Resumo: O artigo trata da necessária aplicação da perspectiva sociológica ao fenômeno jurídico, percebido como fenômeno socialmente construído, discorrendo a respeito da importância da Sociologia Jurídica nos cursos de Direito. Entende-se que a Sociologia, junto com as demais disciplinas humanistas, visa possibilitar a superação de uma formação “ingênua”, decorrente de um positivismo normativista, sem percepção crítica e transformadora por parte dos operadores da Lei. Considerando-se que o direito sofre mudanças no decorrer do tempo e nas configurações espaciais, entende-se que, na realidade social concreta, este fenômeno não transparece como simples expressão da vontade da classe dominante, nem tampouco como simples reflexo das determinações econômicas. Aponta-se assim que o direito moderno institui-se como mediador entre as classes. Aponta-se assim, para a necessidade da eclosão de um novo paradigma jurídico, que esteja presente na formação do profissional do direito adequado às necessidades do real.
1. Introdução
Consideramos fundamental a aplicação da perspectiva sociológica ao fenômeno jurídico, percebido como fenômeno socialmente construído e, para tanto, pretendemos discorrer a respeito da importância da Sociologia Jurídica nos cursos de Direito. Esta matéria visa, fundamentalmente, contribuir para a superação de uma visão tecnicista, esvaziada de conteúdos humanistas, que tantas vezes acomete a formação legalista do bacharel em Direito. Entendemos que a Sociologia, junto com as demais disciplinas humanistas, visa possibilitar a superação de uma formação “ingênua”, decorrente de um positivismo normativista, sem percepção crítica e transformadora por parte dos operadores da Lei.
Consideradas como eixo da formação crítico-reflexiva, as disciplinas humanistas devem estar imbricadas entre si, num trabalho de formação transdisciplinar que permita a compreensão do Direito como fenômeno pluridimensional, multifacetado e complexo, capaz de atuar como instrumento não somente de repressão, mas também (e principalmente) de mudança e transformação.
Podemos afirmar que a Sociologia, voltada para a compreensão do fenômeno jurídico, representa um importante passo para uma concepção dialética do Direito, compreendido, portanto, como processo – capaz não só de representar os interesses dominantes das estruturas sociais vigentes mas, principalmente, caminhar para a ruptura dessas estruturas. Entendemos então, que o Direito não é simples ideologia (embora se recubra desta também), mas um processo histórico, significado pela ação concreta e constante, decorrente do embate das forças sociais presentes na sociedade que o constrói.
Por outro lado, quando o Direito é tratado como instrumento emanado unicamente do Estado, possuindo a lei como sua única expressão, favorece a consolidação de uma formação positivo-normativa, cuja função passa a ser muito mais informar do que formar o bacharel em Direito. Tal tratamento fortalece o tecnicismo, impondo uma padronização da linguagem e da leitura dos códigos, justificando e reproduzindo a realidade social. Como consequência, formas sociais são reproduzidas, garantidas e mantidas as hegemonias e ideologias, sem que se percebam as possibilidades de transformação desta realidade. Daí a importância de transcender a visão tecnicista, bem como de transcender a visão unilateral e unidimensional, que não absorve as contradições e os movimentos do real, especialmente aqueles que apontam para a existência de um pluralismo jurídico.
Tomando por base essas colocações, entendemos que o profissional do direito não deve ler o universo como se esse fosse meramente um livro de direito, já que o universo social do qual o direito faz parte é sempre maior que o próprio direito, não podendo ser reduzido a este. Pelas palavras de Jean Carbonnier, afirmamos que “uma certa insignificância do Direito deve ser um dos postulados da sociologia jurídica: o direito é como uma espuma na superfície dos relacionamentos sociais ou interindividuais” (Carbonnier, 1999, p 47).
2. A perspectiva sociológica na formação do profissional do direito
A Sociologia do Direito possui bases originais em Emile Durkheim, especialmente a partir dos estudos que o autor faz acerca da solidariedade social, garantida nas sociedades complexas, pela divisão social do trabalho e por um tipo de direito restitutivo. Esta perspectiva esteve voltada marcadamente para estudos sobre as formas de controle social, preocupadas em fechar ou cimentar as “brechas” que se produzem na realidade social, e que são frutos de contradições e antinomias do direito. De acordo com Gurvitch (1999), esta forma de conceber o direito apresenta problemas que devem ser superados, uma vez que não leva em conta a questão da pluralidade das fontes pelas quais o controle é produzido e exercido, não permitindo que sejam consideradas as diferentes hierarquias de controle social, segundo diferentes contextos históricos e culturais.
Uma significativa contribuição para a sociologia do direito foi a do jurista austríaco Eugen Erlich, que em 1912 escreveu os Fundamentos da Sociologia do Direito, afirmando que “a Sociologia do Direito deve começar pela pesquisa do direito vivo. Ela deve dirigir-se primeiramente ao concreto e não ao abstrato. Somente o concreto pode ser observado” (Ehrlich, 1999, p. 113). Segundo Ehrlich, as leis são parte das regulações sociais e, desse modo, o código civil não expressa toda a complexidade do direito, uma vez que o que a lei propõe nem sempre se efetiva realmente.
Evidentemente, o documento só mostra aquele segmento do direito vivo que está documentado. Como se pode, pois constatar aquela parte do direito vivo, que não está incorporada em documentos, a qual é grande e bastante importante? Não há outros meios a não ser abrir os olhos, Informar-se através de uma observação atenta da vida, entrevistar as pessoas e anotar suas respostas. (Ehrlich, 1999, p. 113 ).
A partir dessas rápidas inferências às idéias de Ehrlich, podemos perceber o caráter precursor do autor no que diz respeito à elaboração de uma sociologia do direito, pautada na investigação empírica e concreta dos fenômenos jurídicos, evidenciando o caráter social de que estes são revestidos.
Partindo do pressuposto de que o Direito é multidimensional, podemos afirmar que uma de suas dimensões é tomada como objeto de estudo da sociologia, cabendo a ela investigar as causas e os efeitos das leis. Compreendendo que as leis são fenômenos sociais, historicamente construídos, é possível afirmarmos que há causas sociais para a existência de determinadas leis, bem como efeitos ou conseqüências sociais destas leis sobre a realidade social em que são forjadas. Em outras palavras, a sociologia investiga o impacto social das leis numa dada sociedade. Não se trata de observar ou julgar valorativamente as leis (o que é papel da filosofia do direito) e sim, investigar os valores sociais que nutrem a existência de determinadas leis, bem como sua eficácia social. Desse modo, apontamos para a importância da pesquisa científica de cunho sociológico, que seja voltada para o universo jurídico, envolvendo estudos de representações sociais, percepção de valores e expectativas sociais acerca do direito, da justiça, das leis e inovações jurídicas.
A sociologia jurídica examina a influência dos fatores sociais sobre o direito e as incidências deste último na sociedade, ou seja, os elementos de interdependência entre o social e o jurídico, realizando uma leitura externa do sistema jurídico. (Sabadell, 2000, p. 49)
A sociologia jurídica, em seu desenvolvimento histórico como disciplina, apresenta inúmeras diversidades, tanto pelo seu amplo leque de objetos de investigação, bem como pelas teorias que lhe fundamentam. Como ciência social, é marcada por diferentes “olhares”, que garantem a observação da realidade jurídica por diferentes prismas e dimensões. Acerca da importância da sociologia nos cursos de Direito, afirmam Faria e Campilongo:
As grandes transformações que atingiram o Brasil durante os últimos anos – das quais são um importante desdobramento os movimentos em favor dos direitos humanos e de acesso à Justiça, procurando tornar mais efetiva a idéia de que o direito é “universal” e tentando forjar, por meio de lutas políticas, formas alternativas de lei capazes de atenuar as desigualdades sócio-econômicas, abriram caminho para o questionamento da estrutura vigente dos cursos jurídicos. Isso fez com que muitos juristas, pondo em questão as fronteiras tradicionais do direito com as ciências sociais, substituindo abordagens lógico-formais por outras mais críticas e problematizantes, historicizando a análise do direito, identificando os pressupostos ideológicos da dogmática jurídica implícitos na cultura “técnica” dos operadores dos códigos, colocando em novos termos o conceito de “juridicidade”, retomando a discussão em torno do pluralismo jurídico, dando um novo tratamento ao problema das fontes do direito e convertendo a eficácia do direito num dos temas obrigatórios da reflexão dos juristas, passassem a defender uma ampla reformulação estrutural desses cursos. (Faria e Campilongo, 1991, p. 25-26)
O que podemos observar é que a sociologia jurídica caminha para uma reflexão acerca da cisão ou distanciamento existente entre o direito formalmente vigente e o direito socialmente eficaz. Isto passa a se evidenciar à medida que o direito se torna um objeto de investigação autônomo para a sociologia, distanciando-se da filosofia do direito e da dogmática jurídica, clamando interesse sociológico pela emergência das lutas sociais movidas por grupos de interesses específicos, referentes aos novos e plurais direitos sociais (estudantes, negros, mulheres, sem-terra, etc.).
Assim, tratar sociologicamente o Direito é supor que este se situa numa realidade socialmente construída e possui, em sua essência, um caráter social, bem como um caráter histórico, uma vez que se constitui a partir de relações sociais historicamente determinadas. O direito sofre mudanças no decorrer do tempo e nas configurações espaciais. Possui uma historicidade e, por isso, quando se fala da origem do direito, fala-se da origem de certo direito, quando se diz defender o direito, o que se defende é uma certa concepção de direito (Lyra Filho, 1982). Isso nos reporta à direta associação entre direito e política, direito e história, direito e realidade social, evidenciando que o direito é concreto, vivo, contínuo processo em construção e transformação. Desse modo, a sociologia aplicada ao estudo do direito deve estar voltada para o desmascaramento das idéias jurídicas, revelando objetivos e interesses que se ocultam por trás dessas idéias. Para tanto, é necessário que a dogmática jurídica não prepondere, para que a investigação sociológica não seja por ela abafada. Isso é fundamental para entendermos a própria realidade social na qual o direito se situa e atua, como forma de intervenção racional de controle social e de expansão das liberdades.
A norma jurídica, assim como as demais normas que regulam a vida social, emana da sociedade. Utilizando-se dos instrumentos e instituições voltados para a constituição do direito, a norma jurídica fundamenta-se nos objetivos, crenças, valores e interesses (sociais, políticos, econômicos) que prevalecem na estrutura social vigente. Realidades sociais diferenciadas condicionam, historicamente, ordens jurídicas também diferenciadas, operando a existência de uma forte relação entre conjuntura global e normatividade jurídica. Do mesmo modo, cada processo nacional ou grupal expressa uma realidade particular a que correspondem instituições também particulares, dentre elas, as instituições jurídicas, sobre as quais recaem os condicionantes sócio-culturais reforçados pelos costumes, pela moral e pelos valores sociais.
Entendendo que o contexto social em que vivemos apresenta-se marcado por determinações de classe, de raça/etnia e de gênero, sabemos que o poder, entidade metafísica e abstrata, ao expressar-se concretamente, apresenta-se como proprietário dos meios de produção, branco e adulto e, certamente, masculino. É nesse contexto de relações de poder bem definidas que as leis são promulgadas, normas instituídas, códigos acatados.
Podemos apontar um exemplo bastante elucidativo das desigualdades e discriminações sociais que são reproduzidas e, muitas vezes, abafadas pelas leis em vigor até que, após muitas lutas e reivindicações, sejam modificadas. Segundo a advogada Alessandra Teixeira, o fato dos homens presos terem o direito a visita íntima contrasta com a ausência desse direito para as mulheres presas no Estado de São Paulo. Embora formalmente tenha sido superada a visão de que a visita íntima pudesse ser uma regalia ou um privilégio do apenado, ainda não foi percebida como um direito que deve também ser estendido às mulheres presas, e não somente aos homens. Trata-se, segundo a autora,de mais uma forma de violência de gênero e discriminação sexual a que a mulher é submetida, reforçada pelo tratamento jurídico-penal a ela destinado.
O abandono da mulher presa é perpetuado pelo sistema penal, que além de criminalizar, tradicionalmente, as condutas das classes desfavorecidas, lhes aplica o tratamento penalizador o mais estigmatizante e feridor de seus direitos fundamentais. (Teixeira, 2001, p. 04)
Num de seus ilustrativos trabalhos de pesquisa, Sérgio Adorno elabora uma crítica à máxima do pensamento político clássico, forjada no interior do liberalismo do Estado Moderno, que afirma a igualdade de todos perante as leis. O autor aponta que este princípio ateve-se a uma eficácia simbólica que esteve (e está ainda) em desequilíbrio com a eficácia material, o que o leva a questionar a relação estabelecida entre justiça social e igualdade jurídica. Aplicada esta reflexão sobre as condições jurídicas no Brasil, Sérgio Adorno aponta que a distribuição de justiça alcança somente alguns cidadãos; enquanto o acesso aos serviços judiciais é dificultado e as decisões judiciárias são discriminatórias (Adorno, 1999).
Afirma Adorno que o foco da atenção processual é voltado para elementos subjetivos, como o comportamento criminoso, virtudes e vícios dos personagens envolvidos no processo judiciário, os dramas da vida cotidiana, a busca de comportamentos considerados dignos, justos, normais, universais. No decorrer dos processos penais, o crime deixa de ser um drama social, quando outros fatores – além do próprio crime – passam a concorrer para a condenação ou absolvição dos réus: investigação da vida pregressa e dos antecedentes dos agressores e vítimas, imaginação hipotética de situações e circunstâncias, dedução de prováveis comportamentos de vítimas e agressores. Assim, o processo judiciário aparece como um constructo social, permitindo a contaminação por inúmeros preconceitos, interpretações deturpadas e informais que podem ser confundidas com a interpretação racional dos códigos. Objetividade e subjetividade se mesclam e se confundem.
Essas contribuições de Sérgio Adorno permitem desfazer a imagem de que a justiça possa ser cega e neutra, uma vez que revela a complexidade dos processos judiciais, descaracterizando a dimensão puramente técnica e jurídica dos agentes e aparelhos de condenação. Conclui o autor, portanto, que a justiça penal é incapaz de traduzir diferenças e desigualdades em direitos, incapaz de fazer da norma uma medida comum, incapaz de fundar o consenso em meio às diferenças e desigualdades (Adorno, 1999).