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Jurisdição, ação e processo à luz da processualística moderna:

para onde caminha o processo?

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Agenda 01/04/2003 às 00:00

7- O Processo.

Durante séculos o processo permaneceu à sombra do direito material. Não se tinha uma noção da importância fundamental do processo no sistema de consecução dos direitos. Assim como os demais institutos do direito processual, também o processo sofreu uma influencia de duas correntes, uma privatista outra publicista. A priori, a noção de processo se confunde com a de rito, de procedimento, e como a ação, e consequentemente o processo, eram o direito material em movimento, não se conseguiu distinguir claramente as noções de processo, ação e direito material.

Primeiramente é preciso notar que o vocábulo processo tem variadas acepções. Processo denota movimento, dinâmica, transformação, e neste sentido é uma palavra de uso comum nas ciências. Utiliza-se juridicamente o vocábulo com múltiplos significados. Primeiramente referimo-nos ao processo como método de composição da lide (visão carnelutiana corrente em nosso direito). Neste sentido é que se diz mover um processo, que está aí por relação processual. Outro sentido comumente dado ao vocábulo substitui "autos" e neste caso processo está por materialização física do processo. Há ainda a utilização de "processo" atrelada a uma designação de função e neste caso se fala de processo de execução, cautelar e de conhecimento. Na verdade processo é o veículo da ação, quer dizer é a manifestação concreta, fatual do exercício do direito de ação e a caracterização do instituto toma variados matizes.

Assentada a construção da teoria processual esposada em nosso direito sobre os postulados de Carnelutti, assim como se nega haver jurisdição em efetivo exercício no caso da jurisdição voluntária, também se nega haver processo naqueles casos em que não esta em jogo litígio. Neste casos fala-se em procedimento, resguardando-se o uso de processo para os casos em que há lide. Tal asserção deixa de fora do conceito de processo a atividade administrativa por exemplo, limitando o emprego de "processo" somente para os casos em que se exerce jurisdição frente à "litis". O CPC abranda a aplicação do princípio, pois se refere à uma jurisdição voluntária, mas em tal caso exercida não através do processo, mas sim de procedimento [39]. Mais uma vez em voga uma visão privatista, porque toma por base a pretensão levada a juízo como fator de discrímem.

Também se busca distinguir processo de procedimento ou rito, sendo este último caracterizado pela morfologia externa do processo. Em tal ordem de idéias temos o processo de conhecimento que se manifesta em diversos ritos ou procedimentos, que são a ordenação dos atos processuais. Com efeito, o processo é um fenômeno complexo em que diversos atos concatenam-se no tempo espaço para a consecução de um fim ( de acordo com a doutrina tradicional a composição do litígio). O rito seria a ordenação destes atos preordenada ao atingimento de fim colimado. Realmente não se pode confundir a noção de processo com a de rito, porque o rito é a forma de ser do processo visto de "fora". A importância do rito, contudo, é hoje retomada, após ter sido negligenciada por muito tempo, pois se observa que é através do rito que se pode assegurar as garantias constitucionais. O processo ao contrário, é o conjunto de atos preordenados a um fim, in casu à conceder a prestação jurisdicional. Faremos maiores considerações mais adiante, quando tratarmos do processo à luz da corrente instrumentalista. Por ora é de mister perpassarmos perfunctoriamente as diversas construções acerca do processo e sua evolução.


8- Construções Teóricas acerca do Processo.

Também o processo sofreu forte influência da ideologia dominante nos períodos da história, variando sua composição e estrutura conforme o momento e o local tomados. Podemos afirmar, todavia, não obstante esta variabilidade, que há um sentido no movimento de evolução do processo que aponta para uma publicização cada vez maior. Isto é reflexo da monopolização da jurisdição pelo Estado e modernamente pela visão preponderante da jurisdição como uma função do Estado. Assim é que em Roma vislumbram-se três períodos de evolução em que se nota uma redução das formalidades, denotando a redução do componente místico, e uma publicização crescente no exercício da jurisdição, sem que se possa dizer que o processo romano tenha deixado de ser um processo altamente privatista. No período das "legis actiones", que eram cinco, seguia-se um rito de rígido formalismo em que a observância das formas era de capital importância. O processo tomava um cunho cerimonial extremo. A preterição de qualquer forma implicava a perda do direito de ação.

No período formulário deixou de existir o cunho quase religioso, mas o processo adquiriu feições de um exacerbado privatismo posto que as partes dirigiam-se ao magistrado para que este se lhes desse uma fórmula que era então levada ao "arbiter" a quem incumbiria o julgamento. Somente no período da "cognitia extraordinem" é que surgiu o processo mais próximo das feições que hoje apresenta com o magistrado proferindo o "judicium" e com a existência de auxiliares. Mas ainda assim, note-se bem, a jurisdição, e consequentemente o processo, tomavam uma feição subsidiária, secundária, sendo centrada sua movimentação à instância da parte.

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O processo penal primitivo não acompanhou o processo civil e tal se explica pelo fato de que então processo e direito material eram considerados duas faces do mesmo fenômeno, ou melhor dizendo não havia um processo separado do direito material, mas sim o direito material em movimento. Logo, é natural que o direito processual civil encontrasse um desenvolvimento muito superior porque o direito civil era extremamente mais desenvolvido que o penal.

Esta discrepância se deve ao fato de que o direito penal, por tratar-se de um mecanismo de controle social mais eficaz, sempre apresentou uma ingerência política maior e manteve, ainda por longo tempo, um componente político presente, tanto mais quando se implantou o processo canônico na Idade Média. Basta observarmos que a base de nosso direito civil não está muito longe da base romana, mas no direito penal de cento e cinqüenta anos atrás se aplicava pena de galé. Destarte, o direito penal e o processo penal sempre serviram mais ao aparelho repressor do Estado do que à comunidade e a isto se deve o fato de até hoje demorarem as conquistas da ciência jurídica a surtir efeitos neste campo.

O processo medieval é marcado pela influência germânica e pelo processo canônico. A influência germânica representou um involução nas conquistas romanas, embora não se negue que deixaram algumas contribuições, em especial na sumarização da cognição. A involução se caracteriza pelo forte componente religioso do processo germânico medieval, fruto de uma cultura bastante rudimentar. Eram comum o uso de ordálias e juízos divinos, além de ser corriqueira a prática de duelos. A base do direito Romano se manteve no Império Bizantino e seria depois trabalhada pela glosa para a formação do processo comum medieval de origem italiana. É desta época também o Processo Canônico aplicado pelo famigerado Tribunal do Santo Ofício que fazia da tortura o instrumento básico de obtenção de confissões. Este processo procurava na verdade dar aplicação a uma política de dominação e, assim como o todo o processo praticado na época, não contemplava garantia alguma sendo o réu não sujeito do processo, mas sim objeto dele.

A situação alterou-se somente após a Revolução Francesa quando as declarações de diretos passaram a influenciar a aplicação da lei na condição de princípios retores do sistema, quadro que permanecerá até o advento do Estado Democrático Social de Direito, cuja influência abordaremos mais de perto mais adiante. Modernamente, ou seja, a partir deste período podem ser identificadas uma série de construções teóricas que tentam explicar o processo as quais serão brevemente analisadas a partir de agora. Dividem-se em dois grande grupos conforme tenham inspiração privatista ( contrato) ou publicista.

8.1- O processo como Contrato:

Aqui se tem o reflexo de uma atuação ainda acanhada do Estado frente ao exercício da jurisdição e uma forma bastante privatista do processo, concebido então sob a roupagem de um contrato. Tem-se então a "litiscontestatio" ou "litis contestatio", mediante a qual as partes vinham a juízo onde se lhes era concedida uma fórmula ( segundo período de evolução), primeiro ao autor depois ao réu, e segundo a qual se comprometiam a aceitar a solução que fosse dada ao conflito por um terceiro, "arbiter´ ou "iudex" que não era o pretor estatal. Na primeira fase de evolução a litiscontestatio servia para a imposição da decisão às partes e então dizia Ulpiano que em juízo se contraía obrigações como fora dele. O traço distintivo e relevante reside neste fato: a jurisdição era exercida por um arbitro não pertencente ao corpo estatal. Representava a transmutação do conflito em lide judicial uma verdadeira novação que punha fim ao que existia antes substituindo-se o "negotia" pela "sententia". Embora certa parcela da doutrina francesa, fundamentada no contratualismo de Rosseau ainda tenha dado vida a esta construção, o fato e que o processo moderno jamais poderia ser concebido nesta formulação.

8.2- O Processo como quase contrato [40]:

A sistemática romana no que concerne às obrigações e suas fontes era rígida. A teoria do quase contrato nasceu exatamente da constatação de o processo não se enquadrava nas formas usuais de criação de obrigações. Não era, certamente um contrato porque sua criação não se dava por exclusiva ação da vontade das partes, que eram necessariamente conduzidas a esta solução por força da lei. Tampouco se haveria de falar em delito, embora pudesse existir na origem da controvérsia. Mas uma coisa e termos um delito como objeto do processo, outra e ser o próprio processo o delito. Origem da teoria remonta a um fragmento no qual se lê: "in judicium quase contrahimus". É certamente visível a influência privatista desta teoria, que jamais poderia ser tolerada nos processo moderno. Se coaduna, esta visão, a uma concepção civilista de ação.

8.3- O Processo como Instituição:

Esta teoria tem como idealizador Jaime Guasp. Parte da premissa sociológica de que o processo representa uma escolha do grupo social. As escolhas de determinados valores e comportamentos, quando alcançam um grau de abrangência significativo, sejam escolhas democráticas ou não, e neste último caso são impostas por uma estrutura de poder apta a impô-las, atingem a institucionalização, passando a valerem de per si, ou seja, adquirem dentro de um determinado espaço de tempo, uma inquestionabilidade. O processo não deixa de ser uma instituição, mas afirmar isto pouco acresce na tentativa de delineá-lo corretamente.

8.4- O Processo como Situação Jurídica:

Trata-se de teoria desenvolvida por James Goldschimidt [41]. Na visão do processualista alemão o processo representa uma situação jurídica de sujeição a um futuro comando sentencial em que materializam as expectativas dos contendores em relação a um resultado, que pode ser favorável ou desfavorável. A norma jurídica, enquanto estática, tem ínsito um provável direito subjetivo e quando esta mesma norma é posta em atuação pelo processo, dito direito se converte em uma expectativa, funcionando a norma como critério para o julgador. Na verdade a teoria do autor alemão peca por dar margem a um tecnicismo inconcebível e por direcionar-se mais ao direito que constitui a "res in judicio deducta".

8.5- O Processo como Relação Jurídica:

Esta sem dúvida a teoria que maior alcance obteve em termos de aceitação. É obra de Oscar von Bülow, e foi veiculada em sua revolucionária obra " Teoria das exceções e os pressupostos processuais" [42], publicada em 1868.Bülow soube captar a essência que se mantivera recôndita sob o matiz do direito substancial, tendo plena consciência de que o direito processual padecia de um grave atraso científico em relação ao direito material. Até então, o processo é visto como mero rito, mas o autor localiza nele uma verdadeira relação jurídica, estabelecendo um vínculo jurídico entre o juiz e as partes, assim como já dizia o glosador Búlgaro: "judicium est actum trium personarum". O exercício da ação, dando vida ao processo, colocaria o Estado -juiz em uma situação de sujeito de direitos e obrigações frente às partes, dentre as quais a principal seria a da prestação jurisdicional final. As partes igualmente teriam direitos e obrigações frente ao Estado-Juiz, mas não só esta categoria, como também as faculdades processuais. A partir da constatação da relação processual como uma realidade separada da relação de direito material encartada no processo, é possível construir uma teoria acerca dos pressupostos da relação processual, subjetivos e objetivos, hoje perfeitamente assentada na doutrina e no direito positivo.

Na construção de uma relação jurídica encontra-se fundamento para a submissão das partes ao processo como uma relação dialética, composta por um feixe de atos concatenados ao atingimento de um fim. A teoria de Bülow ganhou foros de quase unanimidade no direito ocidental moderno, coisa que não ocorreu com a forma pela qual se revela esta relação. Com efeito, três teorias disputam a proeminência na definição da estrutura da relação processual. Assim, Köhler via na relação processual um vínculo que unia apenas autor e réu, dando origem à Teoria Linear. Hellwig, por seu turno, via na relação processual uma relação angular em que se estabeleciam relações entre as partes e o juiz. É a Teoria Angular. Bülow e Wach viam na relação processual uma relação entre as partes entre si e entre elas e o juiz, dando vida à Teoria Triangular. Hoje, com a publicização do processo, a teoria triangular é a que melhor representa o conjunto de relações existentes no processo. Destarte, os comportamentos postos sob a denominação de litigância de má-fé ferem um dever de lealdade entre as partes, corrompendo e indignificando não só o processo enquanto exercício de uma potestade estatal mas também como relação entre as partes. São atitudes que não encontram guarida em uma ordem político-jurídica marcada, acentuadamente, por um solidarismo jurídico que requer uma postura individual ética, fazendo do processo um instrumento dela. Como veremos adiante, isto é reflexo de uma visão mais ampla do fenômeno processual ( Jurisdição, ação e processo), que caracteriza o pensamento instrumentalista à luz do qual deve ser feita a análise de qualquer instituto da técnica processual, seja qual for o ramo do direito material invocado.

Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Jurisdição, ação e processo à luz da processualística moderna:: para onde caminha o processo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -92, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3902. Acesso em: 19 dez. 2024.

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