4. OS DIREITOS DAS VÍTIMAS E A CONDENAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO
Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Estado brasileiro violou o direito à vida (art. 4.1), à integridade pessoal (art. 5), à liberdade pessoal (art. 7), ao reconhecimento da personalidade jurídica (art. 3), à liberdade de pensamento e expressão (art. 13) e às garantias (art. 8) e proteção (art. 25) judiciais, todos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos. Não obstante, ainda entendeu que o artigo 5 (direito à integridade pessoal) foi também violado em relação aos familiares dos desaparecidos, pois “geram sofrimento e angústia aos familiares das vítimas diante da falta de notícias sobre o paradeiro de seus entes queridos. A violação da integridade psíquica e moral dos familiares é uma conseqüência direta”25. Esta afirmação se justifica na medida em que o artigo 5 prevê o direito à integridade pessoal, referindo-se não apenas à integridade física mas também à psíquica e moral: as últimas continuam sendo abaladas pela impunidade e pela ausência de informações a respeito do paradeiro de seus parentes. A Lei de Anistia, interpretada bilateralmente, violaria especialmente os artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial), impedindo que as vítimas do regime de exceção possam buscar os seus direitos no Poder Judiciário, pois “ao impedir o acesso aos procedimentos penais e/ou cíveis, as anistias também violam o direito à proteção judicial ou a um remédio efetivo”26.
Também teriam sido – e ainda estariam sendo – violados os artigos 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica) e 13 (liberdade de pensamento e expressão), em razão da indefinição jurídica que toma conta da figura do desaparecido: não está entre os vivos, mas também não se pode afirmar que está morto. A Comissão Interamericana defendeu que, “o desaparecimento como violação de múltiplos direitos, procura e produz a anulação da personalidade jurídica da vítima.”27 Neste raciocínio, o direito à liberdade de pensamento e expressão também encontram-se aviltados na medida em que os fatos não se tornam conhecidos.
Foi pedido à Corte Interamericana de Direitos Humanos que obrigasse o Estado brasileiro a promover a persecução penal dos crimes contra a humanidade praticados durante o regime de exceção, publicando o resultado das investigações. Requereu-se, ainda, a abertura de todos os arquivos estatais referentes ao conflito – viabilizando a localização dos corpos dos militantes desaparecidos –, além da condenação do Brasil a instituir programas de direitos humanos em todos os ramos de suas Forças Armadas, a indenizar (incluindo o tratamento psicológico) os familiares e a tipificar o delito de desaparecimento forçado.28 Nos dias 20 e 21 de maio de 2010, realizou-se, em São José da Costa Rica, uma audiência pública da Corte Interamericana, em que foram ouvidos os representantes das vítimas, testemunhas, peritos e representantes do Estado brasileiro. A sentença seria proferida até o final do ano.
Considerando a jurisprudência construída pela Corte Interamericana de Direitos Humanos até o momento, pode-se dizer que a improcedência da referida demanda era mais do que improvável. São inúmeros os casos em que a Corte decidiu pela invalidade das leis de anistia para os crimes contra a humanidade. O primeiro destes episódios foi o Caso Barrios Altos x Peru, envolvendo o massacre de quinze pessoas, em 1991, durante a sanguinária guerra contra a subversão desenvolvida pelo governo de Alberto Fujimori: “Concluiu a Corte que as leis de ‘autoanistia’ perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade”29. Nesse mesmo sentido, sobrevieram as decisões do já mencionado Caso Almonacid Arellano x Chile e do Caso La Cantuta x Peru, entre outros. Assim, em 14 de dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos divulgou a sua sentença no Caso “Guerrilha do Araguaia” x Brasil, proferida em 24 de novembro de 2010, condenando o Estado brasileiro a promover a persecução penal dos crimes contra a humanidade.
De acordo com a sua competência temporal, a Corte Interamericana reconheceu que não decidiu a respeito de fatos praticados anteriormente ao seu reconhecimento pelo Brasil – torturas e execuções extrajudiciais de pessoas já identificadas através de ossadas. Entretanto, o órgão dispôs que “tem competência para analisar os supostos fatos e omissões do Estado, ocorridos depois da referida data, relacionados com a falta de investigação, julgamento e sanção das pessoas responsáveis”30, sem esquecer que os desaparecimentos forçados persistiram após 10 de dezembro de 1998.
Na análise de mérito, como já era esperado – tendo em vista o atual cenário brasileiro em matéria de justiça transicional –, as alegações da CIDH foram acolhidas e a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Estado brasileiro, entre outras coisas, além de promover a persecução criminal dos responsáveis pelas referidas atrocidades, disponibilize as informações existentes sobre o conflito, empenhe-se para localizar os corpos, institua cursos de direitos humanos nas Forças Armadas e, ainda, realize um ato público no qual seja reconhecida a sua responsabilidade internacional pelas violações julgadas.
Em atenção à Lei de Anistia, a Corte entendeu que a interpretação beneficiadora dos crimes contra a humanidade é incompatível para com a Convenção Americana de Direitos Humanos, carecendo de quaisquer efeitos jurídicos – tendo “semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.”31 Por conseguinte, no que se refere à interpretação e aplicação da Lei de Anistia, a sentença não se limitou aos fatos praticados durante a repressão à Guerrilha do Araguaia, devendo ser aplicada a todos os delitos contra a humanidade que ocorreram na vigência do regime de exceção instalado a partir de 1º de abril de 1964.
5. A HIERARQUIA DOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS
Antes de se passar à análise dos efeitos e das possíveis consequências desta sentença no direito interno, necessário se faz esclarecer o exato tratamento dispensado pelo ordenamento pátrio à Convenção Americana de Direitos Humanos. Para atingir essa finalidade, deve-se fazer um breve passeio pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da força normativa atribuída aos tratados internacionais de direitos humanos.
Em 1977, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 80.004/SE, decidiu pela paridade hierárquica entre os tratados internacionais e as leis federais. Ora, estando eles em planos jurídicos idênticos, qualquer aparente antinomia é resolvida pela aplicação do critério cronológico, podendo uma lei ordinária revogar um tratado e vice-versa. Este cenário foi totalmente alterado pela Constituição da República de 1988, haja vista o art. 5º, § 2º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Parte da doutrina defende, desde a promulgação da Constituição, que estariam constitucionalmente garantidos os direitos previstos em tratados de direitos humanos que o Brasil seja signatário, em consonância também com o art. 4º, II, que estabelece a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais da República Federativa do Brasil. Segundo Flávia Piovesan, “a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte.”32 Esta posição parece ser a mais razoável, uma vez que, do contrário, perde-se a razão de o citado dispositivo estar embutido justamente no art. 5º da Constituição Federal, entre os direitos fundamentais. Ademais, tendo em vista que estes últimos devem ser interpretados ampliativamente, é preciso reconhecer que a norma não fez qualquer referência a uma suposta hierarquia infraconstitucional destes pactos internacionais. “Entretanto, os tratados e convenções que não versam sobre direitos humanos continuam tendo hierarquia infraconstitucional, como evidencia o art. 102, III, “b” da Constituição Federal de 1988, que confere ao STF a competência para julgar “as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”.
Firmaram-se, então, quatro correntes distintas acerca da hierarquia dos tratados de direitos humanos na nova ordem constitucional: enquanto alguns autores defendem a constitucionalidade, com base no art. 5º, § 2º da Constituição da República, outros ainda seguem sustentando a paridade para com as leis federais. Uma terceira corrente adere à supraconstitucionalidade e, a outra, à supralegalidade, subordinada à Constituição. Neste cenário e com o objetivo de pôr fim às polêmicas referentes à hierarquia dos tratados de direitos humanos, a EC nº 45/2004, acrescentou o parágrafo 3º ao art. 5º, equiparando às emendas constitucionais somente os “tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros”. A norma, ao seu lado, não tratou da hierarquia dos instrumentos incorporados antes da sua publicação, fazendo com que parcela da doutrina novamente se manifestasse em defesa do status constitucional dos mesmos.33
Esta reforma provocou uma reviravolta na jurisprudência. No RE nº 466.343, julgado em 22 de novembro de 2006, o Supremo Tribunal Federal finalmente refutou a tese da paridade hierárquica entre os tratados internacionais de direitos humanos e as leis federais, alterando o seu entendimento em relação à possibilidade de prisão por dívida do depositário infiel34: o tribunal, por unanimidade, declarou a impossibilidade da prisão, dividindo-se entre as teses da supralegalidade – majoritária – e da constitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos.
6. CONVENÇÃO AMERICANA X LEI DE ANISTIA: CONFLITO APARENTE DE NORMAS
Pergunta-se, então: quais as implicações desta condenação, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal já decidiu internamente sobre a Lei de Anistia? Ainda não há elementos para uma resposta segura, que só será possível depois de percorrido este processo histórico. Contudo, em 1993, foi solicitado à Corte um parecer consultivo a respeito de quais seriam as consequências jurídicas de uma lei interna que violasse a Convenção. Em sua manifestação, o Estado brasileiro argumentou que a controvérsia seria resolvida através da aplicação do critério hierárquico, sempre a depender do status normativo das disposições contrapostas, além de que os agentes públicos estariam subordinados à Constituição da República e não poderiam invocar quaisquer normas internacionais para descumpri-la.35 Tal posicionamento reflete a adoção da concepção dualista, separando a ordem jurídica nacional do direito internacional, na qual o último só pode ser considerado se e quando incorporado ao ordenamento interno. O monismo, por outro lado, admite a aplicação direta das normas internacionais, internalizadas ou não.
Isso é deveras relevante porque a condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, após a improcedência da ADPF nº 153, trouxe à baila a existência de uma contradição entre a Lei de Anistia e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Não se trata de um conflito entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana, a ser solucionado por uma suposta supremacia de qualquer deles. A solução para estas decisões contrárias não passa pela preponderância de um tribunal sobre o outro, mas através da análise dos diplomas legais envolvidos.
Explicar-se-á. O STF, no julgamento da ADPF nº 153, entendeu que a Lei de Anistia, interpretada bilateralmente, não violaria a Convenção Americana. O Ministro Celso de Mello, inclusive, reconheceu a força vinculante da Corte Interamericana, mas ressaltou que o caso brasileiro seria diferente dos seus precedentes. Passados alguns meses, o Brasil foi condenado a não utilizar a anistia para proteger os crimes contra a humanidade. A competência do órgão jurisdicional internacional foi reconhecida por meio do Decreto Legislativo nº 89, de 3 de dezembro de 1998, que assegura em seu art. 1º, caput, a “competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos”. Ou seja: o Brasil reconheceu como vinculante a interpretação que for atribuída, pela Corte, à Convenção Americana, quando esta for objeto de apreciação. No mesmo sentido, estabelece o art. 62(3) da Convenção Americana que a “Corte tem competência para conhecer de qualquer caso, relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção, que lhe seja submetido”. À Corte Interamericana cabe decidir sobre a interpretação e/ou a aplicação da Convenção Americana. Quando julgada a ADPF nº 153, a sentença do Caso “Guerrilha do Araguaia” x Brasil ainda não havia sido proferida, de sorte que o STF não estava vinculado a qualquer interpretação da Convenção Americana, entendendo que esta não contrariava a Lei de Anistia. A partir do momento em que a Corte Interamericana interpretou a Convenção como incompatível para com a autoanistia aos crimes contra a humanidade, esta é a interpretação que deve ser adotada internamente.
Apresenta-se, então, o seguinte cenário jurídico: de um lado, a Lei de Anistia interpretada pelo STF; de outro, a Convenção Americana interpretada pela Corte Interamericana, um instrumento previsto na própria Convenção. A primeira anistiaria os torturadores, enquanto a segunda entende por inválida a anistia aos crimes contra a humanidade. Não há qualquer conflito entre os tribunais, mas entre as duas normas por eles interpretadas. Reitere-se: a solução não passa pela submissão de uma decisão em benefício da outra, mas pela aparente antinomia desvendada.
O Estado brasileiro reconheceu de forma voluntária, no exercício pleno de sua soberania, a competência obrigatória da Corte para interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos nos casos em que for parte, e assim foi feito. Por outro lado, o Brasil sinalizou que uma eventual contradição entre a Convenção Americana e uma lei federal – no caso em tela, a Lei de Anistia – resolver-se-ia pelo critério hierárquico dos diplomas legais envolvidos, sendo imprescindível o estudo acerca do status normativo dos tratados. Sabendo-se que a Convenção tem, no mínimo, hierarquia supralegal, não há que se duvidar da sua prevalência sobre a Lei de Anistia, uma lei ordinária.
Sendo vinculante a decisão da Corte, a Lei de Anistia, para sobreviver, deve ser interpretada de forma que não viole a Convenção Americana de Direitos Humanos. Uma norma hierarquicamente superior logicamente sobrepõe-se à inferior no que esta dispuser em contrário, e, segundo a referida interpretação vinculante da Corte Interamericana, a Convenção Americana é incompatível com a suposta anistia bilateral. Para o Ministro Gilmar Mendes, que no RE nº 466.343 advogou pela atualização jurisprudencial do Supremo Tribunal e filiou-se à tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, o estudado Pacto de São José da Costa Rica “torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação”36. Nesse raciocínio, aplicando imediatamente o critério hierárquico, a Lei de Anistia, por ser uma lei ordinária, cederá à aplicação da Convenção Americana. Ademais, mesmo que se adote a vetusta tese da paridade entre os tratados de direitos humanos e as leis federais, a aparente antinomia seria solucionada através da aplicação do critério cronológico, novamente em benefício do instrumento internacional.
Por fim, há ainda um último método a ser utilizado na resolução de conflitos entre tratados de direitos humanos e leis internas. “E o critério a ser adotado se orienta pela escolha da norma mais favorável à vítima.”37 Positivado no artigo 29 da Convenção Americana, estabelece que na “vigência simultânea de vários sistemas normativos – o nacional e o internacional – ou na de vários tratados internacionais, em matéria de diretos humanos, deve ser aplicado aquele que melhor protege o ser humano.”38 Ou seja, em caso de aparente conflito, deve prevalecer a “norma que melhor e mais eficazmente proteja a dignidade humana.”39 Mais uma vez, parece claro que devem prevalecer os direitos das vítimas, previstos no Pacto de São José da Costa Rica, tendo em vista que protegem muito mais a dignidade humana do que a impunidade dos delitos contra a humanidade. Percebe-se que, diante dessa aparente antinomia, a anistia bilateral só poderia sobrepor-se à Convenção Americana caso tivesse status constitucional, e ainda adotando-se a tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos.40
É evidente que a anistia foi recepcionada. Cabe saber, apenas, em que termos isso ocorreu. Em 1988, com o surgimento da nova ordem constitucional, a anistia política foi então constitucionalizada pelos artigos 8º e 9º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com a regra geral contida no art. 8º, caput41, concedendo anistia apenas aos que “foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares”. A simples leitura do dispositivo é suficiente para verificar que a Constituição agraciou somente os perseguidos políticos, não fazendo qualquer referência aos torturadores, pois estes não foram atingidos por atos de exceção. Concentrou-se na reparação àqueles que foram prejudicados pela ditadura. Como afirma Lenio Streck, houve “anistia apenas aos crimes políticos; a tortura ficou efetivamente fora do seu alcance; o art. 8. do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) não concede anistia a qualquer atitude violadora dos direitos humanos”.42 Por sua vez, o art. 5º, XLIII43 da Constituição Federal considera a tortura insuscetível de anistia. Enfim, a partir de uma interpretação sistemática, torna-se irreal defender que o poder constituinte originário anistiou as sevícias institucionalizadas nos porões. Mesmo que recepcionada, como entendeu o STF, a anistia bilateral não foi elevada a um patamar constitucional.