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Conseqüências do Projeto de Lei nº 26/2002 sobre os contratos de alienação fiduciária

Agenda 01/03/2003 às 00:00

Os debates em torno do Decreto-Lei nº 911/69 foram sempre regados de divergências entre nossas Cortes Superiores, discutia-se quanto o cabimento da prisão cível oriunda dos contratos de alienação fiduciária, para o Superior Tribunal de Justiça tal prisão é incabível, pois o devedor não se enquadra ao depositário constante do artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal. Entretanto, ao se pronunciar o Guardião da Constituição entendeu ser possível o cabimento da prisão cível, vez que o Decreto-lei nº 911/69, foi recepcionado pela atual Constituição. Observamos aparentemente divergência de entendimento entre as duas Cortes, todavia tal conflito é aparente, pois os dois posicionamentos estão perfeitamente corretos dentro da esfera de competência de cada tribunal.

Desde a criação do Decreto-Lei nº 911/69, a doutrina vem discutindo a contundência do mesmo, uma das correntes procurava explicar tal fato através da interpretação histórica.

Através desse método, chegaram à conclusão, de que a dureza da qual se reveste o Decreto-Lei nº 911/69, deve-se ao período de sua criação, marcado por um regime totalitário e opressor (período ditatorial). Entretanto, divergimos desse entendimento, pois só o fator histórico não é suficiente para explicar a existência e características de uma norma.

Sabe-se que no ano de 1969, o Governo foi assumido por Emílio Garrastazu Médici que permaneceu no poder até 15 de março de 1974, ficando seu governo conhecido como "os anos negros da ditadura", mas também foi nesse período de endurecimento político que houve o chamado "milagre econômico", crescimento do PIB, diversificação das atividades produtivas, concentração de renda e surgimento de uma nova classe média com alto poder aquisitivo, o que justifica se lançar mão de medidas legislativas, um tanto ásperas para manter a economia em franco crescimento, crescimento esse que nunca se viu na história brasileira. Portanto, fator relevante, talvez o principal, seja o fator financeiro/econômico do período em que foi criado o Decreto-Lei nº 911/69, pois através de uma segurança maior para as instituições financeiras propiciou uma maior oferta de crédito aos consumidores. Observa-se, que ambos tiveram benefícios, contudo, devemos concordar que esse equilíbrio é aparente diante da atual Constituição e leis que regulamentam as relações de consumo.

Vemos que a interpretação histórica não é consistente, pois em tempos atuais vivemos em um regime democrático e num estado de direito, todavia observamos o Poder Executivo expedindo normas (Medidas Provisórias) de seu interesse (atribuição do Poder Legislativo). Comportamentos dessa natureza só foram presenciados no período da ditadura militar em que o executivo quem legislava, apesar do momento em que vivemos nem por isso algumas normas atuais são criadas com os ideais democráticos e de direito, veja por exemplo a "Lei da Mordaça", em tramite no Congresso Nacional, assim a tese de que o regime opressor dos anos 60 foi quem deu origem ao áspero Decreto-Lei nº 911/69, não passa de um sofisma jurídico.

A despeito do que acima foi dito, após a Constituição de 1988, o Decreto-Lei nº 911/69, vem sofrendo duras críticas, sob o argumento de incompatibilidade com aquela Carta Política.

Após três décadas de vigência a Lei nº 4.728/65 e do Decreto-lei nº 911/69, ambos estão prestes a sofrer profundas modificações que irão afetar os consumidores que necessitam dos serviços bancários.

A proposta de modificação da Lei nº 4.728/65 e a revogação do artigo 4º, do Decreto-lei nº 911/69, veio do Deputado Federal Paulo Delgado, a matéria que atualmente se encontra em pauta na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, traz consigo reflexos sociais importantes, como por exemplo, a harmonização com o sistema consumerista vigente, na medida em que proíbe a vantagem para uma das partes na relação contratual, vantagem essa que também não se compatibiliza com a atual Constituição.

A justificativa para retificação dos dispositivos acima citados, foi colocada da seguinte forma:

A equiparação do devedor nos contratos de alienação fiduciária ao depositário propriamente dito (arts. 1.265/1.287, do Código Civil brasileiro), estabelecida pelo Decreto-Lei nº 911/69, de 1º de outubro de 1969, não pode permanecer vigente tendo em vista o expresso conflito com a norma constitucional que veda a prisão por dívida, fora os dois casos restritivamente estabelecidos (artigo 5º, inciso LXVII).

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A equiparação trazida pelo Decreto-Lei nº 911/69, visa única e exclusivamente dar mais garantias aos credores dos contratos financeiros, mediante ameaça e efetiva prisão civil do devedor.

A Constituição Federal estabelece apenas a prisão civil por dívida do depositário infiel dos tradicionais contratos de depósito, não recepcionando a equiparação nos contratos atípicos, patrocinado pelo Decreto-Lei nº 911/69, que apenas visa reforçar garantias de um dos contratantes.

Tratando-se de parte do Decreto-Lei nº 911/69, que se afigura verdadeira aberração jurídica a estabelecer garantias demasiadas a um dos contratantes cabe ao Legislativo corrigir.

O constrangimento da prisão, estabelecida pelo artigo 1.287, do Código Civil e manejado pelos artigos 901/906, do Código de Processo Civil não se coaduna com a natureza mercantil e financeira da operação de crédito contratada entre o credor fiduciário e o devedor fiduciante.

O risco contratual é inerente ao negócio e não pode ser garantido com o cerceamento da liberdade física do consumidor ou ferindo direito constitucional, posto que assim não estabelece a constituição.

Apesar da justificativa falar em conflito com a norma constitucional não é isso que vem entendendo o Supremo Tribunal Federal, senão vejamos: "Não há constrangimento ilegal ou ofensa à Constituição no decreto de custódia, após decisão definitiva da ação de depósito, com a não devolução do bem, nem o pagamento do valor correspondente, pelo paciente, configurando-se a situação de depositário infiel, prevista no artigo 5º, LXVII, da CF de 1988". [1]

Essa conclusão, quando levada ao STF, foi por diversas vezes reiterada. Todavia não queremos com isso aqui dizer que a justificativa apresentada pelo PLC nº 26/2002, esteja eivada de inverdades, mas se trata de uma evolução que com certeza será absorvida pela Suprema Corte, que entraria em sintonia com a atual realidade constitucional.

O projeto original sob o nº 1.747/99, tinha a seguinte redação:

Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal.

Artigo 2º Fica revogado o art. 4º do Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969.

Artigo 3º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Da analise do projeto acima com a norma vigente atualmente foi excluído do artigo 66, da Lei nº 4.728/65, o termo "depositário" e revogou-se o artigo 4º, do Decreto-Lei nº 911/69, o que afastaria a possibilidade a conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito regulada pelo Código de Processo Civil em seus artigos 901/906.

Entretanto o projeto original sofreu algumas modificações em sua redação, senão vejamos:

Art. 1º O caput do art. 66 da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor o possuidor direto.

........................ "(NR)

Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 3º Revoga-se o art. 4º do Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969.

Observa-se que no projeto original comparado com o atual, o artigo 66, teve supressão do seguinte trecho: "com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal", além do termo "depositário".

Essa omissão, claramente demonstra a intenção do legislador de eximir o consumidor de qualquer responsabilidade penal ou cível, a não ser aquelas exigidas normalmente em um negócio jurídico.

O atual artigo 66, da Lei nº 4.728/65, diz que o devedor ou alienante se torna "possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal".

O que deixa claro que a supressão acima no Projeto de Lei nº 26/2002, excluirá o devedor fiduciante de qualquer encargo da lei civil ou penal, veja que o Código Penal prevê a imputação de crime tipificado no artigo 171, no caso de venda de bem alienado sem autorização do credor, já no caso cível prevê a prisão do devedor alienante que não se encontrar com o bem alienado.

O caráter dos contratos de alienação fiduciária de constrange o consumidor a cumprir o mesmo sob pena de prisão deixam de existir com a aprovação do projeto de lei nº 26/2002, ver-se que com essa medida se estabelecerá o equilíbrio contratual, todavia para as instituições financeiras que viam no contrato uma segurança, darão lugar a outras modalidades contratuais pouco utilizadas atualmente.

A bem da verdade, a segurança que as instituições bancárias sentiam nos contratos de alienação fiduciária se dava em decorrência de uma possível decretação de prisão, dando maior possibilidades de reaver seu crédito, tal fato não passa de ilusão frente a outras modalidades contratuais, vez que há um leque enorme de medidas judiciais que possibilitam ao credor reaver seu investimento.

Não obstante dessas significativas mudanças o Projeto de Lei nº 26, deixou de apreciar a questão do Decreto-Lei nº 911/69, não propiciar uma ampla defesa:

Art. 3º...

...

§ 2º. Na contestação só se poderá alegar o pagamento do débito vencido ou o cumprimento das obrigações contratuais.

...

Denota-se o caráter constritor do Decreto-Lei, confrontando-se nitidamente com a nossa Constituição que garante uma ampla defesa e o contraditório, inaceitável. Portanto, os rivilégios concedidos às instituições financeira, pois fere, flagrantemente, os princípios da igualdade perante a lei e da isonomia processual. Necessário, diante da atual ordem constitucional e da lei de ordem pública protetiva dos consumidores, verificar se todos os dispositivos do Decreto-Lei nº 911/69, foram realmente recepcionados pela Constituição Federal e pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

Outro artigo que não foi apreciado pelo Projeto de Lei nº 26 é o artigo 2º, do Decreto-Lei nº 911/69:

No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao devedor o saldo apurado, se houve.

Trata-se, parcialmente, de flagrante desrespeito ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor, pois permite ao credor a alienação unilateral, sem fiscalização e sem hasta pública do bem apreendido, o que coloca o consumidor em franca desvantagem.

Para que, houve-se harmonização com a atual lei consumerista deveria existir determinação legal para que a venda do bem apreendido fosse feita por leiloeiro oficial, em hasta pública, com prévia notificação da data ao devedor, para que pudesse fiscalizar o ato. Devendo, ainda, obrigar o credor a comprovar nos autos o preço obtido com a venda do bem e prestação de contas, a fim se aferir sobre eventual saldo em favor do devedor [2].

Depreende-se que há a necessidade de outras modificações no Decreto-Lei nº 911/69, todavia as que constam do Projeto de Lei nº 26, já são de grande alento aos consumidores, que a cada dia tomam consciência e reivindicam seus direitos devendo o Legislador atentar para realidade perene, a fim de que o Direito esteja em constante evolução em consonância com o dinamismo social.


NOTAS

01. Supremo Tribunal Federal – HC 70.625-8 – SP – 2ª T – Rel. Min. Néri da Silveira – DJU 20.5.94.

02. Nesse mesmo diapasão se pronunciou o 2º Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo na Apelação nº 488886-00/4, de Araraquara, J. 03.06.1997, Rel. Juiz Pereira Calças.


REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

BRASIL. Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969. Altera a redação do art. 66 da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, estabelece normas de processo sobre alienação fiduciária, e dá outras providências.

BRASIL. Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965. Disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento.

BRASIL. Projeto de Lei da Câmara dos Deputados Federais nº 26/2002, de 15 de abril de 2002.

Sobre o autor
Edson de Oliveira Cavalcante

advogado militante na área do Direito Bancário, pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pelo ILES de Porto Velho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTE, Edson Oliveira. Conseqüências do Projeto de Lei nº 26/2002 sobre os contratos de alienação fiduciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3847. Acesso em: 5 nov. 2024.

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