~~Em face dos crimes dirigidos ao Poder Público, o Ministério Público Federal brasileiro quer a admissibilidade das provas ilícitas na condução das ações penais. Em suma, propõe que o ilícito se torne, milagrosamente, legítimo – talvez, por Medida Provisória.
Acatar a produção de provas ilícitas, sobretudo, no Direito Penal que, em essência, é repressor, equivale à legalização do Primitivismo Penal; remonta-se aos tempos em que o soberano mandava investigar seus supostos inimigos e depois ordenava que lhes cortassem as cabeças. Não havia a mínima noção de licitude, razoabilidade, só a aplicação da pena. A previsibilidade jurídica implicava na certeza da morte violenta. Para falar como Maquiavel, não há virtù nesta iniciativa. Não se sustenta a República, não se faz avançar um milímetro em direção à Justiça. Pelo contrário, só vigora o furor criminalista, a retaliação, a vingança pública por todos os meios; especialmente, os meios de exceção. Afinal, tanto a verdade dos fatos não está na mentira, quanto não estará no ilícito legalizado.
Na Idade Média, aplicava-se a tortura mais cruel possível como meio de verificação das reais intenções do fautor político e da remissão dos fatos: não bastava a confissão, era necessário expiar. O pobre, o servo, obrigatoriamente, tinham que ser torturados até o estertor da morte. O servo renasceria com a supliciosa morte imposta pelo próprio crime. Só assim Deus o receberia no reino dos céus. A CIA estadunidense aplica o “afogamento simulado” e outras tantas técnicas (algumas eletrônicas, pós-modernas: “privação dos sentidos”) para obter informações. Não consideram a tortura um ilícito porque se baseiam no Patrioct Act; julgando-se a lei acima da Justiça. Dizem agir em benefício público, em defesa da Segurança Nacional do Império e na preservação da Razão de Estado.
O inquérito policial brasileiro está cheio de torturas, assim como os processos criminais de pobres e negros vêm repletos de provas ilícitas. E, neste sentido, o que propõe o Ministério Público Federal é a legalização do Primitivismo Penal. Pois, a prática é mais do que conhecida e difundida. O DOICODI nunca parou de funcionar, os Paranhos e Fleurys nunca se ausentaram. Agora, portanto, seria apenas a inclusão de mais uma norma de exceção no ordenamento jurídico. Com a ressalva de que seria a inclusão da imoralidade, da ilicitude como fonte do direito. Houve um tempo em que debatíamos o Mandado de Segurança Coletivo, sobretudo em defesa de grupos e de movimentos sociais desapossados de poder e como garantia de direitos. Mas, hoje, debatemos a expulsão do bom senso da seara do direito; incluindo-se, frise-se novamente, o imoral e o ilícito como fonte da verdade processual.
No Estado de Direito em que se aninha a exceção, o soberano é O Soberbo (“Generalíssimo”, “Acima de Todos”); porque não existe lei soberana enquanto o Soberbo faz da lei a sua imagem e semelhança (majestas). Este é o modelo em espécie de uma forma política estatal específica: a forma-Estado Bonapartista. Nesta tipologia política prevalece a vontade dos grupos de poder (frações de classe) que se ocupam de todos os espaços legisferantes – e o Ministério Público brasileiro acaba integrado aos desejos punitivos dos aparatos repressores de Estado. Se esta lógica vigorar, teremos o Príncipe sob as vestes do ilícito que se tornou legal, da imoralidade pública que se referendou como segurança jurídica. Vê-se, por fim, que a Razão de Estado ainda é o saco de bondades de sua majestade, o poder! E, por isso, sempre repetiremos os mais grotescos e bizarros erros históricos.
Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos
O Ministério Público Federal brasileiro quer a admissibilidade das provas ilícitas.
Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).
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