4. OS CONCEITOS DE EMPRESA PÚBLICA E DE
SOCIEDADE
DE ECONOMIA MISTA
A análise da questão da incidência do princípio do concurso público sobre empresas públicas e sociedades de economia mista haveria de estar praticamente concluída com as considerações acima desenvolvidas, se as definições jurídicas destas entidades estatais fossem pacificamente aceitas por todos, de modo a que consensualmente sempre se pudesse dizer com segurança diante de um caso concreto se um dado ente estatal é uma empresa pública, uma sociedade de economia mista ou não.
Infelizmente, devemos observar que isto, ao menos em nosso direito, não é possível. Não temos pacificado dentre nós os conceitos destas entidades estatais. Nossas disposições legais, aliás, por mal elaboradas e redigidas em sofrível técnica jurídica, não só não ajudam o desate do problema, mas como também dificultam sobremaneira a sua possível solução.
Por esta razão buscaremos nos tópicos
seguintes dedicar alguma atenção aos conceitos de
empresas públicas e de sociedades de economia mista. Nosso
objetivo, por óbvio será o de definir a exata latitude
da extensão do princípio do concurso público
sobre a totalidade das empresas controladas pelo Poder Público.
É comum os estudiosos do direito administrativo salientarem que a expressão administração pública pode possuir dois significados jurídicos diferentes.
Muitas vezes a sua utilização é identificada com um certo tipo de atividade direta ou indiretamente relacionada com o Poder Público. Na linguagem de MARCELO CAETANO seria, nessa acepção, o conjunto de decisões e operações mediante as quais o Estado e outras entidades públicas procuram, dentro das orientações gerais traçadas pela Política e directamente ou mediante, estímulo, coordenação e orientação das actividades privadas assegurar a satisfação regular das necessidades coletivas de segurança e de bem-estar dos indivíduos, obtendo e empregando racionalmente para esse efeito os recursos adequados" (25). Nessa hipótese, é comum se afirmar, a sua utilização se dá em seu sentido material ou objetivo.
Outras vezes, porém, a mesma expressão vem utilizada no sentido de "conjunto de entidades jurídicas que podem desenvolver a actividade administrativa de interesse coletivo" (26). Aqui o seu emprego se dá em seu sentido orgânico ou subjetivo, e a este se reserva habitualmente como bem salienta o precitado mestre português a grafia com letras iniciais maiúsculas (Administração Pública) (27).
Sintetizando esta dupla utilização da expressão Administração Pública bem diz GARRIDO FALLA que "el vocablo administración tiene en castellano una doble significación que pude inducir a confusión: en sentido objetivo, se refiere a la acción de administrar(administración, con minúscula); en sentido subjetivo, hace referencia al sujeto de esa ación (Administración, con maiúsucula)" (28)
Como já vimos, o artigo 37 da Constituição da República estabelece uma série de preceitos que devem orientar a atuação da Administração Pública direta, indireta ou fundacional. Obviamente, neste dispositivo, o sentido em que se empregra a expressão administração pública só pode ser o subjetivo ou orgânico, em decorrência da qualificação que lhe é dirigida pelas expressões "direta, indireta ou fundacional" que lhe seguem (29).
De fato, tem sido tradicional na vida jurídica a utilização destas expressões para se fazer referência a conjuntos de órgãos ou de certas pessoas jurídicas vinculadas à Administração Pública. de quaisquer das esferas da Federação. O próprio Decreto-Lei nº 200/67, com a sua redação dada pela Lei federal nº 7.596/87, define como Administração Direta "a que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios" (art. 4º, I) e por Administração Indireta "a que compreende as seguintes categorias de entidades dotadas de personalidade jurídica própria: a) autarquias; b) empresas públicas; c) sociedades de economia mista; d) fundações públicas" (art. 4º. II).
Não deve causar espécie o fato do caput do artigo 37 da Constituição da República utilizar a expressão "administração fundacional" como algo distinto da "Administração Indireta", enquanto a nossa legislação vigente e a nossa própria doutrina entendem que as fundações criadas e mantidas pelo Poder Público integram a própria Administração Indireta. Menos por uma imprecisão, ao que cremos, e mais por um desejo de deixar induvidoso que as discutidas fundações estatais ou governamentais também estão submetidas aos princípios consagrados nos seus incisos, a redação do aludido preceito constitucional optou por ser menos técnica mas mais eficaz. Buscou evitar interpretações ou futuras construções legislativas que tivessem por resultado o retirar as entidades fundacionais dos comandos que impõe a toda Administração Pública. Cedeu em elegância e técnica. Ganhou na certeza da latitude de seus termos.
Temos, pois, relativamente pacificado dentre nós, até como já o afirmamos anteriormente, o conceito de Administração Indireta. Trata-se do conjunto constituído por autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações governamentais ou estatais.
Contudo, é necessário indagar, será que todo o conjunto de pessoas jurídicas controlado direta ou indiretamente pelo Poder Público está reunido dentro deste conceito ? E as empresas em que o Estado possui uma reduzida participação no seu capital social, mas não efetivamente o seu controle ? Estariam também dentro deste conceito de Administração Indireta ?
Obviamente as respostas a estas perguntas apenas poderão ser encontradas com a análise mais aprofundada dos nossos preceitos de direito positivo.
Uma análise cuidadosa da nossa Constituição nos revela de forma clara que o nosso legislador não tratou como sinônimas as expressões "Administração Indireta", e "empresas mantidas sob controle do Poder Público".
Com efeito, em alguns dispositivos a nossa lei maior manda os seus comandos se aplicarem às entidades que integram a Administração Indireta, sem fazer menção a qualquer outras espécies de entidades estatais. Isto ocorre não apenas no caput do seu artigo 37, mas também, exempli gratia, nos seus artigos 49, X, 71, III, 165, parágrafo 5º, I, e III, e 165, parágrafo 9º, II e 169, parágrafo único .
Em outros, porém, não é o que ocorre. Como sucede, por exemplo, nos artigos 22, XXVII, 71, II e 165, Parágrafo 5º, II, a Constituição determina que estes preceitos sejam aplicados à "Administração Indireta" e a "outras empresas sob seu controle", a "Administração Indireta " e a "sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público", ou ainda a "empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto".
Esta descoincidência conceitual, data maxima venia, não parece ser involuntária. Pelo contrário: em alguns casos, como por exemplo no confronto entre os incisos II e III do artigo 71 e nos incisos I, II e III, do parágrafo 5º, do artigo 165, a distinção entre estas expressões foi claramente assumida como uma técnica que tinha por objetivo fazer com que certas regras recaíssem apenas aos entes da denominada Administração Indireta, e outras a estas e as empresas controladas pelo Poder Público, ou apenas a estas últimas.
Firmemos algumas considerações acerca dos exemplos acima noticiados.
Cuida o artigo 71 de especificar competência do Tribunal de Contas da União. No seu inciso II declara que compete a este órgão "julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiro, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público"(grifo nosso). Já no inciso subsequente, altera o legislador o campo de abrangência da regra que define. Afirma que compete ao Tribunal de Contas da União "apreciar para fins de registro, a legalidade de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório"(grifo nosso).
Ora, como se observa, em um dispositivo (o inciso II) a regra de competência do Tribunal de Contas se estende para outras empresas além da Administração Indireta, quais sejam "as sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público". No outro, esta se limita à Administração Indireta.
Não nos parece ter sido por mero acaso que o nosso legislador utilizou estas diferentes formulações. Pretendeu efetivamente a nossa lei maior, nestes dois dispositivos, abarcar conjunto diferentes de pessoas.
Isto, aliás, ainda mais se confirma se confrontarmos o aludido artigo 71, III, com o já analisado inciso II, do artigo 37 da mesma Carta Constitucional. Como vimos, este último dispositivo determina a incidência do princípio do concurso público a todas as pessoas da Administração Indireta. Não por mera coincidência a competência do Tribunal de Contas se afirma no inciso III, do artigo 71, para o controle de legalidade também dos atos de admissão do pessoal da Administração Indireta. Tanto em um como em outro, restaram excluídas as demais pessoas controladas pelo Poder Público.
A razão dessa harmonia conceitual é simples. Não estendeu o legislador constitucional o princípio do concurso público para as empresas que controladas pelo Poder Público não integram a Administração Indireta. A sua incidência foi determinada apenas para as empresas públicas, as sociedades de economia mista, e as fundações estatais ou governamentais, ou seja, aos entes que integram a Administração Indireta. Por conseguinte, seria de todo irrazoável que o Tribunal de Contas controlasse a legalidade da admissão de pessoal em outros entes que não os da Administração Indireta. Não haveria o porque controlar a legalidade de admissões que são livres, ou seja, que não estão submetidas ao princípio do concurso público.
Donde concluir-se que a Constituição da República claramente admite a existência de empresas que controladas pelo Poder Público não sejam integrantes da Administração Indireta.
O mesmo se pode deduzir da simples leitura dos incisos I, II e III, do parágrafo 5º, do artigo 165, da nossa lei maior.
Cuida o artigo em referência do conteúdo da lei orçamentária anual. Segundo este dispositivo esta lei deverá compreender o orçamento fiscal (inciso I), o orçamento de investimentos (inciso II) e o orçamento da seguridade social (inciso III). Relativamente aos orçamentos fiscal e de seguridade social afirma que estes deverão ser referentes aos "Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público" ( no caso do inciso I), ou a União "as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta e indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público" (no caso do inciso II) (grifos nossos). Já quanto ao orçamento de investimento (inciso III) afirma que este deverá dizer respeito "às empresas que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto"(grifos nossos).
É indiscutível a mudança de técnica conceitual no inciso II em relação aos demais incisos do parágrafo 5º do artigo 165. Neste dispositivo a intenção do legislador é alcançar todas as empresas controladas pela União, não importando se estão ou não enquadradas no conceito de Administração Indireta. Ao revés, nos demais, a referência é apenas às entidades que integram a Administração Indireta.
Confirma-se então a conclusão anteriormente esboçada. Realmente admite a nossa lei maior a existência de um campo de empresas controladas pelo Poder Público mais amplo do que o universo que pode ser reunido sob o conceito de Administração Indireta.
Que empresas são estas que embora não sendo consideradas como empresas públicas ou sociedades de economia mista (ou seja, como integrantes da Administração Indireta) são controladas pelo Poder Público ? Qual o seu regime jurídico ? Em que medida estão submetidas às mesmas regras de controle que os entes dotados de personalidade jurídica de direito privado da Administração Indireta ?
Estas perguntas, obviamente, apenas poderão ser respondidas após a análise dos conceitos de empresa pública e de sociedade de economia mista.
Passemos então, de imediato a esta análise.
Inegavelmente tem o legislador ordinário competência para fixar os conceitos de empresa pública e de sociedade de economia mista em nosso direito positivo. Todavia, também nos parece indiscutível que ao menos no seu núcleo essencial estes conceitos já se encontram definidos pela própria Constituição da República.
Com efeito, o mero fato de ter a nossa lei maior feito referência direta à expressão "Administração Indireta", ou mesmo às expressões "empresa pública" e "sociedade de economia mista" por diversas vezes em seu texto, isto nos revela a existência de uma concepção jurídica prévia acerca do que seriam propriamente estas entidades. Concepção prévia que, naturalmente, no seu núcleo central de definição, restou incorporada à Constituição.
Natural que assim seja. Se o nosso legislador constitucional firmou uma série de regramentos para estas entidades estatais, em especial no campo dos controles administrativos, seria de todo absurdo que a definição destas pessoas não estivesse ao menos em certa medida já prefigurada a priori da legislação ordinária destinada a definir estas mesmas empresas. Tem o texto constitucional um conteúdo - como não poderia logicamente deixar de ter - quando afirma que empresas públicas e sociedades de economia mista estão sujeitas a este ou a aquele princípio ou regra. E, obviamente, este conteúdo materializa a mens legis de que estes princípios ou regras sejam obrigatoriamente aplicáveis a um certo tipo de entidades dotadas de personalidade jurídica que a própria Constituição, em certa medida, já pressupõe quais sejam.
A ninguém será dado imaginar o oposto. Deveras, como imaginar que a Constituição da República pretendendo fixar um conjunto de regras de obediência obrigatória para as leis e para os administradores federais, estaduais, distritais e municipais, tivesse deixado a livre critério destas mesmas leis ordinárias ou de atos administrativos, sem quaisquer parâmetros preestabelecidos, o conceito de empresas públicas e de sociedades de economia mista ? Seria o mesmo que estabelecer uma regra destinada ao regular da conduta de um determinado ser que não se sabe o que é no momento em que esta regra é efetivada e para a qual se permite a definição a posteriori do que seja efetivamente por aqueles que tem a obrigação de cumprir esta mesma regra no exercício normal das suas competências.
Em outras palavras: seria o admitir-se que o sujeito comandado por uma norma defina o próprio conteúdo do comando a que em tese estaria submetido.
A regra que assim viesse a proceder, a bem da verdade, nada comandaria. Deixaria ao comandado a opção de livre agir de acordo com a modelagem conceitual que viesse a estabelecer, a seu livre critério, em relação ao conteúdo da norma que in abstrato apenas retoricamente o vincularia.
Tal situação, evidentemente, haveria de ser qualificada en dépit du bon sens. E o mundo do direito, como se sabe, não aplaude, nem pode prestigiar o que é irrazoável e desdotado de sentido lógico.
Disto decorre, portanto, que empresas públicas e sociedades de economia mista possuem preestabelecidas na Constituição da República um núcleo jurídico de suas respectivas definições. Um núcleo que não pode ser ignorado pelo legislador ordinário, nem desrespeitado, no momento em que buscará entronizar no ordenamento positivo o conceito destas entidades estatais.
Resta saber agora, enfim, qual é este núcleo, ou seja, qual é o parâmetro irremovível que a nossa Constituição fixou para o definir das entidades da Administração Indireta a que denomina empresas públicas e sociedades de economia mista.
Ao conhecermos estes parâmetros saberemos com exatidão o campo de liberdade que foi outorgado ao legislador ordinário para talhar juridicamente o perfil final dos conceitos destas entidades estatais.
É o que buscaremos fazer a seguir.
O núcleo constitucional dos conceitos de empresa pública e de sociedade de economia mista apenas pode ser encontrado se procedermos a uma adequada reflexão acerca dos contornos normativos bosquejados pelo nosso próprio legislador para estas entidades no texto da nossa lei maior.
De início, cumpre ponderar que indiscutivelmente sempre restou assentado na nossa cultura jurídica que empresas públicas e sociedades de economia mista são pessoas jurídicas de direito privado. Esta concepção, deveras, em nada restou desconfirmada pelo texto da nossa lei maior.
Muito pelo contrário. Poderíamos mesmo dizer que restou confirmada a partir do que resta consagrado em alguns dos dispositivos da nossa Constituição.
Uma das provas disso, aliás, pode ser encontrada no caput do artigo 39 da nossa Carta Constitucional.
Cuida este dispositivo de estabelecer a obrigatoriedade de um regime jurídico único para o servidores públicos civis. Este regime, todavia, apenas seria aplicável, de acordo com o texto deste mesmo mandamento, à Administração Direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como de suas autarquias e fundações públicas, ou seja, a pessoas que dentro das concepções existentes se qualificam juridicamente como autênticas pessoas de direito público.
E é natural que assim seja. Em linhas gerais apenas duas espécies de regimes jurídicos podem governar a vida dos servidores públicos, quais sejam, respectivamente, o estatutário e o contratual. O primeiro, como sabemos, só é compatível com as pessoas de direito público. O segundo, embora característico das pessoas privadas já foi admitido dentre nós no passado como passível de utilização por pessoas de direito público .
Diante dessa realidade, seja por pretender que o regime jurídico único fosse o estatutário como pessoalmente sustentamos (31), seja por pretender que este regime jurídico fosse uma das alternativas possíveis de uma opção a ser realizada por cada uma das esferas da Federação como querem outros, excluiu deliberadamente o nosso legislador da imposição firmada caput do artigo 39 todas as pessoas vinculdadas a Administração Pública que a priori tinha como sendo de portadoras da natureza jurídica de direito privado.
Sociedades de economia e empresas públicas, por conseguinte, não foram incluídas como entes que deveriam ter o mesmo regime funcional da Administração Direta e das pessoas de direito público que integram a Administração Indireta. Com isso, impõe-se como inegável a conclusão de que o legislador constitucional partiu da premissa de que estas pessoas eram efetivamente pessoas de direito privado. E nesta medida, em plano constitucional, confirmou esta predefinição ontológico-jurídica para tais entes.
Donde assentar-se o primeiro ponto acima delineado para a configuração do núcleo constitucional dos conceitos sub examine: empresas públicas e sociedades de economia mista são constitucionalmente assumidas como pessoas jurídicas de direito privado. (32)
Todavia, apesar de serem pessoas de direito privado, também nos deixa claro o legislador constitucional que empresas públicas e sociedades de economia mista são entidades integradas à Administração Pública e, portanto, verdadeiros instrumentos da ação do Estado. Agem realizando atividades mediante delegação do Estado (serviços públicos), ou explorando atividades econômicas postas sob o alcance do Estado (por serem decorrentes de imperativo da segurança nacional ou de relevante interesse público - art. 173, caput, da Constituição Federal). Atuam, nesse sentido, sempre em campos de atividades de interesse do Estado, nos termos em que o ordenamento jurídico admite esta atuação. São, pois, verdadeiros agentes estatais.
Tal configuração, por óbvio, ao fazer parte do núcleo de definição constitucional destes entes, inexoravelmente, acaba por impedir que em nosso direito pessoas que não sejam juridicamente criadas ou assumidas como verdadeiros instrumentos da ação governamental possam vir a ser definidas como empresas públicas ou como sociedades de economia mista. Assim, jamais poderão ser enquadradas no direito brasileiro como empresas dessa natureza aquelas pessoas jurídicas cuja participação do Estado em seu capital social se dá por meras razões fortuitas, como por exemplo, aquelas cujas cotas ou ações se incorporaram ao patrimônio público por inexistência de herdeiros (herança jacente) (33). Mesmo, frise-se, que o Poder Público possua a totalidade ou a maioria do capital societário votante desta empresa.
Temos, nessa perspectiva, um segundo ponto de definição: por força das nossas regras constitucionais não podem ser definidas como empresas públicas ou sociedades de economia mista pessoas jurídicas que não sejam criadas ou assumidas pelo Estado como instrumento de sua ação.
A lei ordinária não poderá dispor de forma diferente, dando esta qualificação jurídica a quem pela Constituição não pode possuí-la. Mesmo que as normas inferiores a Constituição nada digam, ou mesmo afirmem conclusão diversa, as empresas de que o Estado participe da sua gestão ou do seu capital que não tenham sido criadas ou assumidas com o objetivo de serem um direto instrumento da ação do Estado não podem receber o tratamento de empresas públicas ou de sociedades de economia mista.
Por serem agentes estatais e constituídas com recursos públicos, as sociedades de economia mista e as empresas públicas estão sujeitas, como já se afirmou anteriormente, a um conjunto de normas de controle. Devem licitar (art. 37, XXI da C.F.), estão submetidas como já estudado ao princípio do concurso público (art. 37, II, da C.F.), devem ser fiscalizadas e controladas pelo Legislativo (art.49, X da C.F.) e pelos Tribunais de Contas (art. 71, II e III da C.F.), e estão inseridas no âmbito da lei orçamentária anual (art. 165, parágrafo 5º da C.F.), dentre outros. Tem por isso um regime jurídico especial que, como já dissemos anteriormente, as diferencia das pessoas privadas comuns.
Conclui-se, pois, que em larga medida a especialidade deste regime especial decorre da própria Constituição, embora possa, e em certa medida até deva, ser complementado pela lei, seja no âmbito do direito administrativo, como no do próprio direito comercial. Assim, este caráter especial, diferenciador, e identificador de uma tipologia própria para estas entidades é aspecto que também caracteriza o núcleo de definição constitucional das empresas públicas e das sociedades de economia mista.
Isto posto, podemos apontar de forma sintética os elementos comuns ao núcleo constitucional dos conceitos de empresa pública e de sociedade de economia mista. São estes, em síntese :
a) são pessoas jurídicas de direito privado dotadas de um regime jurídico especial;
b) devem ser necessariamente empresas criadas ou assumidas pelo Estado como um instrumento da sua ação para atuarem em campos juridicamente impostos ou admitidos como de seu interesse (prestação de serviços públicos ou exploração de atividade econômica).
Um aspecto importante desta análise não pode deixar aqui de ser referido. Diz o artigo 37, XIX, da Constituição da República que "somente por lei específica poderão ser criadas empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia e fundação pública"(grifo nosso).
Forçoso, então, indagar-se: não será a criação por lei um elemento que deve integrar o âmbito constitucional de empresas públicas e sociedades de economia mista ?
Muitos entendem que sim. Aliás, esta vem sendo a posição absolutamente dominante tanto na nossa doutrina como na nossa jurisprudência.
De fato, boa parte dos nossos estudiosos e dos nossos julgados partem da idéia de que a autorização legal seria um aspecto indispensável para a configuração de uma sociedade de economia mista ou de uma empresa pública.
MAURO RODRIGUES PENTEADO, por exemplo, em interessante estudo publicado sob a denominação de "As sociedades de economia mista e as empresas estatais perante a Constituição de 1988", (34) após análise histórica da questão (35), afirma peremptoriamente que "resulta evidente que inexiste sociedade de economia mista, cuja constituição não tenha sido precedida de prévia e específica autorização, emanada do Poder competente (Legislativo) (grifo do próprio autor) (36). Assim, as sociedades anônimas em que o Estado tem participação, à falta de autorização legal específica, não passariam de ser "sociedades anônimas de direito privado que não integram a Administração Pública, embora possam, por via reflexa, receber orientações específicas emanadas daquela, desde que obedecido o regime societário comum". Seriam elas, assim - como sempre o foram, segundo o autor - "apenas sociedades controladas direta ou indiretamente pelo Poder Público"(grifos nossos) (37). Este entendimento, dentro destas premissas de raciocínio, e em face do disposto no artigo 37, XX, da Constituição da República seria também aplicável às próprias subsidiárias das sociedades de economia mista. (38)
No mesmo sentido, devem ser lembrados, dentre tantos outros de não inferior envergadura, os ensinamentos de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO (39). Diz a respeito a ilustre professora da Universidade de São Paulo que "a exigência de autorização legislativa de tal forma se incorporou ao conceito de sociedade de economia mista, que a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que a exigência de autorização legislativa de tal forma se incorporou ao conceito de sociedade de economia mista, que a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que, se não houve autorização legislativa, não existe esse tipo de entidade, mas apenas uma empresa estatal sob controle acionário do Estado"(...) "Esse entendimento foi consagrado pelo legislador constituinte, como se verifica pela referência, em vários dispositivos, a esse tipo de empresa como categoria à parte". Nessa perspectiva ainda acaba por concluir que "essa conclusão tem, na realidade, alcance mais amplo, pois a todas as sociedades de economia mista que o Estado tem participação acionária, sem, no entanto, a natureza de sociedade de economia mista, não se aplicam as normas constitucionais, legais ou regulamentares referentes a esta última entidade, a menos que sejam abrangidas expressamente" (40)
Quanto a jurisprudência, os julgados também se sucedem na linha de confirmar este entendimento (41).
Embora entendamos que as empresas controladas por sociedades de economia mista sejam efetivamente apenas empresas submetidas ao controle acionário do Estado (e não também sociedades de economia mista), por razões que em outro estudo desenvolvemos de forma bastante aprofundada (42), não compartilhamos do entendimento de que a criação por lei seja um elemento pertinente ao núcleo conceitual definido em nossa Constituição tanto para as sociedades de economia mista como para as empresas públicas.
Todavia, para que se evite um bis in idem em
relação a este trabalho antecedente e uma excessiva
prolixidade no desenvolvimento das presentes reflexões,
nos limitaremos por ora a afirmar, em sentido contrário
ao que marcha a ampla opinião dos doutos e dos nossos Tribunais,
que a criação por lei (ou, como querem alguns, a
autorização legal para a sua criação)
não deve ser tida como um elemento indispensável
para a configuração jurídica da existência
de tais entidades integradas à Administração
Indireta.
Firmada a análise do núcleo constitucional comum dos conceitos de empresas públicas e de sociedades de economia mista, devemos nos concentrar agora nas diferenças que o nosso texto estabelece para estas duas particulares espécies societárias que integram a Administração Indireta.
Evidentemente, se a Constituição as distingue com denominações diferentes ("empresas públicas" e "sociedades de economia mista") é porque juridicamente reconhece alguma relevância em que ontologicamente sejam vistas e qualificadas como espécies societárias distintas.
Mas no que consistiria esta diferença ?
Independentemente de outras distinções que possam vir a ser produzidas a nível legal, cremos que no plano estritamente constitucional a diferença conceitual se reduz a um único aspecto: a empresa pública deve ser composta por capitais exclusivamente públicos, enquanto que a sociedade de economia mista deve ser composta por capitais públicos e privados. Apenas nisto, a nosso ver, reside a diferença no que concerne ao plano constitucional do tratamento da matéria (43).
Não nos parece difícil sustentar a razão em que se embasa este entendimento. Nos termos da nossa lei maior, ressalvadas outras conseqüências apontadas para a distinção entre estas duas espécies de pessoas (44), o único elemento que temos para o estabelecimento destas duas pessoas jurídicas vinculadas à Administração Indireta é a sua própria denominação e a cultura jurídica vigente no momento da entrada em vigor do texto Constitucional. Uma é chamada de empresa "pública". A outra de sociedade de economia "mista". Sabendo-se que na nossa cultura jurídica a expressões "empresas" e "sociedades constituídas para fins econômicos" não poderiam qualificar in casu qualquer distinção relevante, a distinção constitucional deve recair apenas no que deve ser o "público" e no que deve ser o "misto". E, por óbvio, tais qualificações apenas poderiam recair em relação ao seu capital social.
De fato, de acordo com as nossas concepções dominantes as pessoas jurídicas de direito público que integram a Administração Indireta são as autarquias, enquanto que empresas públicas e sociedades de economia mista, como já reiteradamente referido, são pessoas jurídicas de direito privado. Logo, a expressão "pública" que acompanha a palavra "empresa" ou a palavra "mista" que acompanha a expressão "sociedade de economia" não podem se referir a uma qualificação da ontologia jurídica pública ou privada destes entes. Não são as empresas públicas pessoas de direito "público" ou as sociedades de economia mistas pessoas de um não identificado direito "misto", uma vez que são reconhecidamente - repita-se novamente - pessoas privadas.
Estas expressões - sociedade de economia mista e empresa pública - acolhidas em nossa cultura jurídica, expressa em lei e em escritos doutrinários, portanto, foram utilizadas pelo nosso legislador constitucional com um sentido certo. Uma destas pessoas que integram a Administração Indireta é uma pessoa de direito privado composta por capitais exclusivamente públicos (empresa pública). A outra, também pessoa de direito privado, é composta por uma conjugação de capitais públicos e privados (sociedade de economia mista). Nisso, entendemos, reside o paradigma acolhido pela Constituição para a definição nuclear destas duas particulares espécies de empresas estatais.
Daí naturalmente decorre que em larga medida o delineamento pormenorizado do conceito destas pessoas, e de outros aspectos relativos à sua configuração jurídica e ao seu regime especial, foram deixadas pelo nosso legislador constitucional para o âmbito legal. Assim, a exigência ou não da adoção de forma societária de direito privado correspondente às tipologias existentes no direito mercantil (sociedade anônima, por quotas de responsabilidade anônima), a relação que deve existir entre o capital público e o capital privado nas sociedades de economia mista, a definição do que propriamente deva se entender por "capital público" (capital pertencente a pessoas de direito público ou a pessoas de direito privado controladas pelo Poder Público) ou por "capital privado" (capital pertencente a pessoas de direito privado controladas pelo Poder Público ou a pessoas privadas comuns não sujeitas a qualquer espécie de controle estatal), acabam por constituir relevantes questões não solucionadas a priori pelo legislador constitucional. O seu enfrentamento haverá de ser feito pelo legislador ordinário que, ao menos nesses aspectos, não deverá se sentir vinculado a qualquer situação predisposta pelo texto Constitucional.
O que não poderá fazer, por óbvio, a nossa lei, é definir empresa pública como pessoa jurídica de direito público (posto que estas são autarquias), ou afirmar que tais entes estatais podem ter a participação de capital privado. Ou ainda afirmar que sociedades de economia mista não são pessoas jurídicas de direito privado, ou que podem ser compostas por capitais exclusivamente públicos ou exclusivamente privados. Afinal, em quaisquer destas perspectivas haveria direta contrariedade aos núcleos conceituais firmados para estes entes na nossa Constituição.
No mais, tudo pode ser dito pelo nosso legislador ordinário.
A definição mais detalhada dos seus conceitos, suas
peculiaridades quanto as formas societárias que podem assumir
estas empresas e ainda outras características e especificidades
do seu próprio regime especial, haverão de ser trabalhadas
em lei.
Podemos agora buscar uma definição de empresa pública e de sociedade de economia mista no âmbito da Constituição da República. Obviamente, este conceito em nosso ordenamento jurídico representará o núcleo configurador da essência jurídica destas empresas estatais, sendo, a nosso ver, impossível que as normas legais ao tratarem direta ou indiretamente do problema da sua conceituação possam vir, em qualquer medida a desfigurá-lo. Poderão melhor precisá-lo, fixando com maior segurança seus limites. Poderão introduzir novos aspectos avaliados como necessários para a atuação e controle destas empresas. Mas nunca contradizer essa noção, sob pena de assumirem uma situação de manifesta inconstitucionalidade.
Assim sendo, podemos dizer que nos termos da nossa Constituição empresa pública é a pessoa jurídica de direito privado criada ou assumida pela Administração Pública para ser um instrumento da sua ação na prestação de serviços públicos ou na exploração de atividade econômica, submetida a um regime jurídico especial e constituída por recursos exclusivamente públicos.
Por sua vez, sociedade de economia
mista é a pessoa jurídica de direito privado
criada ou assumida pela Administração Pública
para ser um instrumento da sua ação na prestação
de serviços públicos ou na exploração
de atividade econômica, submetida a um regime jurídico
especial e constituída necessariamente pela conjugação
de recursos públicos e privados.