4. Arbitramento de fiança pelo Delegado de Polícia
Como é cediço, a lei adjetiva penal (art. 322) permite, expressamente, ao delegado de polícia o arbitramento de fiança no caso de delito cuja pena (em abstrato) privativa de liberdade máxima não ultrapasse 4 (quatro) anos, desde que inexistam os impeditivos legais previstos nos artigos 323 e 324 do CPP.
Ressalte-se, de outra banda, que o cargo de delegado de polícia atualmente compõe as carreiras jurídicas (Lei 12.830/13) e , portanto, é perfeitamente possível ele fazer a análise do caso que lhe é apresentado, adotando as providências pertinentes a sua atribuição, como se fosse “uma espécie de juiz da fase pré-processual”[1].
Deflui-se, diante das informações já postas, que a fiança criminal está diretamente ligada à prisão-liberdade de alguém, portanto, na seara policial, sua importância eclode por ocasião de lavratura da prisão em flagrante.
Na situação em concreto, apresentado o conduzido ao delegado de polícia, este, primeiramente, deve verificar se é caso de prisão em flagrante prevista no art. 302 do Código de Processo Penal. Restando isso configurado, em seguida, promove o juízo de tipicidade do fato, buscando fazer a subsunção do delito praticado pelo conduzido à norma incriminadora, observando-se a sua pena máxima (em abstrato), cuja análise é de fundamental importância no que se refere ao arbitramento de fiança no âmbito policial.
Dessa apreciação podem fluir as seguintes constatações: a) não sendo a pena privativa de liberdade superior a 2 (dois) anos, lavra-se Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), atentando-se para o disposto no art. 69 da Lei 9.099/1995, que diz respeito ao compromisso de comparecimento do flagranteado perante o Juizado Especial Criminal competente; b) se a pena não ultrapassar 4 (quatro) anos, independentemente de ser reclusão, detenção ou prisão simples, lavra-se o Auto de Prisão em Flagrante (APF), vislumbrando-se a possibilidade do arbitramento de fiança pelo delegado de polícia, desde que não haja causas impeditivas; e c) caso a pena seja superior a 4 (quatro) anos, lavra-se o Auto de Prisão em Flagrante (APF), ficando o delegado de polícia impossibilitado de arbitrar fiança ao conduzido após a lavratura do APF. Nessa situação, somente Juiz pode arbitrá-la.
In casu, o que interessa é a situação em que a pena privativa de liberdade (em abstrato) do delito atribuído ao conduzido não seja superior a 4 (quatro) anos, haja vista que é permitido o arbitramento de fiança pelo delegado de polícia. Mas, qual é o valor (máximo e mínimo) dela e os critérios adotados para a sua fixação? Isso é o que se verá adiante.
4.1 Valor da fiança na esfera policial
Conforme inteligência do art. 325, I, do CPP, o delegado de polícia poderá – dependendo do caso concreto – fixar o valor da fiança, entre 01 (um) e 100 (cem) salários mínimos, podendo reduzi-la até o máximo de 2/3 (dois terços), bem como aumentá-la em até 1.000 (mil) vezes.
Nos dias atuais, esses valores seriam equivalentes a R$ 293,33 (duzentos e noventa e três reais e trinta e três centavos), ou seja, 1/3 do salário mínimo, e a R$ 88.000.000,00 (oitenta e oito milhões de reais), o que corresponde a 100 (cem) salários mínimos multiplicados por 1.000 (mil), limite máximo permitido por lei para o delegado de polícia arbitrar a fiança.
Mister ressaltar que o delegado de polícia, diante do que se deflui do teor art. 350 do CPP, não poderá conceder a dispensa da fiança, mesmo sendo o conduzido hipossuficiente, pois isso caberá ao juiz.
4.2 Critérios para a fixação do valor da fiança
Para o cálculo da fiança, o delegado de polícia deverá seguir o que reza o art. 326 do CPP, ou seja, analisará a situação processual do conduzido; a natureza do crime (causas legais de aumento ou diminuição da pena, dimensão do dano etc.); as suas condições pessoais de fortuna (pobre, rico etc.); a sua vida pregressa (antecedentes criminais e sociais); as circunstâncias que dizem respeito a sua periculosidade (perversidade, reincidência etc.); e a valor provável das custas processuais.
Convém oportunizar que o delegado de polícia também deverá levar em conta eventual concurso material de crimes, pois, caso o conduzido tenha, na mesma situação, praticado dois crimes, cujas penas máximas (em abstrato) – somadas – ultrapassem o teto de 4 (quatro) anos, não poderá ele arbitrar a fiança.
Ademais, o delegado de polícia deve se ater, ainda, ao crime na forma tentada. Suponha-se que a pena máxima (em abstrato) de determinado delito seja de 5 (cinco) anos. A princípio, não poderá ser arbitrada fiança na delegacia de polícia, mas reduzindo-se 1/3 (um terço), isto será possível, uma vez que a pena ficará no patamar de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses, o que permitirá sua concessão na esfera policial.
A fiança deverá ser justa e dentro dos parâmetros legais, evitando-se a fixação de valores irrisórios ou excessivos. Destarte, as condições financeiras do conduzido prevalecerão para estipulação de um valor suficiente para garantir o juízo, pois isto é a finalidade precípua da fiança. Assim sendo, esta deverá ser arbitrada de modo que assegure o comparecimento do conduzido (indiciado) no curso do processo criminal, mas nunca de forma que inviabilize a sua prestação, uma vez que o conduzido somente será posto em liberdade se pagá-la; caso contrário, continuará preso.
Há situações em que 1 (um) salário mínimo poderá representar muito para alguém, enquanto que 100 (cem) salários mínimos não representará nada para outrem. Tudo irá depender da capacidade financeira de cada um.
Extrai-se, então, da exegese do acima explanado que a fiança deverá “ser sentida” por quem a presta, mas jamais deverá ser aplicada de modo a tolher a sua implementação.
4.3 Na prática, como se dará a procedimentalização da fiança na Delegacia de Polícia?
Como já dito, diante de uma situação de prisão em flagrante, o delegado de polícia, ab initio, ouvirá o(s) condutor(es), colhendo-se a(s) assinatura(s) deste(s) e entregando-lhe(s) cópia do termo e do recibo de entrega do(s) preso(s); na sequência ouvirá as testemunhas que presenciaram o(s) delito(s) ou, pelo menos, duas pessoas que tenham presenciado a apresentação do(s) preso(s) ao delegado de polícia, colhendo-se suas assinaturas; no passo seguinte, colherá as declarações da(s) vítima(s) (se for caso), colhendo-se sua(s) assinatura(s); e, ao final, interrogará o(s) conduzido(s) a respeito da(s) imputação(ões) que lhe é(são) feita(s),colhendo-se, também, a(s) assinatura(s) deste(s).
Feito isso, sendo admissível a fiança, o delegado de polícia terá a obrigação de conceder tal benefício (exceto se houver causas impeditivas), uma vez que não se trata de uma faculdade, consoante exegese do art. 304, § 1º, do CPP, in verbis:
Art. 304 - Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto.
§ 1º - Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja. (destaquei)
A deliberação acerca da concessão da fiança se dará no próprio corpo do APF, antes de sua conclusão, ou logo depois desta, no despacho em que o delegado de polícia determina as providências de praxe, tais como: expedições de nota de culpa, nota dos direitos e garantias constitucionais, ofícios ao Magistrado, Parquet e Defensor Público (se for o caso), dentre outras.
Na rotina policial, costuma-se prestar fiança em espécie (dinheiro), até porque é mais prático, mas nada impede que ela também possa ser em metais, pedras, objetos preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca inscrita em primeiro lugar, consoante inteligência do art. 330 do CPP.
4.3.1 Fiança prestada em espécie (dinheiro)
Realizado o depósito do valor arbitrado, o comprovante deverá ser entregue – por quem tenha prestado a fiança – ao delegado de polícia, que determinará ao escrivão a lavratura do termo de fiança no livro específico, que é obrigatório nas unidades policiais (Distritais, Centrais de Flagrantes, Departamentos), conforme reza o art. 329 do CPP.
Lavrado o termo de fiança, este deverá ser assinado pelo delegado de polícia, afiançado e escrivão. Há caso em que também é assinado pelo afiançador, o que ocorre quando a fiança é prestada por terceiros.
Na sequência, extrair-se-á a certidão, juntando-a ao procedimento policial (APF).
Como dito acima, não é o termo de fiança que deverá ser juntado aos autos do inquérito, mas, sim, a sua certidão, cujo equívoco é constantemente percebido no dia a dia policial.
Nos dias hodiernos, como todos os documentos costumam ser digitados, sugere-se que, após a sua confecção, extraia-se uma cópia do termo de fiança, colando-a no livro específico (não precisa ser manuscrito). Saliente-se, ainda, a obrigatoriedade de constar o número de ordem no termo de fiança, o que assegura o seu controle.
Outra importância da existência, na delegacia de polícia, do livro destinado a registro de fiança, é a facilidade de se saber, sem maiores dificuldades, o valor global das fianças arbitradas num determinado período. Essa informação costuma ser solicitada no relatório de atividades elaborado no final de cada ano pelos órgãos ligados à Segurança Pública.
Merece registro que, não sendo possível ser realizado, de pronto, o depósito da fiança, por ser feriado ou final de semana, haja vista os estabelecimentos bancários se encontrarem fechados, não haverá nenhum óbice para se colocar o conduzido em liberdade, pois poderá o valor arbitrado ser entregue ao escrivão que lavrará o respectivo termo, inclusive se comprometendo a efetivar o seu depósito no próximo dia útil, e a juntar o comprovante aos autos do inquérito policial; tudo sendo registrado no termo de fiança.
Adotados os supracitados procedimentos, o conduzido – antes de ser posto em liberdade – deverá ser informado, pelo escrivão, das obrigações e da sanção previstas nos arts. 327 e 328 do CPP, o que constará dos autos do inquérito policial, através de certidão.
Outro ponto que merece ser destacado é o caso do conduzido (flagranteado), por ocasião da prestação da fiança que lhe foi arbitrada já se encontrar numa outra unidade policial ou prisional diversa da qual o autuou. Nessa situação, faz-se necessária a expedição de alvará de soltura ou guia de soltura direcionada ao diretor do respectivo estabelecimento para o devido cumprimento.
4.3.2 Fiança prestada em metais, pedras ou objetos preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca
Por disposição expressa no Código Processo Penal, quando se tratar de “imóvel, ou de pedras, objetos ou metais preciosos”, será feita imediatamente a avaliação por perito nomeado pela autoridade. Já no caso de consistir em “caução de títulos da dívida pública, o valor será determinado pela sua cotação em Bolsa, e, sendo nominativos, exigir-se-á prova de que se acham livres de qualquer ônus”.
Na situação supra, a prestação da fiança é complexa e mais trabalhosa. Portanto, não é recomendada no âmbito policial, muito embora seja legalmente permitida, devido ao finito tempo da prisão em flagrante. Outro óbice é a dificuldade em se arrumar alguém apto para realizar tal avaliação, principalmente nas delegacias de polícia interioranas.
Não é despiciendo salientar que a avaliação procedida por pessoa que não esteja apta para tanto poderá resultar equívocos que causarão, provavelmente, prejuízos futuros ao processo criminal.
No tocante aos demais procedimentos cartorários, tudo seguirá as mesmas regras delineadas no subtópico anterior.
5. Conclusões
Diante do que foi explanado no presente estudo, fica evidente que a fiança tem natureza contracautelar (art. 321 a 350 do CPP) e, também, cautelar (art. 319, VIII do CPP). Como contracautela substituta da prisão em flagrante, consiste em um direito subjetivo do preso, devendo o delegado de polícia concedê-la na situação em que haja previsão legal.
Em sendo um direito subjetivo, não haverá necessidade – no âmbito policial – de que seja a fiança requerida pelo flagranteado, seu advogado ou terceiros, devendo o delegado de polícia arbitrá-la ex-ofício, quando observadas as hipóteses legais que a autorizam, independentemente de requerimento ou não.
Conclui-se, também, que a fiança criminal deverá ser “sentida por quem a presta”, porém, jamais a ponto de obstaculizá-la, pois, caso isso ocorra, haverá uma arbitrariedade (abuso de autoridade).
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código de Processual Penal. Brasília, DF: Senado, 1941.
ISHIDA, Válter Kenji. Processo Penal. 2ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2010.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª Edição ver. E atual. Até 31 de dezembro de 2005. São Paulo: Atlas, 2008.
SANNINI NETO, Francisco. Delegado de polícia: o juiz da fase pré-processual. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano19, n.4018, 2 jul. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/29963>. Acesso em: 16 abr. 2015.