Desde a Constituição de 1.946, existe no Brasil a expressa exigência do concurso público, nos seguintes termos: "A primeira investidura em cargo de carreira e em outros que a lei determinar efetuar-se-á mediante concurso, precedendo inspeção de saúde" (art. 186). Essa norma nunca foi respeitada, primeiro em decorrência dos vários artifícios jurídicos que permitiram inúmeras formas de nomeação ou de aproveitamento de funcionários em cargos superiores, e depois através da contratação, sem concurso, para cargos regidos pelas leis trabalhistas. O Supremo Tribunal Federal, em inúmeras oportunidades, decidiu sempre no sentido de que o concurso público somente poderia ser dispensado para o preenchimento de cargos de natureza especial.
O concurso público é, portanto, obrigatório na administração direta e indireta das três esferas de governo, a federal, a estadual e a municipal, e no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. De acordo com o inciso II do art. 37 da Constituição Federal de 1.988, "a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração".
Apenas uma exceção existe, nos termos do inciso IX do mesmo artigo, para a contratação dos temporários: "a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público".
As normas da Constituição do Estado do Pará não são diferentes quanto a essa exigência, contida no § 1º do art. 34: "A investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, respeitada, rigorosamente, a ordem de classificação, sob pena de nulidade do ato, não se aplicando o aqui disposto às nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração".
A exceção referente aos temporários está no art. 36: "A lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público".
A Lei Orgânica do Município de Belém, no art. 21 e seus parágrafos, repete quase integralmente as normas federais e estaduais.
Mas, apesar da existência de todas essas normas, o que deveria ser apenas exceção hoje é regra, porque os administradores federais, estaduais e municipais costumam inchar os quadros do funcionalismo através de contratações temporárias, sem o concurso público, e de acordo com as suas conveniências, ou com as suas preferências partidárias, e os contratados se vão eternizando através de sucessivas prorrogações.
Apenas para exemplificar, temos no Estado do Pará mais de vinte e três mil servidores temporários, contratados de acordo com a Lei Complementar nº 7/91, de 25.09.91, que estabelecia, em seu art. 2º , que o prazo máximo da contratação seria de seis meses, prorrogável no máximo, por igual período, uma única vez. No entanto, em 04.02.93, a Lei Complementar nº 11/93 autorizou a prorrogação dos contratos temporários até 31.12.93, embora prevendo que deveria "o Estado promover concurso público para provimento das funções, na medida da necessidade". No ano seguinte, em 01.02.94, a Lei Complementar nº 19/94, embora estabelecendo que deveriam ser realizados os concursos públicos até 31.07.95, permitiu a prorrogação dos contratos temporários até 31.12.95, "em função da insuficiência de pessoal para a execução dos serviços e do desempenho anterior do servidor". A Lei Complementar nº 30, de 28.12.95, autorizou a prorrogação dos contratos dos servidores temporários até 31.12.98. Recomendou, porém, que "devem as autoridades responsáveis tomar as providências para a realização de concurso público, para admissão de pessoal, em caráter permanente, nos setores em que houver vagas e necessidade de serviço". Finalmente, a Lei Complementar nº 36, de 04.12.98, autorizou a prorrogação desses contratos até 31.12.02, embora repetindo a recomendação acima transcrita. Ou seja: em dezembro de 2.002, teremos servidores temporários contratados há mais de onze anos, burlando evidentemente, com essas prorrogações sistemáticas, a norma constitucional do inciso IX do art. 37, que permite excepcionalmente a contratação por tempo determinado, "para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público".
Aliás, não haveria qualquer razão jurídica para que essas cinco leis tivessem o formato de leis complementares, porque o assunto tratado, nomeação de temporários, não se enquadra no art. 113 da Constituição do Estado do Pará, verbis:
"Art. 113- As leis complementares e suas alterações serão aprovadas por maioria absoluta.
§1º Dentre outras previstas nesta Constituição, (grifamos) consideram-se leis complementares:
I. Os Códigos de Finanças Públicas e Tributárias do Estado;
II. As leis orgânicas do Ministério Público, da Procuradoria-Geral do Estado, da Defensoria Pública, do Tribunal de Contas do Estado, do Tribunal de Contas dos Municípios, do Ministério Público, da Polícia Civil e da Polícia Militar;
III. A lei de Organização Judiciária do Estado.
§ 2º- As leis complementares terão numeração distinta da numeração das leis ordinárias".
O art. 36 da Constituição Estadual não exige lei complementar para dispor sobre o assunto em questão:
"Art. 36- A lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público".
Conseqüentemente, deveria ser aplicada a regra do caput do art. 88, que estabelece:
"Art. 88- Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações da Assembléia Legislativa e de suas Comissões serão tomadas por maioria de votos, presente a maioria absoluta de seus membros".
Portanto, na ausência de disposição constitucional em contrário, tendo em vista que a Constituição não exige a lei complementar para dispor sobre contratação de temporários, fica evidente que a matéria deveria ter sido tratada através de lei ordinária, ou seja, deveria seguir a regra do art. 88, das deliberações tomadas por maioria de votos, presente a maioria dos deputados, e não a regra do caput do art. 113, da maioria absoluta, que significa um número de votos superior à metade do número total de deputados. As cinco Leis Complementares estaduais são formalmente inconstitucionais, por essa razão, porque esse não era o instrumento jurídico adequado. A matéria deveria ter sido tratada através da lei ordinária, sendo assim suficiente para a aprovação do projeto o voto da maioria (mais da metade) dos deputados presentes, desde que estivesse presente o número mínimo exigido, ou seja, desde que existisse o "quorum" para deliberação, que corresponde a mais da metade do número total de deputados. Certamente, acreditou nossa Assembléia Legislativa que o nome "Lei Complementar" poderia conferir a essas disposições inconstitucionais maior força, credibilidade ou respeito, tendo assim o condão de elidir o vício de origem que as contamina.
Mas além da inconstitucionalidade formal apontada, essas leis complementares são também materialmente inconstitucionais, porque contrariam o princípio constitucional que exige o concurso público, haja vista que a contratação dos temporários somente é permitida em casos excepcionais. Como seria possível justificar essa excepcionalidade, em relação ao Estado do Pará, em sua administração direta e indireta, que já se vem prorrogando há nove anos? Qual a excepcionalidade que se pode prorrogar por nove anos, permitindo que o Estado do Pará tenha 23 mil temporários, e não realize os necessários concursos públicos?
Observe-se, ainda, que a primeira dessas leis complementares, de setembro de 1.991, permitiu a contratação dos temporários, excepcionalmente, pelo prazo máximo de seis meses, prorrogável, no máximo, por igual período, uma única vez. No entanto, a segunda lei, de fevereiro de 1.993, autorizou a prorrogação dos contratos até 31.12.93, ou seja, por mais onze meses, e a terceira lei, de fevereiro de 1.994, já autorizou a prorrogação até 31.12.95, isto é, por mais 23 meses! Em dezembro de 1.995, a LC nº 30 autorizou a prorrogação até 31.12.98, por mais três anos, portanto, e finalmente, em dezembro de 1.998, a LC nº 36 permitiu a prorrogação dos contratos dos temporários até 31.12.02, por mais quatro anos! É quase uma progressão geométrica, e certamente em 2.002 teremos uma prorrogação até 2.008!
Mas a verdade é que a Constituição Federal, ao mesmo tempo em que estabeleceu a regra do concurso público e permitiu a exceção da contratação dos temporários, previu também sanções para o descumprimento das normas pertinentes à exigência do concurso público, nos §§ 2º e 4º do mesmo art. 37, como a nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, e tratou dos atos de improbidade administrativa, que poderão resultar na suspensão dos direitos políticos, na perda da função pública, na indisponibilidade dos bens e no ressarcimento ao erário, sem prejuízo da ação penal cabível. No entanto, essas normas, que prevêem a punição da autoridade responsável pela contratação irregular, são normas de eficácia contida, isto é, dependem, para sua aplicação, da existência de norma infra-constitucional que defina, ou tipifique, a conduta ilícita, e estabeleça a sanção aplicável, o que somente ocorreu com a edição da Lei nº 8.429, de 02.06.92.
Mas apesar da existência de todas essas normas, o princípio constitucional de exigência do concurso público continua sendo desrespeitado. O próprio Presidente FHC, através da Medida Provisória nº 2.006, de 14.12.99, autorizou a contratação de temporários pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Transcrevemos a seguir o Informativo do STF referente à concessão de liminar em Ação Direta contra essa MP:
" Deferido pedido de liminar em ação direta ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores, para suspender, até decisão final, a eficácia do art. 2º da MP 2.014/2000, que autoriza o Instituto Nacional de Propriedade Industrial a efetuar contratação temporária de servidores, por doze meses, nos termos do art. 37, IX da CF (CF, art. 37 ... IX: "a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;"). O Tribunal, à primeira vista, entendeu haver relevância na tese sustentada pelo autor, em que se alegava inconstitucionalidade por ofensa à obrigatoriedade de concurso público para a investidura em cargo ou emprego público (CF, art. 37, II), por se tratar de contratação por tempo determinado para atender necessidade permanente - atividades relativas à implementação, ao acompanhamento e à avaliação de atividades, projetos e programas na área de competência do INPI -, não se enquadrando na hipótese prevista no inciso IX do art. 37 da CF. (ADInMC 2.125-DF, rel. Min. Maurício Corrêa, 6.4.2000)."
Também no Banco Central do Brasil, através da Medida Provisória nº 1.535, de 18.12.96, foi permitida a contratação excepcional, por prazo determinado. Essa Medida Provisória foi reeditada quinze vezes, e depois foi reeditada com os números 1.641-16 e 1.641-17. Finalmente, foi editada com a numeração 1.650-18, em 05.05.98, e foi transformada pela Lei 9.650, de 27.05.98, que dispõe sobre o Plano de Carreira dos servidores do Banco Central do Brasil, cujo art. 27 dispõe:
"Art. 27- Ficam criados, até 31 de dezembro de 1999, trinta Cargos Comissionados Temporários, de livre nomeação, a fim de atender a situações que ponham em risco a execução de atribuições do Banco Central do Brasil, em decorrência da mudança do regime jurídico de seus servidores.
§ 1º - O valor da retribuição pecuniária dos cargos de que trata o caput corresponderá ao atribuído ao servidor efetivo ocupante do cargo de Classe "A" Padrão II, de que trata o Anexo II desta Lei".
Nela, a expressão ex-funcionários foi suprimida e o limite inicial de dez passou para trinta técnicos especializados. O prazo para a existência desses cargos já foi prorrogado, segundo noticiário da Agência Estado, até 30.06.03! (não consegui localizar a lei, ou a medida provisória que teria autorizado essa prorrogação)
De modo geral, em relação aos atos de nomeação dos temporários, sejam eles federais, estaduais ou municipais, caberia a propositura de ação civil pública, para a anulação dos atos lesivos ao patrimônio público ou à moralidade administrativa. Caberia, mesmo, no Estado do Pará, uma ação direta de inconstitucionalidade contra as Leis Complementares, em especial contra a última delas, a Lei Complementar nº 36/98, que permitiu a prorrogação dos contratos por quatro anos!
Essa ADIN poderia ser ajuizada perante o Tribunal de Justiça do Estado do Pará (Constituição do Estado do Pará, art.161, I, l- inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal em face desta Constituição), ou mesmo perante o Supremo Tribunal Federal, de acordo com o art. 102, I, a, da Constituição Federal (inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual em face da Constituição Federal).
Restaria ainda saber se os legisladores, como no caso da Assembléia Legislativa do Estado do Pará, que elaboraram as cinco Leis Complementares, ou o próprio Presidente da República, que elaborou as Medidas Provisórias permitindo a contratação irregular de temporários, no Bacen e no INPI, não poderiam ser alcançados pelas sanções dos §§ 2º e 4º do art. 37 da Constituição Federal e do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429, de 02.06.92). Afinal de contas, alguém precisaria ser responsabilizado, porque os administradores, que efetuaram as nomeações respaldados nas leis inconstitucionais, que pretensamente estavam, ou estão, em vigor, terão com certeza um bom argumento para a defesa de seus atos, o de que se limitaram a cumprir a lei.
O respeito aos princípios constitucionais republicanos, em especial aos da igualdade, da moralidade e da impessoalidade, torna imprescindível o concurso público, para que as vagas sejam preenchidas pelos mais capazes, mas é preciso que os próprios governantes comecem a dar o exemplo, e decidam respeitar as normas constitucionais.
É preciso lembrar, ainda, que a Constituição Federal determinou, no parágrafo 2º do mesmo art. 37, como sanção pela inobservância dessas normas, a nulidade do ato de contratação e a punição da autoridade responsável. Aliás, a respeito do tema, nosso Tribunal Regional do Trabalho entende que a inobservância da norma constitucional que exige a prévia aprovação em concurso resulta na nulidade do contrato, e conseqüentemente, na impossibilidade da condenação a título de verbas salariais, o que significa punir, também, os próprios beneficiários do ato irregular, os servidores temporários. Afinal, trata-se de normas de ordem pública, que prevalecem sobre as simples considerações pertinentes aos direitos dos contratados, conforme expressou, em seu voto, o Ministro Rider Brito, meu colega da turma de 66 da antiga Faculdade de Direito: "A natureza e importância do princípio constitucional posto em evidência tem, sem dúvida, significado especialíssimo. Não se está aqui examinando uma relação pura e simples entre patrão e empregado, mas sim uma relação entre Estado, lato sensu, e o cidadão. E aqui as normas de ordem pública assumem especial relevância. Se a Constituição, no caso específico da investidura em cargo ou emprego publico, penaliza com a nulidade o ato praticado sem observar o requisito por ela estabelecido - o concurso publico - não podemos nós, a pretexto de resguardar suposto direito, empreender novo tipo de conspiração contra a Lei Maior, suavizando os efeitos da penalidade nela contida. Se o ato é nulo, assim deve ser considerado."
Também o Supremo Tribunal Federal (RE 85557-SP) entende que, se o ato de contratação é nulo, não pode gerar direitos, e que a própria administração pública pode declarar a nulidade desse ato, sem que dessa declaração decorra qualquer direito para os servidores, irregularmente contratados.
A contratação de temporários que se eternizam viola, portanto, as referidas vedações, e atenta especialmente contra os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade , porque permite a nomeação de servidores sem a necessária aferição de sua capacidade para o desempenho das funções, negando ainda aos mais capazes qualquer possibilidade de acesso aos cargos públicos, vitaliciamente ocupados pelos temporários. Dessa forma, as nomeações podem continuar sendo efetuadas através de atos administrativos que, ao em vez de visarem apenas o interesse público, se destinam a atender às conveniências pessoais dos administradores, ou às suas preferências partidárias ou clubísticas, e o serviço público se transforma assim em um feudo privilegiado, confundindo-se com a propriedade particular do governante, em franco e impune desrespeito aos princípios constitucionais. Um satrapismo irresponsável e onipotente, na expressão de Ruy Barbosa.