1. Introdução
Ao longo dos últimos anos a sociedade brasileira enfrenta um grave problema que relaciona a violência e o desrespeito aos direitos humanos, e que se apresenta, por conseguinte, como um grande desafio principalmente para as instituições que lidam com a segurança pública, qual seja, a utilização de algemas.
De um lado cresce vertiginosamente os índices de criminalidade, e o clamor público por medidas capazes de obstar a violência que assola todo o país, não estando mais relacionada a uma classe social ou apenas a determinadas localidades; e, de outro, a necessidade de que os agentes de segurança pública adotem medidas efetivas, mas que não afronte os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.
Ocorre que a atuação policial clama, não raras vezes, o emprego de algemas, seja para a proteção dos agentes de segurança pública, ou mesmo para a proteção do acusado ou da sociedade.
Nesse contexto surgiram diversos questionamentos, mormente quanto a legitimidade da sua utilização, principalmente porque a sociedade viu a difusão da utilização das algemas, muitas vezes em operações policiais dignas de produções cinematográficas, em que a dignidade do suposto infrator evidentemente restou afrontada, ainda que a sua periculosidade sequer fosse presumida.
A situação se agrava quando se trata de menores infratores, já que o Estatuto da Criança e Adolescente é omisso quanto a utilização de algemas, embora vede expressamente a condução ou transporte de adolescente em compartimento fechado de veículo policial, por considerar que tal medida atenta contra a sua dignidade.
É nesse contexto que se busca analisar a legitimidade da utilização de algemas em menores de idade, de modo a identificar os argumentos doutrinários favoráveis e contrários a tal prática.
2. Desenvolvimento
O Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n° 8.090/1990, em seu art. 178, expressamente dispõe que o adolescente infrator não será conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, “em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade” (BRASIL, 1990).
Vê-se que não há qualquer menção à utilização de algemas, ou seja, é omisso o referido diploma legal quanto ao uso de algemas em se tratando de menor infrator.
Acontece que o Brasil convive diuturnamente com altos índices de criminalidade, que não é atribuída apenas a uma classe social ou se encontra concentrada em uma determinada localidade. A violência assola todo o país, e os órgãos de segurança pública são chamados a responder, de forma eficaz, quando uma infração é cometida, pois esta compromete a paz social.
Surge, porém, um grande embate, já que a atuação dos agentes policiais, não raras vezes, é questionada, principalmente por ir de encontro aos direitos e garantias fundamentais do infrator, e por confrontar com normas de Direito Interno e de Direito Internacional.
No que tange o uso de algemas, apenas para exemplificar, tem-se, no âmbito internacional, como ressalta Mello (2004, p. 877), a Convenção Contra a Tortura, considerado um dos mais importantes documentos de direitos humanos, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1984, e ratificada pelo Brasil no ano de 1989.
Ainda segundo Mello (2004, p. 877), o objetivo primordial da Convenção em comento é fazer com que os Estados estabeleça a tortura como crime, sendo defeso à expulsão, devolução ou extradição de um indivíduo que seja suspeito de sofrer tortura.
Também a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil no ano de 1992, como ressaltam Gomes e Piovesan (2000, p. 29), é instrumento de direitos humanos importante no tocante à integridade física do acusado. Logo, por força da referida Convenção, ninguém será submetido à tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante, cabendo aos Estados assegurar o respeito aos direitos e liberdades.
Não se pode ignorar, ainda, a Resolução n° 36/169, editada pela Organização das Nações Unidas no ano de 1979, que ao editar Código de Conduta para os responsáveis pela aplicação da lei, estabeleceu padrões morais, éticos e legais.
Em que pese a existência de normas de Direito Internacional, no direito pátrio o uso de algemas não é devidamente regulamentado, pois como enfatiza Gomes (2007, p. 30), em virtude do sistema legal vigente, é de suma importância para os agentes públicos a previsão de diretrizes estabelecidas em lei, causando insegurança a falta de normas específica.
Nesse ponto é importante ressaltar que a Lei de Execução Penal – Lei n° 7.210/1984, que trata do tema. Tal dispositivo dispõe que o “emprego das algemas será disciplinado por decreto federal” (BRASIL, 1984). Ocorre que tal diploma não foi editado.
O art. 284 do Código de Processo Penal, por sua vez, dispõe que “não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou tentativa de fuga do preso” (BRASIL, 1941).
Ante a omissão legislativa, e de inúmeras situações de arbitrariedade, o Poder Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante n° 11, no ano de 2008, que disciplina o emprego das algemas, sendo que o órgão julgador sedimentou o entendimento de que a sua utilização deve-se dar em caráter excepcional e observando as peculiaridades do caso concreto. Desta feita, a utilização desarrazoada de algemas configura constrangimento físico e moral, e sujeita o agente de segurança pública às penalidades pelo abuso perpetrado.
Significa dizer, portanto, que inexistindo resistência por parte do acusado/infrator, e fundado receio de fuga, ou perigo à integridade física daquele que será conduzido, ou de terceiros, a exemplo dos agentes, devendo a excepcionalidade ser justificada por escrito, não há o que se falar em utilização de algemas.
No que tange a utilização de algemas em menores de idade, como já pontuado, apesar de nada mencionar o Estatuto da Criança e do Adolescente, não há como negar a utilização por parte de agentes de segurança, não raras vezes sem justificativa plausível, principalmente antes da edição da Súmula Vinculante n° 11, do Supremo Tribunal Federal.
Fato é que uma interpretação literal do já citado art. 178, do Estatuto da Criança e do Adolescente, leva a concluir que a proibição legal alcança apenas a proibição de serem os adolescentes transportados em compartimentos fechados de viaturas policiais, em condições que violem a sua dignidade ou que lhes comprometa a saúde física e mental. O que objetivou o legislador, portanto, foi obstar tratamento semelhante ao usualmente dispensado aos presos adultos, transportados em camburões.
Tal intepretação é que leva alguns operadores do Direito a preconizar a possibilidade de ser um menor de idade contido por meio de algemas quando da prática de um ato infracional, desde que a medida se mostre necessária, e isso não afete a integridade física e moral do menor ou vá de encontra à sua dignidade.
Nessa senda é a lição de Silva (2001, p. 42), para quem as dúvidas frequentes quanto há frequentes dúvidas quanto à possibilidade (ou não) de se algemar um adolescente, seja na doutrina e na jurisprudência, embora prevaleça o entendimento de que caracterizada a periculosidade do menor de idade, por exemplo, ou o risco aos agentes de segurança pública, é lícito o uso de algemas para conter adolescente infrator.
Também Souza (apud MALTA, 2000) preconiza ser legítimo o uso de algemas em menores de idade, desde que configurado o grau de periculosidade ou o porte físico que justifique risco aos sujeitos envolvidos no acautelamento.
Assim, percebe-se que a utilização de algemas, quando se trata de menores de idade, apesar de não existir vedação legal, clama dos sujeitos envolvidos uma análise do caso concreto, para averiguar, a um só tempo, a periculosidade do menor infrator, e o risco ao próprio menor e às pessoas envolvidas no processo, sob pena de configurar arbitrariedade.
Não se pode ignorar, ainda, que com a edição da Súmula Vinculante n° 11, se faz necessária uma análise do tema à luz do referido verbete, pois somente será considerada legítima a utilização de algemas em menores infratores em casos excepcionais, pois se em adultos tal utilização, de forma arbitrária, é capaz de responsabilizar o agente pela prática do ato, se não justificado, por exemplo, o risco de fuga, ou a resistência do acusado/infrator, em se tratando de um menor, ser em desenvolvimento, a gravidade é ainda maior, e pode comprometer toda a vida.
Portanto, considerando a finalidade precípua do Estatuto da Criança e do Adolescente, que objetiva a reeducação do adolescente infrator, mesmo não havendo expressa proibição do uso de algemas, somente se justifica a sua utilização quando houver justificativa plausível, nos termos da Súmula n° 11, do Supremo Tribunal Federal, já que se trata de medida excepcional, pois somente assim se estará obstando constrangimento desnecessário de cunho físico e moral ao menor.
3. Conclusão
A utilização de algemas é prática comum na atividade policial, principalmente em tempos de altos índices de criminalidade, e diante do clamor de medidas eficazes e capazes de obstar a violência que assola país, e que envolve também os atos praticados por menores de idade.
Ocorre que a uso de algemas é questão que divide opiniões, principalmente porque configura, não raras vezes, constrangimento ilegal e prática arbitrária por parte dos agentes de segurança pública, mormente quando o acusado/infrator não apresenta qualquer resistência ou risco de fuga, ou coloca em risco a sua integridade ou de terceiros.
A situação se agrava quando se trata de menores de idade, pois como é sabido estes recebem tratamento diverso daquele dispensado aos adultos; e embora não haja vedação no Estatuto da Criança e do Adolescente quanto à utilização de algemas, se restringindo à condução em condições semelhantes ao preso adulto, não há como negar que o uso de algemas é capaz de causar danos maiores, já que se trata de ser em desenvolvimento.
Porém, é imperioso reconhecer que há situações em que a utilização de algemas se justifica, seja pela alta periculosidade do agente infrator, pelo risco de fuga, ou mesmo por apresentar resistência à condução, não restando alternativas aos agentes de segurança pública senão lançar mãos da algema para conter o menor de idade.
No entanto, com a edição da Súmula Vinculante n° 11, do Supremo Tribunal de Federal, considerando a inexistência de diploma legal, é imperioso reconhecer que somente se justifica a utilização de algemas, em menores de idade, quando houver resistência e fundado receio de fuga, ou perigo à integridade física própria ou alheia, sob pena de responderem os agentes pela arbitrariedade perpetrada.
Conclui-se, portanto, que em se tratando de menor de idade, o uso de algema deve observar o princípio da excepcionalidade, consagrado expressamente na Súmula Vinculante supracitada, sob pena de se causar danos irreversíveis, expondo a constrangimentos desnecessários e afrontando o princípio da dignidade da pessoa humana.
4. Referências
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BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990: Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm. Acesso em: 11 mar. 2015.
GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (Coord.). O Sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2000.
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MALTA, Frederico Sérgio Lacerda. Aspectos Legais do Emprego de Algemas por parte dos Policiais Militares. Revista Doutrinal nº. 01/2000 da PMPE. Revista de Direito, Associação dos Procuradores do Estado de Pernambuco, nº 02, set./2000.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
SILVA, Silvio França da. Algemas, estreito limite entre a legalidade e o abuso. Revista Força Policial. São Paulo, n° 29, jan./mar. 2001.
O uso de algemas em menores de idade
Joao Ricardo Papotto Rosa
Estudante de Direito - FIG (UNIMESP)
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