.
A possibilidade de novos entendimentos divergentes associa-se ao fato de que do ato administrativo ou da decisão judicial que contrariar a Súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao STF, que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada e determinará que outra seja proferida, com ou sem a aplicação da Súmula, conforme o caso, sem prejuízo dos recursos cabíveis ou outros meios admissíveis de impugnação.
Por estas razões, a Súmula Vinculante mostra-se como alternativa favorável e possível face ao ordenamento constitucional pátrio, desempenhando papel relevante quanto à garantia de valores prezados pelo sistema jurídico, quais sejam: isonomia, previsibilidade e segurança.
A partir desse pressuposto teórico e normativo passaremos à identificação do regime jurídico da Súmula Vinculante, no contexto das funções estatais, para que se esclareça, assim, se a mesma se mostra compatível com a separação de poderes prevista na Constituição Federal de 1988, inclusive sob o aspecto de se tratar de inovação decorrente de atuação do Poder Constituinte Reformador.
Seção I – Do regime jurídico da Súmula Vinculante
A novidade trazida com a EC nº 45 está, justamente, no fato de que as súmulas poderiam passar a ostentar efeito vinculante, de modo a direcionar a atuação do Judiciário e do Executivo, ressalvada a impossibilidade de haver vinculação imediata do Poder Legislativo ao enunciado da Súmula.
Referido efeito pressupõe a presença de uma série de requisitos cumulativos, conforme se depreende da leitura do art. 103-A da CF/88, anteriormente transcrito, quais sejam: competência, objeto, requisitos para edição, legitimados e procedimentos.
No tocante à competência, observa-se que o STF é o exclusivo Tribunal competente para a edição, cancelamento e revisão de enunciado de Súmula Vinculante, de ofício ou por provocação.
No que pertine ao objeto, o enunciado da Súmula terá por fim a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas.
Quanto aos requisitos para a edição da Súmula Vinculante aponta-se para a existência de reiteradas decisões sobre matéria constitucional em relação a normas acerca das quais exista controvérsia atual, que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão, seja envolvendo órgãos judiciários ou entre estes e a administração pública.
Exige a CF/88 que a Súmula trate de matéria constitucional, o que se associa, inclusive, à prerrogativa do Supremo em atuar como guardião da Constituição. Todavia, não basta que a matéria de direito seja constitucional, sendo exigida a reiteração de decisões sobre essa matéria, demonstrando que esta já foi por diversas vezes discutida no Tribunal e apontando para o amadurecimento da questão à apreciação. Não se admite, portanto, Súmula Vinculante para prevenir controvérsia, devendo a mesma ser editada com objetivos específicos de validade, interpretação e eficácia de normas constitucionais, já levadas a apreciação em casos diversos e reiterados.
Quanto aos legitimados, poderá o STF, de ofício, sugerir a aprovação da súmula, seja no decorrer de um julgamento, seja fora do julgamento, através, neste último caso, de requerimento de natureza administrativa, formulado junto ao Plenário.
A aprovação de uma Súmula Vinculante também poderá ser provocada pelos legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade[24] e, de acordo com a Lei nº 11.417/06, poderá, ainda, ser proposta por Defensor Público-Geral da União e pelos Tribunais Superiores, Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho, Tribunais Regionais Eleitorais e Tribunais Militares.
Quanto ao procedimento de edição, revisão ou cancelamento de Súmula Vinculante, seja de ofício ou mediante provocação, deverá haver a manifestação do Procurador Geral da República, salvo nos casos em que este houver formulado a proposta.
Deflagrado o processo, colhida a manifestação do PGR, admitida ou não, por decisão irrecorrível do relator, a manifestação de terceiros na questão (amicus curiae[25]), é necessário o quorum para edição, revisão ou cancelamento de enunciado da súmula, com efeito vinculante, qual seja, dois terços dos membros do STF, ou seja, oito ministros, em sessão plenária.
No prazo de dez dias, após a sessão em que for estabelecida a Súmula Vinculante, o STF fará publicar, em sessão especial do Diário de Justiça e do Diário Oficial da União, o enunciado respectivo[26].
A Súmula Vinculante faz com que os órgãos do Judiciário e a Administração Pública sejam obrigados a, no exercício de suas funções, atuar conforme a orientação da Súmula[27].
A partir da identificação das normas constitucionais afeitas à Súmula Vinculante, nota-se que a CF/88 afastou, claramente, a aplicação do regime jurídico da função legislativa bem como o regime jurídico da função jurisdicional àquelas.
Isso porque, não é a Súmula Vinculante ato normativo que inova no ordenamento jurídico, da mesma forma que não cria direito, além de que não resolve demandas judiciais com o revestimento de imutabilidade das decisões, requisitos indispensáveis à conformação das funções legislativa e jurisidiconal.
A Súmula Vinculante não é atividade sujeita ao regime jurídico legislativo. Vale notar, inclusive, que a súmula “perde o objeto” quando a lei que embasa sua edição é alterada ou revogada. Através da Súmula Vinculante, não há criação primária de direito, ainda que se tenha em mira o atingimento de um número indeterminado de pessoas sujeitas a certa previsão sumulada, mesmo que o enunciado desta possua fundamento diretamente extraído da Constituição.
Nesse sentido importa destacar que:
Uma coisa é a lei; outra, a súmula. A lei emana do Poder Legislativo. A súmula é uma apreciação do Poder Judiciário, que interpreta a lei em sua aplicação aos casos concretos. Por isso a súmula pressupõe sempre a existência da lei e a diversidade de sua exegese. A lei tem caráter obrigatório; a súmula revela-lhe o seu alcance, o sentido e o significado, quando ao seu respeito se manifestam simultaneamente dois ou mais entendimentos. Ambas têm caráter geral. Mas o que distingue a lei da súmula é que esta tem caráter jurisdicional e interpretativo. É jurisdicional[28], porque emana do Poder Judiciário; é interpretativo, porque revela o sentido da lei. A súmula não cria, não inova, não elabora lei; cinge-se a aplicá-la, o que significa que é a própria voz do legislador[29].
Da mesma forma, não trata a Súmula Vinculante de decisão com força de verdade legal, que põe fim a uma questão jurídica, com valor de imutabilidade, não tendo o condão de produzir, de per si, coisa julgada[30]. Ainda que se trate de atuação do Judiciário, a Súmula Vinculante não corresponde propriamente à decisão prolatada no curso do processo, com o intento de resolver uma pretensão levada à juízo.
Assim, forçoso concluir que o regime jurídico das Súmulas Vinculantes é aquele afeto à função executiva, assim definido pelo sistema normativo, na dependência do que decidiu a CF/88 a respeito.
Com estes pressupostos, observa-se que a Súmula Vinculante não atribuiu ao judiciário a prerrogativa de editar leis, nem mesmo aplicou à função executiva a capacidade de solucionar conflitos de interesse com caráter de definitividade.
O instituto em análise, portanto, caracteriza a atuação do Judiciário no exercício de função executiva. Conforme exposto anteriormente, a função executiva admite uma subclassificação conforme se analise o exercício de atos políticos ou de governo ou atos administrativos em sentido estrito.
A função política ou de governo é compreendida como atividade de ordem superior, referente à direção suprema e geral do Estado, em seu conjunto e em sua unidade, dirigida a determinar os fins da ação do Estado e a assinalar as diretrizes para as outras atividades de ordem diversa, coordenando, também, o exercício das outras funções, em busca da conformidade de orientação, fundamental à unidade da soberania estatal.
A função administrativa, por sua vez, é considerada como sendo de caráter residual, indicando aquela que não representa a formulação de norma inovadora do ordenamento jurídico primariamente, nem a composição, em definitivo, das lides em concreto, atuando nos estritos limites definidos em lei para a consecução de objetivos de organização dos serviços e atividades do Estado.
A partir dos elementos expostos no decorrer do trabalho, é possível configurar o regime jurídico da Súmula Vinculante como sendo o regime jurídico da função executiva, enquanto função política ou de governo.
Isso porque a Súmula Vinculante se mostra muito mais como atividade afeta à forma de organização das atividades do Estado, com fundamento diretamente extraído da Constituição Federal, do que propriamente a execução de atos concretos, estritamente ligados aos ditames infralegais.
A Súmula Vinculante aponta para uma forma específica de se conceber o sistema jurídico, indicando o modelo sobre o qual se assenta a ordem jurídica nacional, inclusive no que diz respeito ao modo de ser do processo, que permita a estabilidade contemporânea da tese jurídica fixada na solução de conflitos idênticos.
Em outros termos, observa-se que o instituto da Súmula Vinculante é uma orientação do Estado Brasileiro no sentido de aproximar norma legal e precedente judiciário, criando uma orientação política (aqui entendida nos termos da classificação dos regimes jurídicos esboçada) norteadora da atuação estatal.
Nesse sentido, o art. 103-A é claro ao atribuir ao Judiciário a possibilidade de instituir diretriz de atuação do Estado, em prol de uma finalidade afeta ao interesse dos jurisdicionados, como política de uniformização de interpretação e vinculação de enunciados que correspondam à atuação do STF enquanto guardião dos ditames da Carta Maior, responsável pela uniformidade de interpretação das matérias constitucionais.
De toda sorte, concluído qual é o regime jurídico aplicável ao instituto da Súmula Vinculante, resta-nos esclarecer se esta nova previsão constitucional implica, ou não, em violação à separação de poderes.
Primeiramente, cumpre observar que a separação de poderes na CF/88 é cláusula pétrea, consoante art. 60, §4º, III. Isso implica que sobre este princípio incide o caráter de irremovibilidade, ao identificar disposição insuscetível de ser abolida por emenda, compondo, portanto, o núcleo irreformável da Constituição. Por este motivo, preceitos que atentem ou contrariem a separação de poderes merecem pronta atuação repressiva do ordenamento jurídico, o que inclui, ainda, a conformação do poder de reforma constitucional aos ditames traçados pelo constituinte originário.
Tal previsão, criadora de um núcleo mínimo imutável, objetiva impedir inovações temerárias em assuntos cruciais para a cidadania e para o próprio Estado, de modo a resguardar os valores fundamentais presentes na ordem constitucional.
Lado outro, deve-se ter em mente que as funções do Estado são repartidas de modo que cada órgão esteja investido de competências no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse comum, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades.
Nesse cenário, a aplicação das normas constitucionais pertinentes à divisão das competências estatais aponta para a impossibilidade de uma separação rígida entre os poderes e, ao mesmo tempo, exige a interação entre os diversos feixes de competências consubstanciados nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a fim de se promover a harmonia constitucional.
Por estas razões, um dos mecanismos mais importantes associados ao princípio da separação de poderes é o sistema de freios e contrapesos.
Justamente nesse sentido deverá ser apreciada a Súmula Vinculante, uma vez que esta, submetida ao regime jurídico da função executiva, enquanto função política ou de governo, resulta de reforma constitucional que não introduziu mecanismo tendente a abolir a separação de poderes do Estado, mas sim, de promover a articulação entre os vários feixes de competências estatais.
Deve-se ter em mente que o regime jurídico da Súmula Vinculante é aquele definido pelo sistema normativo, na dependência do que houver decidido a Constituição a respeito, atentando-se, ainda, para o fato de que, sendo obra do Poder Constituinte Reformador, estará o instituto da Súmula Vinculante em dependência do permissivo disposto pelo Constituinte Originário para tanto.
Nesse sentido, entende-se que, por questões de técnica constitucional, a CF/88 conferiu ao Congresso Nacional a competência para elaborar emendas a ela, de modo que foi atribuído, a um órgão constituído, o poder de emendar a Constituição.
Todavia, o poder de reforma, por se tratar de competência constituinte derivada, é limitado por normas de procedimento e de agir, nos estritos termos estatuídos na Carta Maior. Por esta razão, não se pode esquecer que o Poder Reformador é um poder-dever delimitado normativamente e vinculado a uma finalidade de interesse comum a todos os que a ele se submetem, preso ao direito positivo constitucional, perdendo o cunho de autonomia imanente ao Poder Constituinte Originário[31].
Nesse ponto, para que seja cogitada a tendência à violação da separação de poderes, é necessário que seja atribuído a um dos poderes o exercício da atividade precípua de um outro poder – o que efetivamente não ocorre com a Súmula Vinculante, ao preservar, tal qual disposto na Carta Maior, as previsões relativas às atividades afetas ao Executivo, ao Judiciário e ao Legislativo.
Nesse sentido, impende observar que por permissivo constitucional, todos os poderes podem atuar exercendo funções executivas em sentido amplo, não havendo, de modo diverso do que ocorre com as funções legislativa e jurisdicional, vinculação ao critério orgânico-funcional no tocante à necessária vinculação entre um órgão e uma função principal.
Além disso, sobreleva destacar que o STF é órgão de cúpula do Poder Judiciário ao qual, nos termos do art. 102 da CF/88, compete precipuamente a guarda da Constituição, função esta que tem de ser conciliada com a sua função de julgar.
A Súmula Vinculante vem, justamente, reafirmar esta atividade do STF, enquanto guardião da Constituição Federal, ao manifestar o entendimento pacificado da mais alta corte do país sobre matérias constitucionais, alvo de inúmeros processos idênticos, de modo a tornar possível a busca de uma resposta judiciária de melhor qualidade e não apenas a eliminação pura e simples de uma divergência, analisada em demandas diversas levadas à juízo.
Nesse sentido, MANCUSO (2007) destaca que a divergência na interpretação da lei não é, em si mesma, nenhum mal, até mesmo porque a própria evolução da jurisprudência se processa a partir de interpretações novas que se contrapõem às antigas. Contudo, há de se convir que o mal é a decisão errônea ou a divergência que não corresponda a nenhuma evolução dos fatos que presidiram a criação da norma interpretada, provocando excesso e descontrole na atuação judicial e tornando-a uma fonte prolongada de angústia (seja quanto à duração do processo, seja quanto ao resultado da demanda, ou ainda, seja quanto à sua exiqüibilidade) a refluir, desta feita, para o desprestígio da função jurisdicional e para a desconfiança social quanto ao próprio caráter científico do direito.
São justamente estes problemas concretos que a Súmula Vinculante visa resolver, de modo que, individualizadas as competências do Estado, em órgãos e funções delimitadas, exsurge a compreensão da necessidade de equilíbrio, independência e harmonia entre os poderes, admitindo-se, inclusive, a interferência entre eles, ganhando força a idéia de controle e vigilância recíprocos, relativamente ao cumprimento das funções constitucionais de cada um.
Dessa forma, no caso da Súmula Vinculante, haverá atuação do Judiciário com a finalidade de assegurar a legalidade e a legitimidade do resultado judicial visado em exercício de uma atividade política, de orientação do Estado, praticando, por conseguinte, ato sujeito ao regime jurídico executivo, afeito aos atos políticos ou de governo.
Assim, a atuação do STF frente à Súmula Vinculante denota a garantia da continuidade do regime democrático e da supremacia das decisões constitucionais, além do resguardo de direitos e valores fundamentais, e, ainda, a busca pela realização de uma justiça substantiva, compreendida como aquela que, no caso concreto, assegure a igualdade e a proteção dos direitos.
Com estas razões, fica claro que a Súmula Vinculante não viola a separação de poderes do Estado e, por este motivo, não se traduz em exacerbação do poder-dever conferido ao Poder Constituinte Derivado Reformador, o qual é delimitado normativamente, preso ao direito positivo constitucional e vinculado a uma finalidade de interesse comum a todos os que a ele se submetem.