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A possibilidade jurídica de união estável ou casamento entre mais de duas pessoas: interpretação conforme a Constituição

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Agenda 03/09/2017 às 11:00

4. DA POLIGAMIA

As premissas desenvolvidas para conferir aos casais homossexuais igualdade de direitos com os casais heterossexuais são lastreadas em princípios constitucionais, na melhor interpretação que permite o moderno constitucionalismo. Afinal, casais do mesmo sexo havia, mas lhes era subtraído o direito de viver em sociedade em igualdade de direitos com casais heteros; não seria a norma, tampouco a interpretação jurisprudencial, que daria azo ao surgimento da homossexualidade, de muito superada a tese de tratar-se de uma patologia. Como assentado na resolução nº 1/99, do Conselho Federal de Psicologia- CFP, “a homossexualidade não constituidoença, nem distúrbio e nem perversão”, e não era sem tempo.

O que havia era um nítido descompasso entre a norma e a realidade. Após anos de infindáveis discussões legislativas inócuas, pautadas na moralidade religiosa, houve por bem a Suprema Corte sedimentar o avanço rumo à consolidação dos princípios basilares da Carta Magna, permitindo a liberdade de opção entre as pessoas na sua vida íntima e privada, até então alijadas de um tratamento equânime. Prevaleceram, destarte, os princípios da igualdade, da liberdade, da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade e da proporcionalidade e, até mesmo, o da segurança jurídica, porque as incertezas com relação às consequências jurídicas das relações homoafetiva geravam insegurança não só aos participantes da relação como para a própria sociedade.

Idênticos argumentos, todavia, podem ser utilizados em outras relações que são fáticas, mas que, por existirem em quantidade menor, não atraem o clamor midiático e tampouco aprofundados estudos jurídicos. São aquelas em a família é constituída pela união de mais de duas pessoas, normalmente um homem com mais de uma mulher. Como lembra Azeredo (2009, p. 45),

Ainda que seja difícil encontrar sujeitos que aceitem a exposição de reconhecer que vivam uma relação consentidamente não monogâmica, até por conta da repulsa e reprovação social – o que, na prática, inviabiliza, até mesmo, uma pesquisa de campo mais aprofundada –, certo é que elas existem. Ainda que sem muita ostensividade, elas são de pleno conhecimento do meio em que estão inseridas, mesmo ‘à boca pequena’, entreouvida entre conhecidos, vizinhos e porteiros.

Entrementes, não se alija de um direito humano fundamental grupos minoritários, os quais, justamente por não comporem a maioria da sociedade, necessitam de maior proteção. Sobre o tema, oportunas as colocações do Min. Gilmar Mendes, ao discorrer sobre o significado “da união homoafetiva como afirmação de direito de minorias” em voto na ADI nº 4.277/DF (2011, p. 778):

É evidente também que aqui nós não estamos a falar apenas da falta de uma disciplina legislativa que permita o desenvolvimento de uma dada política pública. Nós estamos a falar, realmente, do reconhecimento do direito de minorias, de direitos fundamentais básicos. E, nesse ponto, não se trata de ativismo judicial, mas de cumprimento da própria essência da jurisdição constitucional[7].

Da mesma forma, relacionamentos entre mais de duas pessoas existem e necessitam de proteção estatal. Nessa relação poliafetiva, existam ou não filhos, não podem ser privados seus participantes da constituição de união estável ou, querendo, contrair casamento. Não se trata de conferir a essa realidade fática somente os efeitos patrimoniais da relação, e sim a totalidade dos direitos que fazem jus os casais heterossexuais e, hodiernamente, os casais homossexuais.

No direito comparado, a justiça estadunidense de Utah, em 2013, no case Brown v. Buhman, reconheceu a inconstitucionalidade da lei estadual proibitiva da poligamia por violação à liberdade de credo assegurada pela Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, e julgou procedente o pedido de uma família polígama adepta de uma vertente fundamentalista seguidora do pensamento inicial da Igreja Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, na qual a união de um homem com várias mulheres é permitido. Na Europa, como aponta Vaquero (2012, p. 552), o tema é controverso:

Frente à boa vontade da maioria dos muçulmanos europeus, persiste a incompreensível disposição no ânimo de uma minoria que quer impor o caráter totalizador de sua religião contra os valores essenciais da sociedade democrática em que vivem, provocando situações inusitadas, sem juízo nem razão, contra as quais se deve atuar de forma contundente, porque merecem uma resposta firme. Os exemplos têm ocorrido em toda Europa[8].

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Com relação à Espanha, lembra Cardo (2011, p. 15) que o conceito de casamento, assentado “em uma série de valores muito ligados à doutrina católica”, constitui uma das principais razões para o não reconhecimento de casamento polígamo realizado em país que o admitem, sobretudo por muçulmanos.O professor destaca que a situação atual “é marcada por uma enorme indefinição”, que não pode ser solucionada com a anulação dos demais casamentos, pois (i) nem sempre é fácil identificar o primeiro, havendo ainda a possibilidade de que sejam simultâneos; e (ii) consistiria em forma de discriminação contra o cônjuge com menor tempo de matrimônio. Para solucionar o problema, propõe:

No contexto atual, caracterizado pelo notável incremento da imigração, o respeito às liberdades ideológica e religiosa, por um lado, e o propósito de impulsionar as medidas de conciliação da vida laboral e familiar, por outro, justificam o reconhecimento dos efeitos dos casamentos polígamos validamente celebrados conforme a lei do país dos contraentes; questão distinta é a conveniência de que o legislador introduza certas medidas, de ordem a reduzir o custo econômico e organizativo que teriam de suportar as empresas[9].

No Reino Unido, viviam em 2008 cerca de 1.000 famílias legalmente em poligamia (FOLLETT, 2008), e os principais problemas enfrentados são com relação aos benefícios sociais e pensão (FAIRBAIRN, 2014). Marie-AudeLabbé (2004, p. 79) sustenta que o ideal para a França seria a adoção de medidas legislativas para “defender uma política de integração dos muçulmanos e de erradicação dos efeitos nefastos da poligamia”[10].

A poligamia, contudo, já foi regra entre os seres humanos (REVISTA VEJA, 2012):

É a união reprodutiva entre mais de dois indivíduos de uma mesma espécie. Entre os humanos, já foi a regra. O Velho Testamento faz várias referências ao assunto. O personagem Jacó, por exemplo, teve duas esposas e 12 filhos, que teriam dado origem às doze tribos de Israel.Ainda é praticada no Oriente Médio e em partes da África e da Ásia, além dos Estados Unidos, onde seitas fundamentalistas, não reconhecidas pela organização principal da religião mórmon, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, permitem o casamento poligâmico. Regulamentada pelo Alcorão, é relativamente comum no mundo islâmico, apesar de estar perdendo adesão. O profeta Maomé chegou a ter 16 esposas, mas hoje o permitido são, no máximo, quatro. Foi proibida no Nepal em 1963, na Índia, parcialmente, em 1955, na China em 1953 e, no Japão, em 1880. Nunca foi permitida no Brasil.

O Brasil é um Estado laico. Entretanto, se abordada a questão apenas sob o aspecto da fé professada, seriam incluídos no manto protetivo da norma apenas os teístas e excluídos os que nada professam, daí porque não nos parece razoável a abordagem sob esse prisma. Isso porque a garantia do direito de ter reconhecida a união estável ou o casamento entre mais de duas pessoas decorre, entre nós, antes mesmo da constitucional liberdade de fé, do impedimento à discriminação de qualquer forma e do direito de se buscar a felicidade, instrumentos pelos quais a dignidade da pessoa humana é eficazmente protegida. Ademais, implicaria no exercício de um direito sob uma condicionante, a permissão ou autorização pela religião seguida, criando uma dificuldade irrazoável para o exercício de uma liberdade inerente da condição de ser humano, porque atrelaria o direito à religião quando, na verdade, o direito deve estar atrelado à sociedade.

Não se trata, pois, do acolhimento, pelo direito, de dogma religioso,mas sim no reconhecimento de uma situação fática, na qual é irrelevante qualquer condicionante de cunho religioso. A religião, aqui, tem relação com a moral e, embora também se refira ao exercício das liberdades individuais intrínsecas do ser humano, não prepondera sobre o direito humano fundamental de se buscar a felicidade, assegurado universalmente independente da fé professada.

Dessarte, o aval da religião para a constituição de família possui relevância apenas no âmbito subjetivo do indivíduo, dado seu aspecto moral. O reconhecimento ou o impedimento na formação de um tipo específico de família, diverso da tradicional união entre um homem e uma mulher, não pode transpassar, no campo da liberdade religiosa, a garantia do direito de ser feliz e de não ser discriminado por isso.

Entretanto, o acolhimento da poligamia, que é a união de um homem com mais de uma mulher, ou da poliandria, que a união de uma mulher com mais de um homem, não atenderiam à premissa constitucional de igualdade entre os seres humanos e de respeito pelo diferente. Na verdade, constitui um irrelevante jurídico a sexualidade dos componentes dessa relação, bastando que seja composta por mais de duas pessoas; não cabe ao direito tutelar o instinto sexual, ou desejo, fenótipo ou genótipo dos que, unidos em família, passam a coabitar. A relevância jurídica surge, portanto, quando esses indivíduos se unem e constituem um núcleo familiar, porque é essa instituição que merece proteção, bem como, individualmente, seus componentes, de nada importando a anatomia do sexo que apresentam.    

4.1 DA POLIGAMIA NO BRASIL

No município paulista de Tupã, em agosto de 2012, foi lavrada a primeira escritura pública de união poliafetiva, entre duas mulheres e um homem, na qual restou consignado (INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA):

Os declarantes, diante da lacuna legal no reconhecimento desse modelo de união afetiva múltipla e simultânea, intentam estabelecer as regras para garantia de seus direitos e deveres, pretendendo vê-las reconhecidas e respeitadas social, econômica e juridicamente, em caso de questionamentos ou litígios surgidos entre si ou com terceiros, tendo por base os princípios constitucionais da liberdade, dignidade e igualdade.

Para José Fernando Simão (2013), “O sistema não concebe, com base em um valor secular, a possibilidade de dupla união como forma de constituição de família”, lembrando que “Se sempre existiram famílias poligâmicas e isso não se nega, NUNCA o sistema jurídico brasileiro as admitiu. Muito menos sob a forma de união estável, que como forma de constituição de família, conta com a proteção da Constituição”[11]. Ele argumenta que a escritura firmada em Tupã viola “duas regras que aniquilam qualquer possibilidade de se admitir a bigamia no sistema jurídico brasileiro, uma de ordem civil e outra criminal”, aduzindo que o casamento bígamo é causa de nulidade absoluta e que bigamia é conduta típica penal. E conclui:

O Código Civil e a Constituição Federal brasileira não exigem dualidade de sexo como elemento de existência do casamento. Se muda a realidade social, mudam também os elementos de existência do casamento.

Assim, o STJ, ao admitir o casamento de pessoas do mesmo sexo, apenas percebeu que o conceito de casamento se alterou com o passar dos séculos. Não se trata mais de união entre o “homem e a mulher”, mas sim de união entre “pessoas”.

O mesmo não pode se dizer da poligamia escriturada em Tupã. Não se trata de elemento de existência, mas sim de requisito de validade do negócio jurídico. Havendo causa de proibição legal, seja ela culminada de sanção penal ou civil, a afronta à norma cogente acarreta nulidade absoluta da escritura poligâmica tupanense.

A única conclusão que se chega é que e escritura é nula, nos termos do art. 166, por motivo evidentemente ilícito (contra o direito) e por fraudar norma imperativa que proíbe uniões formais ou informais poligâmicas.

Há projeto de lei no Congresso Nacional, denominado “Estatuto da Família”[12], alvo de inúmeras controvérsias. Tecendo críticas sobre vários pontos, Regina B. T. Silva (2014) entende que a proposta “parte de premissas individualistas, aparentemente baseadas no afeto, mas que pretendem impor em nossa legislação, por meio de engodo linguístico, a devassidão”, por que

[...] consta do título das Entidades Familiares, artigo 14, caput, que "as pessoas integrantes da entidade familiar têm o dever recíproco de assistência, amparo material e moral, sendo obrigadas a concorrer, na proporção de suas condições financeiras e econômicas, para a manutenção da família". E no parágrafo único do mesmo artigo, que "a pessoa casada, ou que viva em união estável, e que constitua relacionamento familiar paralelo com outra pessoa, é responsável pelos mesmos deveres referidos neste artigo, e, se for o caso, por danos materiais e morais". Os amantes terão direito a pensão alimentícia e poderão, ainda, requerer reparação dos danos morais e materiais por falta das mesmas atenções e benesses dadas às famílias oriundas de casamento ou união estável. Isso é poligamia.

O Estatuto chega ao cúmulo, nas suas justificativas, de argumentar que "a realidade social subjacente obriga a todos, principalmente a quem se dedica ao seu estudo, a pensar e repensar o ordenamento jurídico para que se aproxime dos anseios mais importantes das pessoas". Desde quando é anseio social no Brasil que as relações conjugais ou de união estável admitam relações paralelas ou mancebia? Vê-se que o projeto distorce o pensamento social e quer institucionalizar a poligamia.

Além da poligamia velada, o projeto pretende institucionalizar a poligamia consentida. Ora, quem recebe um trio formado por duas mulheres e um homem ou por dois homens e uma mulher em sua casa e lhe diz: "Venha, sente-se e coma à minha mesa"? Ditado que bem representa e resume que relações paralelas não são aceitas pela sociedade e devem ser repudiadas pela legislação e por todas as formas de expressão do Direito.

A questão que se põe, ainda que relevantes os argumentos suscitados, pode ser enfrentada por dois enfoques: (i) o direito individual de buscar a felicidade tem lastro na Constituição Federal, no princípio da dignidade da pessoa humana, contra o qual leis infraconstitucionais não podem se opor; (ii) questões morais dizem respeito à individualidade de cada um, sendo necessário, e até mesmo indispensável numa sociedade pluralista e democrática, primar pela convivência harmoniosa com quaisquer minorias, sejam étnicas, religiosas, sexuais, e até mesmo da forma como constituem família; conviver com o diferente não significa necessariamente concordar e defender esse comportamento, mas sim respeitar o direito individual alheio de buscar a felicidade como melhor lhe aprouver.Oportuno o escólio de Andreas Bucher (2000, p. 129), para quem “se pode não querer aceitar a poligamia, mas não se pode- deve- ignorá-la nem rechaça-la completamente sem atribuir-lhe o menor efeito jurídico”[13].

Sobre o autor
Vladimir Polízio Júnior

Professor, advogado e jornalista. Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/SP, 33ª Subseção de Jundiaí. É especialista em direito civil e direito processual civil, em direito constitucional e em direito penal e direito processual penal. Mestre em direito processual constitucional. Doutor em direito pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora, Argentina. Pós-doutor em em Cidadania e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra, Portugal. Autor de artigos e livros, como Novo Código Florestal, pela editora Rideel, Lei de Acesso à Informação: manual teórico e prático, pela editora Juruá, e Coleção Prática Jurídica, por e-book, com 4 volumes: Meio Ambiente e os Tribunais, Crimes contra a Vida e os Tribunais, Crimes contra o Patrimônio e os Tribunais, e Liberdade de Expressão e os Tribunais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLÍZIO JÚNIOR, Vladimir. A possibilidade jurídica de união estável ou casamento entre mais de duas pessoas: interpretação conforme a Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5177, 3 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37959. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Artigo publicado originalmente na Revista Questio Iuris, v. 8, nº 1, 2015, Rio de Janeiro, pp. 51-80.

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