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Interpretação jurídica no marco do Estado Democrático de Direito:

um estudo a partir do sistema de controle difuso de constitucionalidade no Brasil

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Agenda 01/01/2003 às 00:00

Capítulo 3: Da Interpretação no Estado Democrático de Direito e sua importância para o controle difuso de constitucionalidade no Brasil

3.1. A Interpretação segundo a Teoria Discursiva de Jürgen Habermas

Para entendermos a Teoria do Discurso de Habermas, começaremos explicando alguns de seus conceitos. Em primeiro lugar, o "giro lingüístico" feito pela Filosofia da Linguagem, que ele toma para desenvolver sua Teoria da Ação Comunicativa. O Capítulo 1 do seu "Faticidade e Validade" retoma (e retrabalha) esses conceitos.

Habermas mostra como a "razão prática" — expressão mais elaborada da filosofia iluminista (ao lado da "razão pura", ambos conceitos kantianos), uma filosofia centrada na razão que podia conhecer tudo, logo, sua denominação "filosofia da consciência" — recebe a contribuição da Filosofia da História (Hegel), mas acaba superada pela complexidade das sociedades modernas, onde o "indivíduo" não é mais um ponto de partida, mas o começo do problema. O ponto de partida agora é lingüístico, logo coletivo.

Sem querer cair numa negação total da razão (como fazem os desconstrutivistas como Derrida) e por ainda acreditar num projeto "inacabado" da modernidade [19], retoma a razão para sua teoria, apenas que não como uma racionalidade individualista (onde os indivíduos são tratados como mônadas que podem, isoladamente conhecer tudo através da razão). A razão prática kantiana não pode produzir normatividade por si, não pode explicar como as pessoas são livres e iguais.

Como Habermas quer trabalhar com a linguagem, com as interações intersubjetivas, não pode aceitar uma racionalidade que se concentra no sujeito, por isso substitui a razão prática pela razão comunicativa, que pode ser definida como sendo "el medio lingüistico, mediante el que se concatenan las interacciones y se estructuran las formas de vida" (HABERMAS, 1998, p. 65) [20].

São dois, basicamente, os pressupostos à comunicação: que os agentes tenham uma atitude performativa e que se perceba que eles perseguem sem reservas seus fins ilocucionários, isto é, que os participantes num processo de entendimento ligam seu acordo "al reconocimiento intersubjetivo de pretensiones de validez susceptibles de crítica y se muestran dispuestos a asumir las obligaciones relevantes para la secuencia de interación que se siguen de un consenso" (HABERMAS, 1998, p. 66) [21].

Estes pressupostos, assumidos pelos sujeitos que se envolvem numa interação orientada ao entendimento são contrafáticos, idealizantes. Rompe-se, pois, com uma separação rígida entre "real" e "ideal". Como mostra Habermas, a "realidade" está permeada por idealidades. Importa, pois, para ele, que a comunicação efetivamente ocorra, dentro das condições ideais do discurso.

Com a perda do monopólio da interpretação pela religião (ou de quaisquer outros referenciais unitários), a integração social apenas pode se dar em instâncias que gerem consensos, ou ao menos, compromissos racionais entre os falantes. Assim, os participantes devem ter iguais oportunidades de oferecer suas pretensões e se mostrar dispostos a terem as mesmas suscetíveis à crítica, para que se chegue o mais próximo possível a um consenso.

A tensão entre Faticidade e Validade se mostra aqui no modo de integração dos indivíduos. A linguagem desempenha papel fundamental, contudo, os processos de entendimento apenas poderão ocorrer se os participantes se comportarem não como observadores externos, nem como atores que visam seu próprio êxito, mas tendo uma atitude performativa de alguém que busca se entender com outro sobre algo.

Contudo, o risco de dissenso gerado por aquela tensão, isto é, pelo posicionamento de afirmações e negações frente a pretensões de validade, pode ser contornado com o conceito de "mundo da vida". É que se todas as pretensões de validade estivessem ao mesmo tempo em discussão, o provável dissenso daí advindo resultaria mais em perda que em ganho discursivo (tornaria improvável a integração social). Dessa forma, a ação comunicativa parte de um "horizonte de convicciones comunes aproblemáticas" (HABERMAS, 1998, p. 83).

Este assentamento das questões básicas da comunidade jurídica, sem embargo, começa a se agitar quando aumenta a complexidade desta mesma sociedade, trazendo novas expectativas de comportamento, a partir de novas biografias. A partir do momento em que convicções de fundo começam a se chocar, a Ação Comunicativa toma seu papel na manutenção (ou na reformulação) da integridade social, pois, como diz José E. Farias, "o dissenso é o ponto de partida para a conquista do consenso" (FARIAS, 1978, p. 106).

Estas sociedade complexas de que fala Habermas, onde o risco de dissenso é crescente, são as sociedades modernas nas quais vivemos (chamadas, como já vimos, de "pós-modernas" por alguns).

José Eduardo Farias acentua, por sua vez, que a crescente impossibilidade de consenso é potencializada por uma sociedade de consumo que cobra contínua especialização de interesses e necessidades (gerando complexidade) e, ao mesmo tempo, impõe padrões médios às pessoas (estes, por sua vez, redutores de complexidade) (FARIAS, 1978, p. 32) [22].

Este é um problema central na obra de autores contemporâneos.

A questão da integração social e do risco do dissenso, estão na base, por exemplo, da tensão entre a Faticidade da coerção estatal (externa) e a Validade da força de convicções internas de que fala Habermas.

A saída proposta por ele passa pelo reconhecimento da centralidade do Direito Positivo no contexto da integração social. Vale a pena repisar que num contexto sacralizado de integração social, a questão da legitimidade não toma grandes foros; ao contrário, é justamente com a perda daquela centralidade e a necessária imposição do Direito referido não mais a Deus ou à autoridade hereditariamente constituída, que a questão da legitimidade aflora.

Nesse contexto, apenas com a crença de que o destinatário da norma é também um seu feitor é que a imposição do Direito, inclusive através de sanções se pode justificar (HABERMAS, 1998, p. 94) [23].

A solução desse paradoxo do Direito (que produz a si mesmo e impõe sanções) é explicado pela relação interna entre aquele e a Política: o Direito se faz impor pela força do aparelho estatal (que atribui força coletivamente vinculante às suas decisões). A Política, através do Direito, obtém forma jurídica. Isso explica a faticidade do Direito. Sua legitimidade, contudo, surge doutra face daquela relação, isto é, o Direito cobra legitimidade a partir do processo de produção das normas [24].

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Com isso, colocando o Direito no centro da questão relativa ao problema da integração social e mostrando sua relação com a Política, Habermas a resolve nos seguintes termos: "el proceso de produción de normas constituye por tanto, en el sistema jurídico el auténtico lugar de la integração social" (HABERMAS, 1998, p. 94) [25].

Através do Processo Legislativo o Direito estabiliza as expectativas de comportamento dos cidadãos, expectativas estas apresentadas e discutidas discursivamente. Para que isso ocorra, deve-se levar em conta o Princípio do Discurso, segundo o qual "válidas son aquellas normas (y sólo aquellas normas) a las que todos los que puedan verse afectados por ellas pudiesen prestar su asentimiento como participantes en discursos racionales" (HABERMAS, 1998, p. 172) [26].

Questões éticas, políticas e pragmáticas postas serão, pois, respondidas atendendo-se, em cada um dos correspondentes tipos de discurso, às regras que operacionalizam o Princípio do Discurso.

Nota-se que este princípio, (diferente da Moral), não procura dar conteúdo às questões quando propostas, mas apenas diz como podem a formação da opinião e da vontade serem institucionalizadas por um sistema de direitos que assegure participação no processo legislativo em condições de igualdade. Igual proteção de todos que significa que o processo democrático há de assumir o risco de ter de aceitar que quaisquer temas e contribuições, informações e razões alcancem a arena do debate público (HABERMAS, 1998, p. 646) [27].

A tensão entre Faticidade e Validade se manifesta aqui no interior da Administração da Justiça, que precisa se equilibrar entre o princípio da segurança jurídica e a pretensão de decisões corretas. Por um lado o Direito estabiliza expectativas de comportamento e as impõe coercitivamente. Assim, as decisões judiciais devem restar consistentes com (i.é., tomar como pano-de-fundo) "el marco del orden jurídico vigente (...), [que é] el producto de todo un inabarcable tejido de decisiones pasadas del legislador e de los jueces, o de tradiciones articuladas en términos de derecho consuetudinario" (HABERMAS, 1998, p. 267).

Por outro lado, a decisão tem de estar de acordo não apenas com o passado e com o direito vigente, mas também deve ser racionalmente aceitável. O problema da racionalidade das decisões foi abordado por várias teorias. Habermas seleciona algumas e passa a discorrer sobre elas.

Em primeiro lugar a Hermenêutica Jurídica resolveu aquela questão inserindo a razão no contexto histórico da tradição.

Gadamer possui (entre outros) o mérito de explicitar a idéia de que nenhuma regra pode regular sua própria aplicação e foi ele quem primeiro uniu este momento (da aplicação) com dois outros até então separados: a compreensão e a interpretação. Para Gadamer, estes três momentos formam um processo unitário (GADAMER, 1988, p. 379) [28].

Isso representa um ganho imenso para a prática jurídica, pois agora denota-se que não é possível, e.g., aplicar uma norma sem, ao mesmo tempo, compreendê-la e interpretá-la. Não é que o juiz escolha interpretar (e compreender) a norma, mas que é impossível que ele tente aplicá-la sem, ao mesmo tempo, fazer incidir um juízo sobre a mesma. Afinal, "la generalidad de la norma se determina e interpreta en la concreción del caso (...), [logo] es ajeno ao conocimiento jurídico el pretender una ciencia pura de lo verdadero en sí, independentimiente de su lectura histórica y continuada hasta el presente" (GADAMER, 1988, p. 648).

Gadamer salienta a historicidade de todo conhecimento. O passado é compreensível a partir de seu contraste com o presente. Aquele elemento da tradição em aparece na linguagem (seguindo Heidegger), que, ao mesmo tempo que nos dá o horizonte do presente, "traz a marca do passado, é a vida do passado no presente e, portanto, constitui o movimento da tradição" (MOUFFE, 1996, p. 31) [29].

Já aqui se vê uma sofisticação com relação à exegese, aos positivistas e aos historicistas. Em relação àqueles dois primeiros, pela crença que possuíam no texto, por acreditarem que o texto da regra pode regular a vida por si (e não só, mas também que o ordenamento pode regular todas as situações de aplicação). Aos historicistas, por não compreenderem a diversidade dos horizontes (passado e presente), tratando os eventos históricos objetivamente (como se tal fosse possível); assim, ao contrário desses, Gadamer já consegue perceber a impossibilidade de se querer interpretar o passado desde a perspectiva dos que o viveram, pois entre o passado e o agora há um ganho, um aprendizado que, quer queira quer não, condiciona o olhar do intérprete.

É uma crítica também a Kelsen, entre outras coisas, porque este apenas via sentido em se proceder a uma exercício de interpretação quando houvesse problemas de clareza do texto ou antinomias. Também por sua tentativa de construir uma Teoria Pura, fruto ainda de uma visão que cria na objetividade do conhecimento humano sem se aperceber que este é construído intersubjetivamente.

Voltando a Gadamer, este explica que a pré-compreensão do juiz está determinada pelos topoi da tradição, ou seja, de uma eticidade; é isso o que guia o estabelecimento de relação entre normas e estados de coisas. Com isso ele quer romper com a separação rígida entre sujeito e objeto, já que o primeiro, antes ponto de partida, agora é problemático; ao mesmo tempo, quer mostrar que o que o intérprete faz não é buscar o "sentido original" do texto, mas proceder à renovação da efetividade histórica do texto, referindo-se à nova situação na qual procede a interpretação (OSUNA FERNÁNDEZ-LARGO, 1992, p. 87) [30].

A crítica de Habermas concentra-se justamente no recurso de Gadamer a uma tradição, pois, em sociedades plurais como a nossa, que portanto, possuem tradições diversas e igualmente válidas, nenhum juiz tem condições de recorrer a um ethos reinante.

Outra resposta à racionalidade das decisões a dá Ronald Dworkin, com sua teoria deontológica das pretensões de validade jurídicas. Dworkin, além de romper com o círculo hermenêutico, não permite que o Direito caia na contingência (como os positivistas) ou esteja à disposição de objetivos políticos (como os realistas) (HABERMAS, 1998, pp. 278-279).

Ao contrário, Dworkin consegue mostrar como obter racionalidade nas decisões jurídicas recorrendo aos princípios. Os princípios, que não são dados por topoi historicamente comprovados, estão fundamentados no seu conceito de "interpretação construtiva", que busca formular sues conceitos das práticas sociais, rejeitando, pois, esquemas vindos das ciências da natureza (DWORKIN, 1997, p. 57), tal qual fizeram a maioria das teorias até então expostas, inclusive Kelsen, pois que Dworkin ao invés de negar que cada intérprete possui propósitos (escondendo-os sob o manto da objetividade), aceita-os, explicitando, ademais, que cada intérprete vai possuir finalidades distintas que vão orientar as interpretações.

Cada juiz deve chegar a uma decisão válida na medida em que ele compensa a indeterminação do direito apoiando sua decisão na reconstrução que faz da ordem jurídica, de modo que o direito vigente possa ser justificado a partir de uma série ordenada de princípios. Esta tarefa, que cabe a todo juiz (de qualquer instância), implica que ele deve decidir um caso concreto tendo em mira "o Direito em conjunto" (através dos princípios), o que nada mais é do que sua obrigação prévia frente à Constituição (HABERMAS, 1998, p. 286).

A integridade é a medida que garantirá tanto a segurança jurídica quanto aceitabilidade racional à sentença. "Segundo o Direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam dos princípios de justiça, eqüidade [fairness] e devido processo legal" (DWORKIN, 1999, p. 272). Ele procura então princípios válidos, a partir dos quais seja possível justificar uma ordem jurídica concreta, de modo que nela se encaixem todas as decisões como se fossem componentes coerentes (retiradas, é claro, aquelas que possuem erros).

Reconhecendo a dificuldade de uma tal tarefa, Dworkin cria a figura do juiz Hércules: um magistrado que, ao mesmo tempo, conhece todos os princípios e vê os elementos do direito vigente ligados por "fios argumentativos". Desde essa perspectiva, os juízes são, ao mesmo tempo, autores (porque acrescentam algo ao Direito) e críticos (porque o interpretam). Por isso a analogia que faz entre a atividade interpretativa do juiz e um romance escrito em cadeia, onde cada autor escreve um capítulo da história (e para isso tem de ler os antecedentes) (DWORKIN, 1999, p. 276 e segs e 1997, p. 51 e segs).

A Teoria de Dworkin pretendia que o juiz fosse capaz de dar a melhor interpretação a partir de vários elementos (como a reconstrução história institucional de uma comunidade específica); contudo, vários têm sido os autores que o questionam.

Rosenfeld, por exemplo, alega que o conceito de integridade proposto por aquele "is too amorphous to furnish sufficient structure to the counterfactual imagination (...). [Exceto se tomado o termo em] a contextually ground reconstruction adapted to the actual tensions and contradictions found within prevailing social and political relations" (ROSENFELD, 1995, pp. 1067-1068 e 2000, p. 23).

Habermas, por seu turno, questiona o papel solitário do juiz "Hércules", que pressupõe alguém que tenha a pretensão de um privilégio cognitivo que garanta, sozinho, a integridade da comunidade jurídica. Ora, se o Direito é a principal forma de integração social e deve respeitar o princípio da integridade, logo, o juiz não deveria ficar sozinho na realização de sua tarefa (HABERMAS, 1998, pp. 293-294) [31].

Para contornar isso, é preciso, a partir dos postulados do agir comunicativo, isto é, da prática da argumentação, que exige de cada participante a assunção das perspectivas de todos os outros (prevalência do melhor argumento), para que se relacionem aquelas exigências ideais à Teoria do Direito apontadas por Dworkin não à pessoa do juiz, mas ao contraditório desenvolvido pelas partes (e até às interpretações não-oficiais produzidas a todo momento por cada agente social).

Assim, desde uma racionalidade comunicativa (e não mais individual), a interpretação não se dá isolada, mas intersubjetivamente.

Habermas propõe, então, uma Teoria da Argumentação que, levando a sério elementos como "argumentos", "correção", "discurso" (etc.), retirem do juiz aquele fardo. Desta forma, aquele que queira levar a cabo a interpretação, deve fazê-lo levando em consideração "también la perspectiva de cada uno de los demás potenciales participantes" (HABERMAS, 1998, p. 302).

Este é o ponto central, já fizemos menção à importância de, numa interação discursiva, considerar-se a exposição e prevalência do melhor argumento (supra), pois, apenas assim, a decisão cumprirá os dois requisitos, quais sejam, certeza jurídica e também aceitabilidade racional. Esclareça-se, contudo, que o que as normas de Direito Processual devem fazer não é garantir a argumentação como tal, mas criar o ambiente que a possibilite ocorrer de forma livre (HABERMAS, 1998, p. 307).

O processo deve garantir não apenas a possibilidade do contraditório, mas que, efetivamente, as partes participem da formação do provimento jurisdicional; de forma que, caso isso não ocorra em um processo específico de forma satisfatória, o mesmo seja tido como nulo. Nesse sentido o Professor Aroldo Plínio, "há processo sempre onde houver o procedimento realizado em contraditório entre os interessados, e a essência deste está na ‘simétrica paridade’ da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos" (GONÇALVES, 1992, p. 115) [32].

Apresentadas em linhas gerais uma Teoria da Interpretação que, conforme temos mostrado (e retomaremos ao final desta), mostra-se mais adequada ao modelo difuso de controle de constitucionalidade, passaremos a fazer uma breve observação à Teoria da Sociedade Aberta de Intérpretes da Constituição, de Peter Häberle, mostrando que apenas tomando a sério as várias interpretações feitas na periferia, a Constituição poderá desenvolver-se legitimamente.

3.2. Interpretação Plural da Constituição: a contribuição de Häberle

O primeiro pressuposto de Häberle em seu livro é o de que não há norma jurídica de per se, senão a norma interpretada, e, por outro lado, "todo aquele que vive a Constituição é um seu legítimo intérprete" [33]. Qualquer medida que restrinja algum daqueles postulados fecha a comunidade de intérpretes.

O destinatário da norma a interpreta pelo simples fato de ser afetado (positiva ou negativamente) pela mesma. Afinal, Häberle ultrapassou a perspectiva que apenas consegue enxergar a possibilidade de interpretação quanto há obscuridade ou antinomias (cf. supra). Ao contrário, inseres-se num paradigma que pressupõe a condição hermenêutica do ser humano.

Importante ressaltar que a "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição" não é uma reivindicação de Häberle (algo como uma proposição de lege ferenda ), ao contrário, segundo ele, isto já é uma realidade (HÄBERLE, 1992, p. 30). Isso é particularmente significativo num contexto como o da tradição do nosso constitucionalismo, pois se para nós pode parecer natural uma concepção mais ampla dos intérpretes da Constituição (resultado de um sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis), na Alemanha isso parece ser um grande desafio, dada a conjuntura historicamente marcada pela centralização da interpretação constitucional nas mãos de uma Corte Constitucional.

Talvez por isso ele tenha de insistir em dizer que "a interpretação constitucional jurídica traduz (apenas) a pluralidade da esfera pública e da realidade (...), as necessidades e as possibilidades da comunidade, que constam do texto, que antecedem os textos constitucionais ou subjazem a eles" (HÄBERLE, 1992, p. 43).

Percebe-se presente em sua teoria aquele Princípio do Discurso a que fizemos referência supra quando Häberle postula que o Direito Constitucional é formado por "consensos", isto é, pelos conflitos e compromissos entre participantes em um processo de aplicação do Direito.

Häberle reivindica que os juízes da Corte Constitucional alemã aprimorem seus "instrumentos de informação", principalmente quanto à possibilidade de participação (plural) no processo constitucional. Noutro ponto da obra ele já propusera que, numa sociedade aberta, a democracia se desenvolveria — também — por "formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana" (HÄBERLE, 1992, p. 48 e 36).

Mais uma vez mostra-se o desafio que, num contexto institucional como o alemão, é fazer com que as "interpretações não-oficiais" cheguem até o órgão encarregado de interpretar a Lei Fundamental. No Brasil, como temos pontuado, ao contrário, tal preocupação não deve existir (ou fica extremamente minimizada) devido à prática do controle difuso de constitucionalidade entre nós. Por isso, não podemos concordar com o "otimismo" mostrado por alguns juristas, entre eles Inocêncio Mártires Coelho, que viu na proposta de regulamentação da Ação Direta de Inconstitucionalidade "várias aberturas hermenêuticas (...) a conferir um caráter pluralista ao processo objetivo de controle abstrato de constitucionalidade" (COELHO, 1998, p. 130) [34], isto é, que o dispositivo do referido projeto (agora arts. 6º, 7º, §2º e 9º, §§ 2º e 3º da Lei nº 9.868/99, que prevêem que o Relator poderá requisitar informações dos órgãos dos quais adveio a lei e também receber informações de outros órgãos ou entidades, caso considere conveniente em vista da "relevância da matéria e a representatividade dos postulantes" além de "informações adicionais", perícia, testemunho de entidades especializadas e informações dos Tribunais Superiores, Federais e Estaduais sobre como têm eles aplicado a norma impugnada) teria, entre outras coisas, o "grande mérito" de trazer até nós a ampliação do círculo de intérpretes da Constituição de que falara Häberle.

Ao contrário do que disse o eminente doutrinador, pensamos que a posição "conservadora" assumida pela citada lei pende muito mais para um centralismo do que para uma abertura, haja vista a maneira como tem sido conformado o sistema de controle concentrado de constitucionalidade no Brasil.

E mais, reafirmamos, se na Alemanha um tal discurso faz sentido, entre nós isto significa, no mínimo, um retrocesso, principalmente dentro de uma tendência centralizadora do sistema de controle de constitucionalidade (e, logo, da interpretação da Constituição) no Brasil [35].

Sobre o autor
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Professor Adjunto na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e na Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Professor permanente do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Advogado no Cron - Advocacia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Interpretação jurídica no marco do Estado Democrático de Direito:: um estudo a partir do sistema de controle difuso de constitucionalidade no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3588. Acesso em: 25 dez. 2024.

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