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Desaparecimento forçado, anistia e revanchismo

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Agenda 07/03/2015 às 08:22

4. REVANCHISMO E “REVISÃO” BILATERAL DA ANISTIA

Recorrentemente, atribui-se a qualidade de revanchista a qualquer tentativa de reconstrução dos fatos, como se Verdade, Memória e Justiça pudessem ser confundidos com vingança. Revanchismo, sim, seria pleitear que os torturadores sofressem as mesmas agruras que impuseram às suas vítimas: que fossem interrogados nus pendurados em um “pau-de-arara”, ou então que fossem sentenciados à morte e seus parentes ficassem por quarenta anos buscando seus corpos em cemitérios clandestinos. O clamor é por Justiça, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa; não por vingança.

Argumenta-se, ainda: por que não “revisar” a anistia também para os atos da luta armada? Afinal, também há inúmeros episódios reprováveis. Contudo, note-se que a violência praticada pelos agentes da repressão política está em plano diametralmente oposto à empregada pelos perseguidos: enquanto os últimos agiam em resistência a um Estado tirânico, os primeiros derrubaram o poder eleito constitucionalmente pelo voto e instituíram uma ditadura assassina de seus opositores. Manifestar-se pacificamente contra o regime implicava ser submetido a torturas e/ou assassinatos – como tantos e tantos foram –, de sorte que, para os que não aceitaram a submissão, as armas surgiram como meio de defesa da própria vida – ou não – perante os potenciais martírios do porão. O poder foi assaltado e o governo torturava e matava por questões ideológicas, sempre em nome de uma famigerada segurança nacional. “Consequentemente, era lícito lutar contra o establishment”28.

Pouco importa qual tenha sido a ideologia fundamentadora dos membros da resistência, o fato é que estes só recorreram à violência política pela total ausência de liberdades, por não haver mais espaço para a luta democrática. Deputados foram cassados e partidos colocados na ilegalidade; ser esquerdista – mesmo que de forma pacífica – era uma heresia, punida extrajudicialmente com sequestro, tortura e morte. Durante a ordem democrática, a batalha ideológica sempre foi travada por meio da legalidade; a partir da perseguição, alguns opositores não abriram mão do direito de resistência. A luta armada, em verdade, serviu mais para exercer o direito de professar determinada ideologia do que para realmente ameaçar o poder constituído. Foi, sim, um instrumento de manifestação política, semeada no terreno fértil da impossibilidade de expressão e participação. Não havia mais um caminho pacífico; enquanto houve, ele foi utilizado. Sintetizando este processo, é emblemático o caso de Carlos Marighella, símbolo da resistência brasileira e “inimigo número um” da ditadura, que recorreu à violência somente depois de ter sido duramente perseguido em razão de sua opção ideológica. No dia 9 de maio de 1964, pouco mais de um mês após a quebra da legalidade, o futuro guerrilheiro ainda militava no PCB – contrário à luta armada – quando foi baleado no peito pela polícia dentro de um cinema carioca, no bairro da Tijuca. Libertado, escreve o Por que resisti à prisão, elegendo a resistência como única forma possível de fazer frente às perseguições:

Ao escrivão declarei que – como é público e notório – sou comunista. Sou dirigente comunista. Não abdicarei jamais de minha condição de comunista. Este direito eu o tenho assegurado pela Constituição. Não há força humana que me possa afastar do ideal que abracei. É uma questão de convicção. Minhas idéias estão expostas em artigos e trabalhos escritos. São coisas públicas e legais, do conhecimento de todo o mundo – obviamente também da polícia.29

Em 1967, devido a estas divergências, foi expulso do PCB, vindo a fundar o Agrupamento Comunista de São Paulo, embrião da ALN30 – a mais ativa organização de guerrilha urbana. Sua histórica trajetória teve fim em 4 de novembro de 1969, quase um ano após a edição do AI-5, assassinado pela equipe do Delegado Sergio Fleury, na Alameda Casa Branca, em São Paulo, e simboliza o fenômeno da luta armada como exercício legítimo do direito de resistência: perseguido, baleado e preso por delitos de opinião, precisou se armar para se manifestar. A violência revolucionária, em regra, surgiu como a última opção dos opositores, resultante da total impossibilidade de participação política. Até mesmo Ernesto “Che” Guevara, um dos maiores defensores destas táticas, elencava a ausência de democracia como necessária condição para a política em armas: “Num país onde exista um governo eleito pelo voto popular [...] o surgimento do foco guerrilheiro é impossível por não se terem esgotado todas as possibilidades da luta parlamentar.”31 Resta claro que a subversão foi consequência direta da perseguição política – o que já não pode ser dito no contexto de uma democracia. Significou, na realidade, o exercício de resistência ao autoritarismo, repressor cruel de qualquer atitude que eventualmente o desagradasse. Como afirmou o liberal John Locke, é legítima a rebelião contra governos tirânicos e usurpados pela violência:

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Fica evidente então que, se alguém abala um poder ao qual foi submetido pela força e não pelo direito, esta ação recebe o nome de rebelião, mas não constitui um pecado diante de Deus, que, ao contrário, a aprova e autoriza, sem dar qualquer importância aos acordos e aos pactos que intervêm, uma vez que foram extorquidos pela força. [...]

Quem quer que exerça qualquer parcela do poder por outros meios que não aqueles prescritos pelas leis da comunidade civil não tem o direito de exigir obediência, mesmo que a forma da comunidade civil seja ainda preservada, pois não se trata de uma pessoa que as leis tenham designado, e conseqüentemente não é a pessoa a quem o povo deu seu consentimento. [...]

Um homem com uma espada em suas mãos exige minha carteira na estrada, quando talvez eu não possua nem doze cêntimos em meu bolso; legalmente, eu posso matar este homem.32

De um lado, um regime militarmente organizado para perseguir seus opositores, de outro, cidadãos resistindo à tirania: a isonomia clama pelo tratamento diferenciado. Ademais, para ser viabilizada a persecução penal de fatos do período da ditadura, faz-se necessário também considerar imprescritíveis os crimes contra a humanidade, ou seja, aqueles praticados de forma sistemática contra a população civil, não contemplando as condutas dos rebeldes. Da mesma forma, referente aos crimes permanentes, só existem desaparecidos de um lado.

E, mesmo que admitida, esta “revisão” bilateral não geraria efeitos para os atos da resistência, sob pena de gravíssimo bis in idem. Os autores de “delitos” contra o regime militar já foram barbaramente torturados, mortos, processados, condenados, exilados, banidos, passaram anos em presídios, tiveram parentes presos e casas saqueadas. Já pagaram além da conta pelos seus atos; de outra parte, os agentes da repressão não foram sequer investigados. A desigualdade é gritante, ainda mais porque a suposta anistia a estes últimos teria sido concedida sem que fosse sequer identificado o beneficiário.

Resta, por último, o abismo moral que separa as práticas da resistência e as do regime: embora ocorressem “justiçamentos”33 entre os militantes, não há sequer um relato de que estupraram prisioneiras ou colocaram reféns no “pau-de-arara” para dar choques em suas genitálias, às vezes na frente dos seus companheiros. Não esquartejaram ninguém para sumir com os retalhos e fazer com que os familiares passassem a vida inteira na busca do desaparecido, sem direito à realização de um funeral. Até esse ponto, a subversão nunca foi. Equiparar as barbáries – dezenas de milhares de torturados – aos desdobramentos da desesperada luta armada significa subverter os fatos históricos.


CONCLUSÃO

Problematizando a impunidade dos crimes cometidos pelo governo de exceção e a sua relevância para a sociedade como um todo, verifica-se que o modelo de justiça de transição adotado transpassa, em consequências, o âmbito dos familiares e das vítimas do regime. Trata-se de uma questão de Estado: apenas quando devidamente concluída essa transição jurídica o Brasil poderá atingir um novo patamar democrático, desacorrentando-se de seu terrível passado autoritário e fortalecendo-se para o futuro. A não repetição de violações tão perversas está vinculada à promoção dos postulados da justiça de transição.

A responsabilização criminal pelos desaparecimentos forçados é o mínimo que a sociedade deve esperar. Trata-se da aplicação singela da lei. Ademais, essa persecução penal poderia contribuir – pelo menos em parte – com a questão dos desaparecidos, uma vez que interessaria, inclusive, aos responsáveis indicar o local do sepultamento, sob pena de, dependendo da situação, responderem por sequestro e não por ocultação de cadáver, cuja pena é significativamente menor – uma vez que a “despeito do tempo decorrido, não se pode afirmar que estejam mortas porque os corpos jamais foram encontrados”34.

Mesmo desconsiderando quaisquer razões éticas e/ou morais, os fundamentos legais para a persecução penal, nesses casos, estão presentes no próprio ordenamento jurídico, e continuam sendo desprezados por razões tão políticas e/ou morais quanto às imputadas aos defensores dessa responsabilização. Por fim, cabe aqui a observação de que tal reprimenda teria um caráter simbólico, porém histórico. O último dos fins que essa persecução penal busca é o encarceramento, levando torturadores em idade avançada para as prisões; contudo, o Estado não pode se furtar de condenar práticas tão atrozes, incluindo crimes sexuais, que ele mesmo produziu em seus porões e masmorras. Resta, então, aguardar um novo pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: Ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

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JURISPRUDÊNCIA

STF, EXT nº 1150, Rel. Ministra Cármen Lúcia, Brasília, 19 mai. 2011.

STF, EXT nº 974, Rel. Ministro Marco Aurélio, Brasília, 6 ago. 2009.

STF, HC nº 76.678/RJ, Rel. Min. Maurício Corrêa, Brasília, 29 jun. 1998


Notas

1 O julgamento dos embargos de declaração ocorreria em 22 de março de 2012, mas foi adiado a pedido da OAB

2 “Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.”

3 Art. 1º, § 2º da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.

4 PORTO, Fabíola Brigante Del. A luta pela anistia no regime militar brasileiro e a construção dos direitos da cidadania. In: SILVA, Haike R. Kleber da (Org.). A luta pela anistia. São Paulo: UNESP, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, p. 66.

5 FERREIRA, José Ignácio. Anistia: caminho e solução. Vitória: Janc, 1979, p. 77.

6 ALVERGA, Alex Polari. Novas reflexões de Alex Polari sobre Stuart. In: CABRAL, Reinaldo; LAPA, Ronaldo (Org.). Desaparecidos Políticos: prisões seqüestros assassinatos. Rio de Janeiro: Comitê Brasileiro pela Anistia, 1979, p. 119.

7 ARANTES, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha. O Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo (CBA-SP): memória e fragmentos. In: SILVA, Haike R. Kleber da (Org.). A luta pela anistia. São Paulo: UNESP, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, p. 94.

8 COMITÊ BRASILEIRO PELA ANISTIA - RJ. A Questão dos Desaparecidos. In: CABRAL, Reinaldo; LAPA, Ronaldo (Org.). Desaparecidos Políticos: prisões seqüestros assassinatos. Rio de Janeiro: Comitê Brasileiro pela Anistia, 1979, p. 21.

9 MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: anistia e suas conseqüências: um estudo do caso brasileiro. São Paulo: Humanitas, FAPESP, 2006, p. 145.

10 Artigo 2º da Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995.

11 MEZAROBBA, Glenda. Op. cit., p. 148-151.

12 SWENSSON JUNIOR, Lauro Joppert. Anistia Penal: Problemas de Validade Da Lei de Anistia Brasileira (Lei 6.683/79). Curitiba: Juruá, 2007, p. 191.

13 “Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo n.º 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-lei n.º 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.”

14 STRECK, Lenio. A Lei de Anistia, a Constituição e os Direitos Humanos no Brasil: Lenio Streck responde. Revista anistia política e justiça de transição. Brasília: Ministério da Justiça, n. 2, jul./dez. 2009, p. 25.

15 “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e droga afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;”

16 Art. 1º, caput, da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.

17 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1, 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 255.

18 STF, EXT nº 974, Rel. Ministro Marco Aurélio, Brasília, 6 ago. 2009, p. 4.

19 STF, EXT nº 974, Rel. Ministro Marco Aurélio, Brasília, 6 ago. 2009, p. 1.

20 STF, EXT nº 974, Rel. Ministro Marco Aurélio, Brasília, 6 ago. 2009, p. 12.

21 STF, EXT nº 974, Rel. Ministro Marco Aurélio, Brasília, 6 ago. 2009, p. 38.

22 Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995.

23 Seriam eles: Hélio Luiz Navarro Magalhães, Luís René Silveira e Silva, Antônio de Pádua Costa, Áurea Elisa Valadão e Dinalva Oliveira Teixeira

24 STF, EXT nº 1150, Rel. Ministra Cármen Lúcia, Brasília, 19 mai. 2011.

25 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. V. 3. 8ª ed. Niterói: Impetus, 2011, p. 440.

26 STF, HC nº 76.678-RJ, Rel. Min. Maurício Corrêa, Brasília, 29 jun. 1998.

27 “Inicie no momento em que cessar o desaparecimento forçado, considerando-se a natureza contínua desse crime.”

28 STRECK, Lenio. Op. cit., p. 28.

29 MARIGHELLA, Carlos. Por que resisti à prisão. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 38-39.

30 Ação Libertadora Nacional

31 GUEVARA, Ernesto. Projeções sociais do exército rebelde. In: SADER, Eder (Org.). Che Guevara – Política. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 82.

32 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: Ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 203-205; 210.

33 Execuções sumárias de inimigos e supostos traidores.

34 STF, EXT nº 974, Rel. Ministro Marco Aurélio, Brasília, 6 ago. 2009. p. 4.

Sobre o autor
Rodrigo Santa Maria Coquillard Ayres

Advogado. Indigenista Especializado da FUNAI, com atuação na Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena. Graduado em Direito pela PUC-Rio. Pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AYRES, Rodrigo Santa Maria Coquillard. Desaparecimento forçado, anistia e revanchismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4266, 7 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36914. Acesso em: 22 nov. 2024.

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