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Questões processuais de jurisdição e competência em torno da Internet

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Agenda 01/01/2003 às 00:00

4. ENQUADRAMENTO LEGAL DA JURISDIÇÃO E DA COMPETÊNCIA.

Finalmente, antes de adentrarmos no núcleo principal do tema, passemos a tratar brevemente do disciplinamento da jurisdição e competência dos juízes e tribunais portugueses, ao nível europeu comunitário, constitucional, civil e processual civil.

Como ventilamos anteriormente, os tribunais portugueses têm sua competência e jurisdição internacional definidas e lastradas pelas convenções internacionais de Bruxelas (27.09.1968) e de Lugano (16.09.1968), com destaque, (de nosso interesse e para abordagem posterior) para a disposição prevista na secção 06, extensão de competência da Convenção de Bruxelas, ratificada pela de Lugano. Nesta secção, as causas em que versarem matéria contratual firmado este, entre partes contratantes de qualquer país signatário da convenção, restará definido como competência estendida o seguinte: "art. 17º -1. Se, as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território do Estado Contratante, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado Contratante têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência exclusiva." (grifo nosso) Este artigo é a projeção do princípio da extensão da jurisdição e da competência, aplicada da mesma forma em âmbito interno, quando da causa se sujeitarem às partes em interesses privados. Neste caso, mesmo que Portugal fosse competente internacionalmente para conhecer da matéria, esta lhe seria facultada, em razão dos interesses das partes. (vide art. 65º, letra "d").

Na Constituição portuguesa, a jurisdição e competência para o poder judiciário, nos âmbitos de justiça comum, administrativa e constitucional, tem lugar nos artigos 7º,8º, 202º, 211º e 223º, com destaque para a transposição para o direito interno português dos tratados e convenções internacionais firmados. [28] Por seu turno, quanto às Leis, o CCP disciplina a jurisdição e competência através do Capítulo III, Secção I, artigos 15º à 20º e o CPCP tem seu disciplinamento sobre competência e jurisdição configurado no Livro II, Capítulo I, artigos 61º e seguintes, com extremo destaque para os artigos 63º e 65º.


5. NÚCLEO DO PROBLEMA: QUESTÕES PROCESSUAIS DE COMPETÊNCIA E JURISDIÇÃO EM TORNO DA INTERNET.

Superadas as fases preliminares de conceituação e definição de jurisdição e competência, bem como de seus enquadramentos legais, passemos ao núcleo do tema.

Muito embora a jurisdição e a competência sejam matérias de execução eminentemente processual, é no direito material constitucional e infra-constitucional que elas encontraram guarida legislativa. Citadas já nos tempos do direito romano, somente na década de 60 passaram a ser objeto de estudos mais apurados, posto que, na altura, novas ideias políticas iam surgindo sobre aglutinação de mercados e blocos económicos (globalização). Naquele preciso momento histórico, os interessados no assunto, pertinentemente, entenderam de regulamentá-las em um espectro mais abrangente.

Assim, com o firme propósito de estender alguns aspectos jurisdicionais, dantes concentrados e limitados nos Estados unitários, firmou-se a Convenção de Bruxelas, protocolada por vários países da CE em Setembro de 1968. Quase que, como uma profecia, este diploma legal acabou por atender, em parte, as dificuldades que seriam enfrentadas com o comércio eletrônico, pois é ele que geri até os dias de hoje as disciplinas que tratam da jurisdição e competência, notadamente, as de âmbito internacional. Embora avançado para o seu tempo, não tinha como ter previsto no corpo do texto convencionado o surgimento da Internet, posto que a mesma só se deu no ano seguinte, em 1969. Entretanto, o preciosismo dos convencionadores da época, tem ajudado a solver, em medidas limitadas, vários dos problemas gerados pelo uso da rede.

A previsão legal limita-se ao espectro civil e comercial. [29] E é neste último que incide o pilar de quase toda problemática envolvendo a jurisdição e competência na Internet.

É topoi afirmar, que os países desenvolvidos são os maiores concentradores de relações negociais e comerciais, onde a compra e venda e circulação de mercadorias envolve bilhões [30] de euros, dólares ou qualquer outro papel – moeda de grande valor. Mas é de lá que também saem os maiores investimentos em tecnologia internáutica. Toda esta estrutura mercadológica ganhou uma nova dimensão com o surgimento dos e-Commerce e e-Business, que tiveram desenvolvimento acentuado principalmente nos Estados Unidos e no Japão. Pessoas físicas (singulares) e jurídicas (colectivas) passaram a gerir imensas transações via Internet, comprando e vendendo mercadorias em rede. Em pouco tempo, metade das transações negociais passou a ser feita pela nova via tecnológica da informática. Entretanto, com a mesma rapidez, este comércio começou a enfrentar problemas de diversas ordens; técnicas, de apoio logístico, fiscal (tributário) e jurídicos. E aqui, não obstante a essência do texto da Convenção de Bruxelas poder ser aplicada a qualquer caso prático de conflito de jurisdição ou competência no âmbito do comércio internacional, é inevitável que se assevere, que o texto já está obsoleto. Quando por exemplo, faz preterir questões fiscais e aduaneiras, deixa de contemplar muito dos outros questionamentos incidentes sobre jurisdição e competência na rede. A questão tributária é ponto importante também no cenário da Internet, porém não é o tema de nossa abordagem. O que se quer mostrar é a superação gradativa da Convenção de Bruxelas para o pleno disciplinamento da matéria.

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Neste sentido, a CNUDCI – Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional, (na sigla inglesa: UNCITRAL), com sede em Viena e criada para harmonizar e unificar as progressivas mudanças na estrutura do mercado internacional, em complementação às normas pactuadas na Convenção de Bruxelas, bem como, para incorporar às demais diretivas europeias existentes, dentre elas a 2000/31/CE, desenvolveu o que é considerado hoje, o melhor modelo de gestão comercial internacional via Internet [31].

Este modelo prevê, além de outros pontos, a validade dos dados armazenados em suporte informático como meio de prova em litígio, a questão do momento de formação dos contratos eletrônicos e principalmente, a despeito das questões aqui tratadas, definindo regras sobre o local de recebimento e envio de mensagens de dados eletrônicos. Esta última tem suma importância para o direito internacional privado, pois dela depende não só a apuração do foro competente, mas também a determinação da lei a ser aplicada à uma determinada relação contratual. A lei estabeleceu assim, uma regra básica: a de que as mensagens são consideradas como enviadas e recebidas no local de estabelecimento do remetente e do destinatário (art. 15, item 4 da Lei Modelo).

Entende-se por estabelecimento, a sede física das partes envolvidas na interação. Sede física subentende-se o domicílio residencial ou comercial e não o domicílio informático. [32] Muitos juristas doutrinam que o domicílio informático, conhecido como endereço eletrônico, tem relevância para a fixação da competência e jurisdição, posto que, é através dele que o eventual ato lesivo será veiculado, ou seja, é através do endereçamento eletrônico situado no "Site", ou na "Home Page" que o agente se utilizará para, por exemplo, passar "spam". [33] Assim, o endereçamento eletrônico seria o espaço virtual de identificação do agente utilizador [34], mas não necessariamente o seu domicílio legal.

Ora, é evidente que não se pode entender o endereço eletrônico como sendo o domicílio do agente. Aqui há que se esclarecer fatores de limitações técnicas e, porque não dizer, jurídicas. O endereço eletrônico não tem abrigo no computador do agente transgressor. O mesmo, como já mencionado, é um espaço virtual disponibilizado na rede por um provedor de acesso, que pode estar localizado em qualquer parte do globo. Assim, por exemplo, o agente ‘A’ pode residir em Portugal e o seu provedor ‘X’ ficar localizado na França. Nem por isso o agente ‘A’ deixaria de ter acesso ao seu computador para navegar na Internet. O que o endereço eletrônico faz é permitir a comunicação entre redes em várias escalas e, como os demais serviços da rede, totalmente sem limitações quanto ao seu emprego e uso. Portanto, não se pode fixar o foro de competência do Estado francês para punir o agente ‘A’, pois o domicílio, ou o estabelecimento (como menciona o artigo 15º do diploma legal em apreço) deste é em Portugal.

Entendemos neste caso, que o ato está atrelado ao princípio subjetivo, ou seja, será sempre do sujeito transgressor a responsabilidade direta pelo dano causado e como tal, terá o braço imperioso da lei que alcançá-lo em seu domicílio real. Neste sentido, a Lei Modelo também prevê a impossibilidade das instituições provedoras terem foro de competência. Essa regra tem a grande virtude de afastar (salvo quando as partes acordam o contrário, pois a regra do artigo 15 não é cogente, ressalvando expressamente a possibilidade de as partes convencionarem de modo diferente – direito disponível já mencionado) a possibilidade de ser tomada a localização do provedor, como local para definir questões relativas à jurisdição. Os provedores de acesso à Internet são os intermediários da comunicação eletrônica, pois funcionam como condutores das mensagens de dados, que armazenam em seus sistemas. Quando se trata de definir um problema relacionado à jurisdição, sempre se questiona a possibilidade de se adotar o estabelecimento físico do provedor como o foro competente. A nova regra supera esse problema adicional, justamente quando delimita o foro competente como sendo o do estabelecimento de uma das partes envolvidas na relação contratual, nunca o do simples intermediário da comunicação informática.

Omar Kaminski [35] lecionando sobe o tema, aduz mais: "A regra em comento (art. 15 da Lei Modelo) tem ainda outro ponto positivo que merece destaque. É o de estabelecer uma presunção irrefutável quanto a um fato jurídico: o de que o local de expedição ou recebimento de uma mensagem eletrônica será sempre o do estabelecimento dos contraentes, independentemente da localização física da pessoa deles. A lei introduz uma clara distinção entre o local considerado de envio ou recepção da mensagem (que será sempre o do estabelecimento, salvo convenção em contrário) e o lugar em que eventualmente possa estar localizada a parte no momento em que efetivamente a remete ou recebe. Por força dessa regra, é indiferente se um dos contraentes envia ou recebe a mensagem em local situado fora do território de jurisdição ao qual está vinculado seu estabelecimento. Por exemplo, pode ocorrer de a parte enviar ou receber mensagem de e-mail por ocasião de viagem a lugar remoto, distante da localidade de seu estabelecimento, onde se conecta a outro provedor para acessar a Internet. Tal circunstância em nada altera a presunção legal. Sempre que outras normas jurídicas (p. ex., normas relativas à formação dos contratos ou normas de Direito internacional privado) requererem que se determine o lugar de recepção ou de expedição de uma mensagem eletrônica de dados, deve-se recorrer à fórmula do lugar do estabelecimento.

É importante observar que a intenção da lei foi a de estabelecer, como elemento determinante, um vínculo razoável entre a parte e o que se considere lugar de expedição ou recepção de uma mensagem eletrônica de dados, e que o outro contraente possa facilmente identificar esse lugar. Isso é perceptível nas alíneas a e b do seu artigo 15, que plantou regras subsidiárias para as hipóteses em que a parte tem múltiplos estabelecimentos ou não possui nenhum. Para o primeiro desses casos, a lei indica como o lugar que se considera enviada ou recebida a mensagem "aquele que guarde a relação mais estreita com a transação subjacente ou, caso não exista transação subjacente, o seu estabelecimento principal". No segundo deles, quando a parte não possui estabelecimento comercial, a solução criada pela lei foi a de se levar em conta "a sua residência habitual". Essa última regra, como se vê, tem aplicação para os casos em que o participante da comunicação eletrônica é uma pessoa física ou age em seu nome".

Vê-se pois, que a Lei Modelo atingiu seu escopo e traçou um novo marco no ordenamento jurídico mundial, notadamente quanto às questões de jurisdição e competência para solver lides internáuticas.

Atrelada às demais Convenções e Diretivas europeias, a Lei fez transpor aos Estados a complementação das regras essenciais, mas lacunosas quanto às concepções iniciais e tradicionais de jurisdição e competência, abordadas no intróito deste trabalho. As conceituações clássicas, doutrinárias ou não, apontadas ab initio sobre jurisdição e competência, embora plenamente vigentes e, até mesmo, por constituírem a essência da atividade jurisdicional do Estado, necessitavam sobremaneira de uma imediata ampliação de seu alcance, principalmente no que concerne aos "traumas jurídicos" provocados pelo surgimento da rede.

Mas, não só os europeus se preocuparam com a conformação de um novo direito processual internacional. Também nos Estados Unidos muitos esforços vêm sendo feitos pelo Congresso Norte-americano em aprovar leis que regulamentem a matéria. Entretanto, enquanto não a tem por completo delineada, vigora-se pelas terras Yanques o princípio jurisdicional chamado de "minimum contact", ou seja, uma mínima relação existencial entre o sujeito ativo ou passivo do dano provocado na relação comercial eletraônica e a jurisdição do Estado em que o ato foi praticado. Trata-se de nítida exclusão a tese dantes ventilada de que poderia ser foro competente também, o foro eletrônico. Na aplicação deste princípio, a Corte Federal do Estado de Ohio decidiu pelo caso Compuserve vs. Patterson. O caso se tornou famoso pela dissidência que provocou no entendimento dos tribunais de lá.

Em suma, tratou-se de um caso em que um usuário residente no Texas que tinha firmado contrato com a Compuserve, provedora americana com sede no estado de Ohio se envolveu em uma pendência judicial com a mesma. Esta para ver dirimida e garantida sua pretensão, suscitou a apreciação da Corte Federal de Ohio. No contrato houvera sido firmado que seria a referida corte de Ohio, a competente para conhecer de eventual lide. Entretanto, a Corte se julgou incompetente para julgar a questão, face ao que chamou de inexistência de um critério de coligação física que vinculasse o usuário do Texas à esfera jurisdicional do Estado. [36]

Data máxima vênia, este entendimento não pode prosperar, por infringir o princípio elementar do direito processual, que trata de direitos disponíveis. Como se viu ao longo de toda a exposição, a lei consagra que as partes podem eleger a sede do foro competente quando assim o permitir. Isto ocorre, verbi gratia, quando o direito não envolver interesse público e a norma não for cogente. Agindo assim, a douta Corte Judicial Federal americana preteriu um direito contratual garantido. Entendendo desta mesma forma, tal decisão foi reformada pela corte superior, que em grau de apelação sentenciou que a estipulação contratual de que o Estado de Ohio seria o competente para julgar a matéria, atenderia por completo o critério da mínima correlação "sujeito-jurisdição". Ou seja, a Corte Federal de Ohio teria fundamentos jurisdicionais suficientes para julgar o caso. Mas, como bem observa Carlo Sarzana: "Degli ondeggiamenti della giurisprudenza satunidense è possibile rilevare come nel campo delle vendite telematiche l’inesistenza di un critério certo di riferimento, posa determinare una crisi della effettività della tutela, risolta solo in parte dal rígido critério di collegamento della qualità delle parti."

De outro modo, este entendimento também é esposado pela legislação que diz respeito à figura jurídica do consumidor, que já se encontra devidamente legislada e regulada em quase todo o globo. Na realidade, a Convenção de Bruxelas já a contemplava na Secção IV, artigo 13º e seguintes e estipulava um foro especial para este tipo de contratante, é o chamado foro privilegiado. No Brasil, como em outros países, o consumidor tem forte influência nas disputas do e-Commerce, mas é reconhecidamente sujeito à vulnerabilidade em relação ao contratante fornecedor. Deste modo, a legislação brasileira, Lei nº 8.078/90 amparou aquele que é reconhecidamente a parte hipossuficiente na relação contratual, instituindo inclusive, a inversão do ônus da prova com o objetivo de facilitar a sua defesa.

Os consumidores que atuam pela via eletrônica são, hoje, uma realidade irrefutável. As autoridades europeias vêm demonstrando grande preocupação quanto a afirmação dos direitos a serem protegidos no e-Commerce. Mas a proposta de Diretiva de Comércio Eletrônico apresentada pela CE recebeu críticas fervorosas, dentre elas a de Alexandre Dias Pereira que preceitua: [37]"Apesar de as críticas atingirem outros pontos da Proposta, no seu cerne esteve o princípio do país de origem. Este princípio significaria que os provedores de serviços da sociedade da informação teriam que respeitar (apenas) a legislação do Estado-membro no qual estivessem estabelecidos, mas já não a legislação de outros Estados-membros nos quais os seus serviços pudessem ser recebidos. Em consequência da aplicação universal deste princípio, os direitos dos consumidores poderiam ser afectados por várias razões. Primeiro, os prestadores destes serviços procurariam estabelecer-se em Estados-membros com padrões normativos de protecção dos consumidores menos exigentes. Com efeito, estando sujeitos apenas à legislação de um Estado-membro, os prestadores destes serviços poderiam ser conduzidos a escolher o Estado-membro com padrões normativos menos exigentes em matérias de direitos dos consumidores, para aí se estabelecerem". Ora, com acerto verberou este catedrático da Universidade de Coimbra, em contra partida ao princípio citado, posto que, o intuito da Proposta de Diretiva para o Comércio Eletrônico é assegurar um alto nível de proteção dos objetivos de interesse geral, em especial a defesa do consumidor. Este é o discorrido no texto de abertura contido na proposta. Tal princípio abalaria não só a segurança jurídica trazida ao consumidor mas, certamente modificaria a estrutura de atuação do Estado jurisdicional.

Por fim, tratemos de enfrentar as questões propostas e traçar uma construção subjetiva do tema.

Sobre o autor
Glauco Cidrack do Vale Menezes

Mestre em Ciências Jurídico-Processuais pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza; professor de Direito Civil e Processo Civil da Faculdade Farias Brito; Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Glauco Cidrack Vale. Questões processuais de jurisdição e competência em torno da Internet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3613. Acesso em: 4 nov. 2024.

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