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Da inconsistência e irregularidade do auto de infração de trânsito

Agenda 01/02/2003 às 00:00

Sumário: 1. Breve corte no objeto de estudo. Exposição do Fenômeno Jurídico, I-- Incidência e Aplicação da Lei; 2. Conceito de Suporte fático, I- Divisão dos Elementos do Suporte Fático; 3.Breves exposição do fenômeno jurídico da incidência; 4.conceito de ato jurídico lato sensu; 5. Síntese classificatória dos atos jurídicos; 6.Consistência do auto de infração detrânsito; 7.Principais conclusões; 8.Bibliografia.


Prescreve o inciso I, do parágrafo único, do Art. 280, do CTB, que:

"Art. 281. A autoridade de trânsito, na esfera da competência estabelecida neste código e dentro de sua circunscrição, julgará a consistência do auto de infração e aplicará a penalidade cabível.

Parágrafo único. O auto de infração será arquivado e seu registro julgado insubsistente:

I – se considerado inconsistente ou irregular;

II – omissis (grifos nosso)

Assim, urge conceituar o que venha a ser inconsistência e irregularidade do auto de infração de trânsito, para isso importa trazer à baila alguns conceitos de teoria geral do direito, em especial da teoria do fato jurídico.

O fenômeno jurídico é regido pela incidência das normas jurídicas sobre os fatos componentes do mundo social, dessa incidência nascem, no mundo jurídico, os fatos jurídicos. Esses fatos jurídicos, no mundo jurídico passam por planos, que Pontes de Miranda dividiu em plano da existência, validade e eficácia.

Por isso, antes de tratarmos com maior ênfase a questão proposta, estudemos, ainda que superficialmente, o fenômeno jurídico.


1 - Breve corte no objeto de estudo. Exposição do Fenômeno Jurídico

Antes de sem ingressar no íntimo do ser ou não ser jurídico é importante fazermos um corte epistemológico entre o direito e a política, pois uma visão global e una desses dois campos pode levar ao jurista menos atento a cometer erros. Podendo se observar liberdades no campo político inadmissíveis no plano jurídico-científico. Até mesmo por que o político é pré-jurídico. A liberdade para a escolha do que se vai valorar, elevando um fato à hipótese abstrata de incidência, norma jurídica, é função política. O escolher por ser político enseja em determinada liberdade que só é mitigada quando se começa a processar legislativamente essa escolha.

A partir do momento em que é exteriorizada a vontade do legislador em valorar um fato social, criando o projeto de lei, tem início a restrição da liberdade. Nesse momento, a restrição, que é jurídica, impõe ao legislador a obrigação da observância das regras jurídicas reguladoras do processo legislativo, sob pena de poder guardar em si vício invencível, o que causará a sua nulidade.

Após a normatização dos fatos relevantes ao bem humano, a doutrina jurídica descreve esse fenômeno com a teoria do fato jurídico, que tem como princípio uma divisão entre os mundos, jurídico e social. O mundo dos fatos e o mundo jurídico são realidades diversas, apesar do segundo estar contido no primeiro, e para que ocorra a passagem de fatos lato sensu (do mundo social) para o mundo jurídico é necessário que uma norma tenha esse fato como seu suporte fático abstrato, tendo o fato se concretizado no mundo social incide sobre ele a norma jurídica o colorindo e o diferenciando dos outros fatos.

I - Incidência e Aplicação da Lei

Essas premissas podem levar a uma percepção equivocada do que é o direito, esquecendo que, apesar dos fatos jurídicos se processarem no mundo dos pensamentos, que é abstrato, ele só se efetiva no plano social. E essa efetividade, diferente da incidência, é dependente do homem, necessita de sua participação direta, interferindo nessa relação entre os mundos já citados, e, por isso, nem sempre se pode ter uma efetivação igual à incidência. O quanto mais próximo se chegar a aplicação da incidência, mais próxima se estará de uma realização menos falha.

Para podermos distinguir melhor esses dois aspectos, é importante verificar os três planos, do mundo jurídico, propostos por Pontes de Miranda. O Plano da Existência, O Plano da Validade e O Plano da Eficácia.

Plano da Existência – nesse plano acontece o que se pode chamar de introdução ao mundo jurídico, pois o fato lato sensu sai da condição de mero fato e torna-se fato relevante ao direito (jurídico), isto ocorre no momento da incidência normativa sobre o fato, que estará colorido e diferenciado dos outros. Após a introdução no plano da existência é que ele vai passar para os outros planos.

Plano da Validade – nesse plano ingressam os atos jurídicos lato sensu, cujo elemento nuclear deles é a participação volitiva do homem, que já existe juridicamente vai ser analisado e depois será validado ou invalidado, dependendo do que foi afetado no seu suporte fático, pelos vícios ou erros. Existindo assim os atos nulos [1] e anuláveis [2] que possuem como diferença básica entre eles a possibilidade de ratificação do ato anulável e da impossibilidade de convalidar o nulo.

O Plano da Eficácia – esse é o último plano por que passam os fatos jurídicos, fazendo nascer uma relação jurídica modificativa da relação social originária. É deste plano que saem as pretensões, ações, exceções, direitos, deveres, obrigações, etc. só depois de passar por este plano é que se poderá fazer uso da aplicação. É depois daqui que o direito, de modo palpável, se realiza.


2 - Conceito de Suporte fático

O dispositivo de ativação da funcionalidade do mundo jurídico é o suporte fático, que nada mais é do que o meio de transporte mais eficiente na ligação entre o Mundo Jurídico e o Mundo Fático, todos os fatos previstos em normas jurídicas ganham um modelo próprio para o seu transporte ao mundo jurídico. O detalhe mais interessante desse meio de transporte é a sua força motor que só é acionada com a concretização dos seus elementos nucleares (cerne e completantes). Isso é a sua hipótese de incidência, essa possibilidade é o que se chama de suporte fático, pois em acontecendo o fato que ela prevê, haverá a incidência e a possível aplicação, valendo ressaltar que o suporte fático não só possui a hipótese de incidência, pois como ele é uno guarda em si as hipóteses de validade e eficácia também.

Pontes de Miranda traz no prefácio do seu Tratado de Direito Privado que o suporte fático é aquilo sobre que as normas incidem, apontadas por elas [3]. E que para se descobrir o suporte fático é necessário estudar o fático, isto é, as relações humanas e os fatos, a que elas se referem, para se saber qual o suporte fático [4]. [5]

Do conceito acima se verificam duas situações distintas do suporte fático, ou seja, o estado de possível incidência e o estado de incidência. Daí a necessidade de se vislumbrar os suportes fáticos, abstrato e concreto. Quando Pontes de Miranda diz: "...aquilo sobre que as normas incidem, apontadas por elas..." vemos duas situações aquilo sobre que a norma incide – o fato concreto – e apontadas por ela – hipótese de incidência – ficando clara a distinção entre os estados do suporte fático.

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Marcos Bernardes de Mello traz na sua obra, Teoria do Fato Jurídico, que o suporte fático é um conceito do mundo dos fatos e não do mundo jurídico, porque somente depois de que se concretizam (=ocorram), no mundo e os seus elementos, é que, pela incidência da norma, surgirá o fato jurídico e, portanto, se poderá falar em conceitos jurídicos. [6]

Portanto, suporte fático é todo e qualquer fato, seja ele um evento ou uma conduta, valorado e elevado à norma jurídica, quando abstrato, e a fato jurídico quando concreto.

Deste conceito complexo é importante analisar, de forma separada, os elementos: suporte fático abstrato e suporte fático concreto.

O suporte fático abstrato é o que se pode denominar de norma jurídica, pois é justamente a abstração, traduzida por potencialidade, que o diferencia do concreto. Comumente encontra-se na doutrina a expressão "hipótese de incidência", porém a nosso juízo a expressão é incompleta. Incompleta porque o suporte fático abstrato não possui apenas a hipótese de incidência, mas as hipóteses de incidência, validade e eficácia, pois o suporte fático é uno.

Podendo apenas concretizar-se a hipótese de incidência o que faz nascer o fato jurídico, como poderão concretizar-se as hipóteses de incidência e validade, o que produz o fato jurídico válido ou inválido [7]. Ou ainda as hipóteses de eficácia ou não dos elementos essências à aplicação dos efeitos dos fatos jurídicos. Tendo sempre como exigência para a concreção dessas duas últimas hipóteses a concreção da primeira.

O suporte fático concreto é justamente o aparecimento, de modo real e concreto, no mundo social daquelas hipóteses, ou melhor, do suporte fático abstrato, o que dá início de modo infalível e inesgotável da incidência da norma jurídica. Elevando os fatos ao status de jurídicos, portanto parte do mundo jurídico, onde entrarão e sairão, modificando o mundo social.

I - Divisão dos Elementos do Suporte Fático

O suporte fático possui o que chamamos de núcleo, ou elementos nucleares, sendo esse responsável pela incidência, após a concreção dele. Vislumbra-se que na falta desses elementos nucleares, cerne e completante, a norma jurídica não poderá pintar o fato com as cores do direito e assim diferenciá-lo dos demais fatos do mundo social.

Os elementos complementares, por que complementam, fazem parte do suporte fático e atingem a validade dos atos jurídicos lato sensu, pois esse elemento contém em regra os requisitos necessários à validade. Impedindo assim que atos maculados de vícios ou erros, inobservância da forma, em regra, etc., sejam válidos e assim possam beneficiar o infrator.

Também encontramos o que se denomina de elementos integrativos, esses não fazem parte do suporte fático, mas atingem a eficácia do fato jurídico. Na falta dele os fatos jurídicos lato sensu tornam ineficazes, pois estará suspensa a sua eficácia, e.g. Contratos de Doação com condição, art. 114 e118, CC, 1916.

Como se viu o suporte fático possui elementos mais importantes, chamados de nucleares e na falta desses se afeta a existência do fato jurídico, ou seja, não poderá se atribuir ao fato denominação de jurídico, impedindo, assim a aplicação da norma a esse fato, pois os elementos concretizados não são suficientes à incidência; elementos complementares que complementam o suporte fático, afetando a validade dos fatos jurídicos ou a eficácia, havendo, assim a possibilidade de se anular ou ratificar esse fato, além da possibilidade de não se ter os efeitos do fato jurídico, aqui, nota-se que a norma incidiu e se está buscando a aplicação; os elementos integrativos existem, pois, há espécies de normas que exigem atos integrativos, estes atos não fazem parte do suporte fático, mas afetam a eficácia real ou final [8]


3 - Breve exposição do fenômeno jurídico da incidência

A incidência é efeito da norma jurídica, ou seja, eficácia da norma jurídica, não necessária eficácia do fato jurídico sobre qual ela incide, pois, mesmo sendo a norma jurídica [9] um fato jurídico o efeito não será dela, mas sim do fato jurídico que ela produzir. Portanto o efeito da norma jurídica é a incidência, que é inesgotável e infalível, quando se tratar norma jurídica geral e abstrata. Em não se tratando, por exemplo, de normas individuais e concretas, serão sempre infalíveis, porém esgotável.

O que é a incidência? "s. f. 1. Qualidade do que é incidente. 2. Ato de incindir." [10] Então incidir é o fato de sobrepor-se em algo modificando a sua natureza, isso é o que ocorre com o fato sobre qual incide uma norma jurídica, pois ele perderá a condição de mero fato do mundo social para torna-se fato jurídico, quando concretizado os elementos nucleares do seu suporte fático abstrato. O fato de incidir a norma jurídica sobre o fato, faz nascer no mundo jurídico o fato jurídico, portanto só há que se falar em incidência com a concreção suficiente do suporte fático abstrato, a palavra suficiente tem por finalidade mostrar que os elementos nucleares (hipóteses de incidência) aconteceram de modo real no mundo. e.g., o nascimento de uma criança com vida. Em verdade jamais se poderá afirmar que o nascimento aconteceu de forma abstrata, ou ele existiu ou não.

Então, ante ao que foi dito, torna-se claro que a incidência está relacionada de forma inseparável com a existência de um fato jurídico, mesmo que os outros elementos do suporte fáticos não tenham se concretizado ou até tenham, porém de modo defeituoso. Tal afirmação nos reporta a afirmativa de existirem planos diferentes dentro do mundo jurídico, pois, cada elemento do suporte fático produzirá um efeito diferente nesses planos em separado, existência, validade e eficácia. Portanto, para vislumbrar-se a incidência basta aparecer de modo concreto os elementos nucleares, v.g., art. 4º, CC,1916, que diz: A personalidade civil do homem começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro. Para que está norma incida bastará que haja um nascimento com vida para que o fato jurídico exista e produza os seus efeitos, que neste caso é a aquisição da personalidade civil, como também basta a concepção para que a lei resguarde os direitos do nascituro.


4 - Conceito de Ato jurídico lato sensu

Pelo que já foi exposto, de forma sucinta, é claro que só há que se adjetivar de jurídico aquilo sobre o que incidiu uma norma jurídica, com o ato jurídico não seria diferente, neste parágrafo, o que vamos trazer é justamente, além do próprio conceito de ato jurídico, os seus elementos nucleares, ou as hipóteses de incidência, do suporte fático.

Vejamos o que diz o mestre Marcos Bernandes de Mello em sua excelente obra, Teoria do Fato Jurídico - plano da existência, sobre atos jurídicos lato sensu:

"Denomina-se ato jurídico o fato jurídico cujo suporte fático tenha como cerne uma exteriorização consciente de vontade, dirigida a obter um resultado juridicamente protegido ou não-proibido e possível"

Pelo conceito supra se nota que o ato jurídico lato sensu é uma exteriorização da vontade [11] consciente dirigida a um fim lícito e possível, portanto, para que se tenha um ato jurídico necessitará apenas que se materialize uma exteriorização de vontade dirigida a um fim lícito e possível.

Porém não muito raro o próprio direito faz uso da forma, que de regra geral é elemento complementar, portanto, pressuposto de validade, para integrar o elemento completante do suporte fático, atrelando a existência do ato jurídico a obediência à forma prescrita. E.g., o testamento é ato jurídico no qual a forma integra o elemento nuclear do suporte fático, pois não há que se falar em testamento se este ocorrer de modo verbal. Mesmo que exista, pelo testamentário, vontade consciente exteriorizada, o fim a que se dirige essa vontade é lícito e possível, porém, se não for feita através da forma estabelecida em lei, não existirá o ato jurídico.

Diferente seria se, no mesmo exemplo, tivessem sido observados todos os requisitos de existência, mas se a vontade exteriorizada tivesse sido feita obtida por meio de coação, neste caso não se falaria em inexistência e sim em anulabilidade. Assim, como na doação com condição, enquanto a condição não se concretizar não haverá transmissão do direito, pois a eficácia está suspensa, conforme os artigos. 114 e 118 do CC, 1916. Diferente das condições resolutivas, que resolvem o negócio jurídico, existente, válido e eficaz.


5 - Síntese Classificatória dos Atos jurídicos

Os atos jurídicos são divididos em:

a-atos jurídicos stricto sensu;

b-negócios jurídicos lato sensu.

Ato jurídico diferencia-se do negócio jurídico justamente no elemento nuclear (cerne), a vontade é o principal divisor de águas entre os, ato jurídico e negócio jurídico, neste ela norteia o fim desejado, enquanto que naquele o fim é determinado pela lei, não sendo possível acordarem os sujeitos da relação jurídica sobre os seus efeitos.

Os negócios jurídicos têm como sinônimo a palavra contrato, portanto, nota-se, de logo que o fim será regido pelas partes, podendo elas direcionar o negócio jurídico de acordo com o seu querer, fazendo surgir para eles, os sujeitos dessa relação jurídica, geralmente normas individuais e concretas, ou seja, normas que tenham plena aplicabilidade aos envolvidos nessa relação e só sobre eles. Diferente de ato jurídico, pois a norma que o regula é geralmente geral e abstrata, portanto, sem destinatários certos e determinados, e.g, a criação de uma lei. Porém há exceção, e.g., a sentença condenatória prolatada pelo magistrado tem aplicação apenas para a lide em tela.

Pelo que se viu até agora, nota-se que a principal diferença entre o ato jurídico e o negócio jurídico é o elemento volitivo, pois nos exemplos dados acima o efeito final era guiado pelas partes no negócio jurídico ou pela lei nos atos jurídicos stricto sensu. Portanto, sinteticamente o ponto crucial de diferença entre os atos jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos é a vontade


6 - Consistência do Auto de Infração de Trânsito

Depois dessa brevíssima exposição do fenômeno jurídico, proposta por PONTES DE MIRANDA, a quem nos filiamos, passaremos a tratar da consistência e da irregularidade do auto de infração de trânsito, objeto desse trabalho.

Consistência, no conceito preciso de Aurélio Buarque do Holanda [12] é:

"[Do lat. consistere.]

V. t. i.

1. Ser constituído; constar, compor-se;

2. Fundar-se, estribar-se, basear-se;

3. Resumir-se, reduzir-se, cifrar-se."

Logo, ser consistente o auto de infração de trânsito é ser constituído, composto por uma informação que impute a alguém a prática de uma infração. Assim, é ter o auto de infração de trânsito a descrição de um fato sobre o qual incidiu uma norma jurídica, no caso uma norma jurídica de trânsito, fazendo nascer o fato jurídico da infração de trânsito.

Por exemplo, um cidadão estaciona o veículo em um local proibido, o agente da autoridade de trânsito, descreve no auto de infração aquela conduta e tipifica-a, ficando claro o nascimento do ato jurídico ilícito da infração. Assim, por mais que o auto de infração não atenda aos requisitos formais, previstos no art. 280, do CTB, houve a infração e isto possui, logicamente, um efeito.

Imaginemos que o auto lavrado pelo agente da autoridade de trânsito, não continha o local, a data e a hora do cometimento da infração, transcorrido o prazo para apresentação da defesa prévia (que preferimos impugnação) e também o para Recurso, mantendo-se inerte o infrator, aquele auto de infração será convalidado e o auto que era anulável torna-se válido e eficaz, fazendo nascer a relação jurídica na qual o Estado terá o direito de punir o infrator e o este a obrigação de cumprir a punição.

Acredito que já começa a se desenhar a principal diferença entre a inconsistência e a irregularidade, pois naquela não há nascimento do fato jurídico e nesta há o nascimento, mas viciado, anulável.

A polêmica surge no caso de tipificação errônea, ou seja, houve a prática de uma conduta "x" e a tipificação no auto de infração é a da norma que exigia para a sua incidência a conduta "y", neste caso, há inconsistência do auto de infração de trânsito. Isto porque, no auto não haverá a notícia de um fato jurídico, pois, se a norma tipificadora não incidiu, não há a infração contida no auto de infração, portanto, inconsistente.

Essa certeza deflue tanto da necessidade da tipificação da infração, inciso I, do Art. 280, do CTB, assim, como também, o art. 281, acima transcrito. Então, imaginemos o seguinte: o condutor é fotografado, por um instrumento de medição autônoma de velocidade, por transitar em velocidade superior a máxima permitida para a via em até 20% (vinte por cento), na foto, também fica claro que o condutor estava com parte do veículo na outra faixa. Disso são lavrados dois autos de infração, um pelo excesso de velocidade e outro por trânsito pelo contra mão, sendo que no segundo, não havia a tipificação do dispositivo infringido, apenas a seguinte expressão: transitar pela contra-mão. Pergunta-se o segundo auto de infração é consistente? A resposta, no nosso entendimento, é gritante no sentido de que não há tipificação, pois não há demonstração do dispositivo infringido. Portanto, não há tipificação e o auto de infração é irregular, pois lhe faltou o requisito do art. 280, do CTB.

Essa conclusão, que fique bem claro, não levou em questão o mérito do que venha a ser transitar pela contra-mão, pois se, no exemplo acima, levássemos em consideração tal situação, além de irregular, com certeza, o auto de infração seria inconsistente, pois não é o simples fato de parte do veículo passar alguns centímetros para outra faixa que caracteriza transitar pela contra-mão.

É de conclusão inequívoca que a consistência ou a inconsistência do auto de infração de trânsito tem intimidade com o nascimento do fato jurídico da infração, sendo, por isso, imperiosa a tipificação correta da conduta, sob pena de arquivamento. Por isso, a inconsistência, é um vício que pode ser suscitado a qualquer tempo do processo administrativo de trânsito e fora dele também, pois o pagamento da multa proveniente de auto inconsistente gera o direito de repetição de indébito, além, de outros danos previstos, tanto na Carta Magna, quanto no art. 1º, do CTB.

A irregularidade do auto de infração é inerente aos seus requisitos, ou seja, é intimamente ligada à forma do auto de infração. Ser irregular é não dispor das informações essenciais para que o infrator exerça regularmente seu direito de defesa. Noutras palavras, é suprimir os elementos prescritos pelos incisos I, II, III e V, do Art. 280, do CTB. A irregularidade do auto de infração em nada tem a ver com (in)consistência dele. Tal afirmação poderá parecer contraditória, mas não o é. Um auto de infração irregular, que traga consigo a notícia do cometimento de uma infração de trânsito, não terá seu efeito produzido por vício formal. Porém, isso não implica dizer que não houve infração. Ao revés, na maioria dos casos há a infração, mas a desobediência aos requisitos legais torna ineficaz o auto de infração de trânsito, se houver a impugnação ou recurso, posto que se estes não existirem o auto será convalidado e as imputações da multa e da pontuação serão justas.

Logo, o pagamento não será indevido, pois houve o fato jurídico da infração, o que o Estado perdeu, ao produzir o auto de infração irregular, foi o instrumento para a exigência do seu direito de punir. No momento em que não se suscita o vício em nenhuma das fases do processo administrativo de trânsito, validasse aquele instrumento, não havendo, com isso, o nascimento do direito de repetição de indébito, pois, como bem lembra o mestre MARCOS BERNARDES DE MELLO, ao qual faço uso analogicamente para o caso, quem paga dívida prescrita, paga bem, pois o direito ao crédito existia, o que não mais existia era a força para exigir aquele crédito.


7 - Principais conclusões

1 – O auto de infração é o instrumento apto a imputar a alguém uma penalidade;

2 – O auto de infração possui uma forma que deve ser seguida, sob pena de viciá-lo, fazendo com que se perca a força para a exigência do cumprimento da penalidade;

3 – O auto inconsistente é aquele que noticia coisa que, juridicamente, não aconteceu, sua cobrança gera direito à restituição do indébito, assim como indenização por danos.

4 – O auto irregular pode ser convalidado pela ausência de impugnação ou recurso, sendo justa a sua imputação de penalidade, depois de todas as fases do processo administrativo de trânsito em caso de inércia do infrator/proprietário. Imputar a mesma força da inconsistência à irregularidade, consiste em beneficiar o infrator, por isso, nosso entendimento de que a irregularidade só poderá ser suscitada no processo administrativo de trânsito somente, agora, se foi suscitada e não foi acolhida, sim poderá ser apreciada pelo Poder Judiciário, cabendo, no caso de pagamento, o indébito.

5 – Apesar de nos dois casos o julgamento administrativo ser o mesmo, ou seja, arquivamento e insubsistência do seu registro, o inconsistente nunca será passível de convalidação, pois não se valida o inexistente, diferente do irregular que o será, desde que em nenhuma das fases processual administrativa seja suscitada a irregularidade.


8 - Bibliografia

Pontes de Miranda, Francisco Cavalcante – Tratado de Direito Privado, Tomo I, Ed. Bookseller: Campinas-SP, 1999.

Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI

Mello, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico - Plano da Existência – Ed. Saraiva: São Paulo, 1998.

Legislação Consultada

Lei 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro.

Lei 9.602, de 21 de janeiro de 1998.


Notas

01. A diferença básica entre o ato inexistente e o ato nulo não é simples, mas também não é impossível, depois de conhecer os mundos já relatados, dos planos do jurídico, é mais fácil de enxergar a diferença, pois o inexistente juridicamente existe, geralmente, no mundo social, apenas não foi suporte fático concreto de uma norma jurídica. Diferente, o ato jurídico nulo, que existe no mundo jurídico, mas não alcançou o plano da eficácia, ou se alcançou e de lá não saiu, para tentar iluminar essas distinções recorremos à matemática, existe um elemento matemático que é o 0 (zero), esse elemento é real e existe, se tentarmos enquadrar esse elemento numa classificação par-ímpar, enxergar-se-á o ponto nodal da relação ato jurídico inexistente e nulo, pois ele não é inexistente, apenas é nulo. Assim, para ser nulo é necessário haver, existir.

02. Excluí o ato inexistente por não achar que ele faça parte do assunto, visto que o que inexiste juridicamente não pode receber as sanções que o direito atrela a fatos viciados ou defeituosos sendo ele um mero fato natural, por não ser ele suporte facto de uma norma, ou seja, não concretizou a situação hipotética da norma jurídica. Por isso não pode ser nem validado nem invalidado, pois no mundo jurídico ele não existe.

03. Pontes de Miranda se refere aqui ao suporte fático concreto.

04. Neste ponte Pontes de Miranda se refere ao suporte fático abstrato, mostrando a necessidade de se estudar os fatos para se descobrir qual norma jurídica incidiu sobre eles.

05. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, p. 15, ed. 1ª 1999.

06. Teoria do Fato Jurídico - Plano da Existência -, (1998:36)

07. É imperioso lembrar que é inconcebível a adjetivação de válido ou inválido para algo que inexiste (como exposto em nota anterior), portanto, quando se vislumbrar as hipóteses de validade ou eficácia em concreto ter-se-á que atrelar a hipótese de incidência. No dizer da doutrina ponteana, os elementos nucleares do suporte fático (hipótese de incidência), elementos complementares do suporte fático (hipóteses de validade e eficácia) e ainda os elementos integrativos do suporte fático (hipóteses de eficácia).

08. Para maiores informações vide Teoria do Fato Jurídico (plano da existência), Marcos Bernardes de Mello (1998:46).

09. Norma jurídica aqui se entenda aquela que passou pelo processo legislativo, ou seja, fruto da incidência de outras normas, as normas do processo legislativo.

10. Dic. On-line Michaelis uol

11. Podendo ser essa exteriorização uma declaração ou uma manifestação.

12. NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO - SÉCULO XXI

Sobre o autor
Alessandro Samartin de Gouveia

Promotor de Justiça do Estado do Amazonas. Possui graduação em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (2004). Pós-graduado em nível de Especialização em Direito Processual pela ESAMC/ESMAL(2006). Formação complementar em política e gestão da saúde público para o MP - 2016 - pela ENSP/FIOCRUZ. Pós-graduando em prevenção e repressão à corrupção: aspectos teóricos e práticos, em nível de especialização (2017/2018), pela ESTÁCIO/CERS. Mestre em direito constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: súmula vinculante, separação dos poderes, mandado de segurança, controle de constitucionalidade e auto de infração de trânsito. http://orcid.org/0000-0003-2127-4935

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVEIA, Alessandro Samartin. Da inconsistência e irregularidade do auto de infração de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3704. Acesso em: 23 dez. 2024.

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