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Jurisdição, ação e processo à luz da processualística moderna:

para onde caminha o processo?

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Agenda 01/04/2003 às 00:00

9- A Terceira fase

A Instrumentalidade do processo representa a terceira fase de evolução. Primeiro tivemos o sincretismo imanetista, fase de fusão do direito material e de inexistência de uma separação rigorosa dos planos processual e material. A segunda fase é a fase da independência, em que a ciência processual busca afirmar sua autonomia frente ao direito material e às demais ciências através de uma visão introspectiva, distanciando-se da realidade. A instrumentalidade é a terceira fase, em que se busca uma visão epistemológica do Direito Processual, contrapondo-o à realidade e buscando a ótica dos "consumidores", para a consecução de uma efetividade da tutela jurisdicional e produção de uma "ordem jurídica justa". Faremos agora uma sucinta análise desta nova visão do processo, primeiramente analisando o quadro geral de evolução do processo e, após, as causas da nova visão do direito processual em uma abordagem mais ampla do fenômeno, ou seja, não restritas às fronteiras da técnica processual.


10- Quadro Geral de Evolução: um apanhado

O quadro de evolução do direito processual não é um discorrer de um fenômeno estanque e desligado do quadro geral de evolução do Direito. Muito pelo contrário, nele se insere e segue os mesmos influxos. É importante que tenhamos consciência de que o direito não pode ser tratado de forma desligada da realidade como se quis fazer em certa época de sua evolução.

Da mesma forma, é importante percebermos que a humanidade evolui em ciclos, ou seja, um determinado período tomado representa a antítese de anterior e é sucedido por um contrario. Mas para que haja evolução é preciso que os ciclos não se repitam exatamente, e é o que acontece porque o que se repete é uma tendência, uma ótica determinada, que aparece transmudada, com um conteúdo diferente. Cada ciclo apresenta, portanto, a repetição de uma tendência e a negação de outra, sem, no entanto, representar a antítese total ou a repetição total. Há contudo grandes linhas mestras que orientam qualquer processo de evolução e que se materializam em tendências constantes e subjacentes que se repetem em cada ciclo com maior ou menor intensidade. Pontes de Miranda falava de um "princípio de redução do quantum despótico", caracterizado por uma tendência á ampliação de direitos sempre presente. Tem toda a razão, pois a tendência universal que podemos vislumbrar ao longo da história é de afirmação do indivíduo frente ao Estado e de ampliação de direitos e redução do individualismo, fruto mesmo do desenvolvimento de uma consciência de vida em sociedade e da melhoria das condições de vida em todos os sentidos. É compreensível que a melhoria de condições de vida obtida pelo desenvolvimento tecnológico tenha reduzido a gravidade dos conflitos, não sua intensidade. A disputa, hoje, pelos bens da vida não é tão ferrenha a ponto de termos como regra o conflito de eliminação que caracterizou o passado, mas nem por isso deixaram de existir conflitos e desigualdades gerando tensões na sociedade, só que agora mais brandas, ou seja, menos violentas, porque o Estado tratou de criar mecanismos de apaziguamento social.

À medida em que se desenvolve, o ser humano toma consciência cada vez mais de que a vida em sociedade é um princípio fundamental de existência e que ela induz necessariamente a observância de regras. É bastante oportuna aqui a invocação de uma das máximas de escola ortodoxa de processo segundo a qual a exercício da jurisdição visa apaziguar os conflitos que surgem pela limitação dos bens da vida em contrapartida de uma infinita demanda de necessidades. Embora se possa no atual momento afirmar que esta é uma visão parcial e incompleta do fenômeno do exercício do poder "sub especie jurisdicionis", o fato é que ela não deixa de ter sentido. Na medida em que cresce a consciência da necessidade de respeito à esfera de direitos de outrem, reduz-se sensivelmente a violência dos conflitos, porque permanecem, mas, ao mesmo passo, as pessoas sabem que não podem fazer justiça com as próprias mãos. E isto é um fator considerável para a institucionalização de um poder de moderação que o Estado exerce através da jurisdição, e que aparece aqui como fator de suporte para que os ciclos de evolução apresentem um reconhecimento cada vez maior de direitos e redução do individualismo através de uma consciência social mais ou menos difundida.

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A justiça das priscas eras da humanidade é fundalmentalmente privada. Só a institucionalização, ou seja a aceitação mais ou menos generalizada, de uma forma de poder ( Poder estatal) é que irá paulatinamente retirando o exercício da distribuição da "justiça" das mão particulares. À medida em que o grupos humanos crescem, torna-se imperioso o estabelecimento de pautas de condutas previamente estabelecidas que irão permitir a vida em sociedade. Na matriz romana, que dá base ao nosso direito, o fenômeno da paulatina tomada do poder pelo Estado é visível nos três períodos evolutivos por que passou o processo romano. Nas legis actiones, há o processo com forte elemento formal, quase mítico. As ações da lei exigiam a observância de rigoroso formalismo pena de perda do direito, de tal modo que o exercício da ação era quase que cerimonial. No período formulário, o processo compreendia uma fórmula como visto linhas atrás, quando tratamos do processo como quase contrato. O que tínhamos então era a "litiscostestatio" que unia as partes ao "arbiter". Nota-se que o Estado não toma para si a resolução do mérito, significando dizer uma atuação ainda titubeante e distante. Somente no período da "cognito extraordinaria" ou "extraordinem" é que o processo irá tomar a feição mais próxima do que hoje conhecemos, exercendo o magistrado jurisdição sobre o mérito da demanda.

Mas é de suma importância verificar que foi nesta matriz romana que começou a se dar o distanciamento do processo da realidade. No final do Império romano ocorre a universalização da "obligatio" e via de conseqüência da "condemnatio", cunhando a função jurisdicional de um predicativo eminentemente declaratório e separando claramente a execução da declaração. A conseqüência futura deste fato será uma contribuição para isolamento do processo em relação ao contexto que o cercava. Na fusão dos elementos da cultura romana com a dos povos ditos bárbaros que vinham do norte, não se alterou substancialmente este entendimento, embora não se possa negar uma influência daquelas culturas e do seu Direito sobre o Direito Romano. Da fusão destes elementos tão heterogêneos surge o chamado direito comum medieval, de formação principalmente construída na Itália. O antecedente do direito comum medieval é a glosa, movimento de retomada dos textos romanos que eram então interpretados pelos glosadores, dentre os quais figuram nomes como Cocceio, Bartolo de Saxoferrato e Baldo de Ubaldis, dentre outros. Este Direito, dito comum, será a base das nossas Ordenações Reinícolas e portanto terá forte e direta influência sobre o Direto vigente entre nós até o início deste século. Nem mesmo o Renascimento foi capaz de alterar esta tendência

Mas o Renascimento associado à era das descobertas marítimas criará condições para a ascensão de uma nova classe, a burguesia que, ganhando força, irá reverter o quadro de poder na Revolução Francesa. Nesta época, por volta de fins do século XVII, surgem doutrinas como a de Kant e Montesquieu. Pela filosofia de Kant se concebe um mundo jurídico separado da realidade. Pela teoria de separação de poderes de Montesquieu o juiz deve ser o "boca da lei", restringindo-se a aplicar o direito assim como consta da letra da lei. A Revolução Francesa representará a ascensão ao poder da burguesia que carece de segurança jurídica para seus negócios, determinando uma postura voltada a uma técnica processual de ordinarização dos ritos. Por outro lado, surgindo o Estado Liberal, a concepção da atuação do Estado é voltada a uma atuação garantidora, tão somente. Os direitos, contemplados nas declarações, ficam em um plano meramente formal, logo, a jurisdição a ação e o processo tomam ainda mais uma vez, a feição privatista que sempre lhes caracterizou, ainda quando o Estado os tomou para si. Mas não tardaria o sistema polítco-jurídico para demonstrar sinais de fadiga. O desenvolvimento propiciado pela Revolução Industrial e a urbanização cada vez mais acelerada começaram a gerar pressões sociais. Assim é que surgem o movimento socialista nas vertentes de Marx e Engels, mas não por neles como também cm Saint Simom, Ouwen e Fourier.

Com o advento do Estado Democrático Social de Direito, a partir das constituições de Weimar e Mexicana, com Estado assumindo uma postura de promotor efetivo dos direitos e não de mero garantidor, começou a transparecer a insuficiência de uma ciência processual concebida sob uma visão introspectiva, distante das realidades sociais. A tentativa de criação de uma ciência dogmaticamente pura e ideologicamente neutra fracassou. Primeiro se verificou a necessidade de uma tutela cautelar, isto já no começo do século XX. Mais recentemente a independência e neutralidade do processo começou a ser questionada na medida em que se constatou a insuficiência das concepções ortodoxas em prestar uma tutela jurisdicional efetiva.

Surge, então, no campo do exercício do poder estatal sob a forma de jurisdição, a preocupação com a efetividade da tutela jurisdicional. Não basta mais ao Estado garantir uma tutela jurisdicional; é preciso que ela realmente atue em todos os campos, evitando a existência de "bolsões de litigiosidade contida", de claros de ausência de presença do Estado. Por outro lado, a ciência do processo deve saber reconhecer o valor de outras ciências de onde pode retirar valiosos aportes para sua melhoria. Se o poder estatal no Estado Democrático de Direito tem sua legitimidade relacionada ao grau de eficiência que é capaz de produzir, propiciando uma justiça eficaz, rápida e acorde aos valores da sociedade, à medida em que a ciência processual seja capaz de dar realidade a esses resultados estará legitimando o Estado e auxiliando-o a cumprir suas finalidades.

A corrente instrumentalista busca exatamente isto, ou seja uma visão ampla do fenômeno processual sob a ótica dos consumidores, os jurisdicionados. Há uma mudança no centro de gravidade do estudo do processo, passando a jurisdição ao centro ao invés da ação, como até então se preconizava. Isto ocorre porque ganha importância no contexto do exercício do poder jurisdicional o enfoque que vê aí, primordialmente, o exercício de uma função na qual o Estado obtém a realização de diversos escopos, quer sejam políticos, sociais ou jurídicos.

Esta inversão no eixo dos estudos é claro indício de publicização. Não é mais o exercício de um direito da parte, tanto no plano material como no processual, a pedra de toque do processo ( Ação, jurisdição e processo), mas sim o interesse do Estado que está subjacente e que agora, como nunca antes, aflora. Isto ocorre porque o modelo de Estado Social é interventor e atuante. É a antítese do Estado mínimo do liberalismo, e não basta ao exercício da jurisdição, mediante a ação e o processo, resguardar o interesse individual, como outrora. Significa dizer que a forma do processo que servia ao Estado de concepção Liberal, estado mínimo, individualista, inerte, não serve a um Estado interventor, atuante e solidarista, que vê no exercício da jurisdição mais um mecanismo de atingimento de seus escopos. Na esteira destas constatações é que surge um movimento de revisão em todo o direito, e não só no processo, visando adaptar a feição do manancial legislativo ao novo modelo de Estado. Reflexo disto temos no Código de Defesa do Consumidor, na Lei de Locações, na Lei dos Juizados Especiais, dentre outras, isto sem falar do texto constitucional, que agasalha indubitavelmente um Estado Social. Este é seguramente o caminho a seguir.


11- A Instrumentalidade do Processo

A visão instrumentalista, que representa o terceiro momento de evolução do processo, tem como conseqüências um alargamento dos horizontes do processo. É uma visão que produz um processo que é a faceta judicial do Estado Social, preocupado não só com o aspecto formal com que se debatia o Estado Liberal, indo além. Dentre as suas correntes ganhou notoriedade o movimento pelo acesso à justiça, capitaneado por Mauro Capeletti, dando um dos enfoques da efetividade da jurisdição. Também Niklas Lühman na Alemanha e Elio Fazzalari, na Itália, preocupados em dar um enfoque maior ao procedimento como fonte de legitimação do poder. No Brasil é a visão instrumentalista que move as reformas processuais em curso desde meados da década passada. Assim é que foram introduzidos em nosso processo civil a antecipação da tutela ( art. 273 do CPC), a tutela inibitória ( art. 461 do CPC e 84 do CDC), a execução específica das obrigações de fazer e de não fazer, a simplificação do processo de execução, excluindo-se a necessidade de cálculo por contador, a audiência prévia de conciliação e saneamento, as alterações na sistemática recursal ( Leis 9.139/95 e 9.756/98) dentre tanto as outras.

Ocupando a jurisdição o centro da teoria processual enquanto exercício de poder estatal, amplia-se o horizonte do processo (stricto sensu) para abranger manifestações não antes tidas como não-jurisdicionais, concebendo-se então uma larga margem de abrangência para uma Teoria Geral do Processo. A ação ganha um conteúdo diferenciado, mais publicizado, fato que podemos notar na Ação Civil Pública e na Ação Popular, verdadeiros mecanismos de participação democrática. A Jurisdição ganha, como visto, uma amplitude que não se restringe a um escopo somente. Não se trata mais de fazer atuar o direito objetivo, ou pacificar o conflito somente. Busca-se a educação para a vida em sociedade, a afirmação do Estado e do Direto, a pacificação com justiça. Enfim a cidadania. A matriz de nosso processo, que é o processo continental europeu é questionada, porque construída para dar efetividade a direitos privados e não serve para os novos direitos sociais, de cunho não patrimonial.

Mas é preciso que se note que estas conquistas ainda são recentes e não foram transportadas a todos os recantos da ciência processual. O processo penal sofre em especial deste mal. A secular confusão dos planos processual e material fez com que o processo fosse cindido, tendo os processos civil e penal sido erguidos sobre bases diferentes o que hoje se verifica não tem sentido. Da mesma forma, não tem mais cabimento o isolamento do direito processual em relação ao plano do direito material, como se propôs na segunda fase de sua evolução. Significa dizer que não devemos involuir para tornarmos ao sincretismo, mas tampouco podemos desconsiderar a instrumentalidade do processo ao direito material. No exato equilíbrio destas tendência contrapostas é que reside o ideal.

A conseqüência mais visível do instrumentalismo reside na busca incansável de adequação do processo, enquanto forma, ao direito material que ele visa servir, cumprindo, pela inserção de valores constitucionais no conteúdo de suas normas, o papel de instrumento do Estado para que seja alcançada a máxima eficiência da prestação jurisdicional. Logo, os institutos processuais devem ser interpretados à luz deste objetivos, ou seja, com uma visão exterior que concebe o meio com vistas ao fim. O conteúdo da ciência processual se publiciza, priorizando-se o prisma que vislumbra no exercício da jurisdição um interesse preponderante do Estado.

A jurisdição não apresenta, sob este ponto de vista, o caráter secundário, porque nela não se está buscando prioritariamente a guarida dos interesses das partes, mas sim o interesse maior da sociedade.

A ação aparece como uma opção de política legislativa que concede o direito de obter a tutela jurisdicional a julgo do interessado somente porque se constata que o exercício ex offício da jurisdição representaria um motivo de inquietude e instabilidade.

O processo, como conjunto de atos concatenados para o fim de obtenção da tutela, ganha importância na medida em que é mecanismo de legitimação do exercício do poder. Somente na medida em que as partes tenham a certeza de que irão participar ativamente da preparação do provimento ou atividade do Estado que se prepara por via do processo, é que ele logrará legitimar, aos olhos da sociedade, destinatária do ato, a atividade desenvolvida. Mas isto não significa perder de vista o caráter de instrumento do processo de tal modo que o magistrado está autorizado a flexibilizar a forma, na medida da legalidade, com o fito de moldar o instrumento ao fim que ele visa.

Tudo isto sempre com vistas ao consumidor da prestação jurisdicional, porque é na sua aceitação que se encontra a legitimidade do exercício do poder e quanto mais eficiente o mecanismo de prestação jurisdicional, maior a aceitação, satisfação e confiança dos destinatários. Logo, é preciso verificar se efetivamente se está produzindo uma prestação conforme as expectativas dos seus destinatários, não bastando mais as garantias meramente formais. Isto legitima uma revisão de todos os institutos processuais para adequá-los a nova realidade, pautando-se o estudioso por um método epistemológico que não se restrinja à tradicional visão introspectiva de puro tecnicismo processual.

Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Jurisdição, ação e processo à luz da processualística moderna:: para onde caminha o processo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -92, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3902. Acesso em: 15 nov. 2024.

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