V. A NORMA GERAL ANTIELISÃO EM CONFRONTO COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS BRASILEIROS
Na esmagadora doutrina consultada, é possível constatar que os doutrinadores nacionais, pelas mais variadas razões, entendem como inconcebível a existência ou formulação de uma norma geral antielisiva dentro do direito brasileiro. Defendem o entendimento de que o sistema legal brasileiro não comporta a norma geral antielisiva face às suas rígidas regras e princípios constitucionais, principalmente em relação à legalidade e tipicidade.
De outro modo, há aqueles que acreditam que os próprios princípios constitucionais, como a igualdade e a capacidade contributiva, são o suporte para existência da norma geral antielisiva, tendo em primeiro lugar a finalidade de melhor e mais justa distribuição do ônus fiscal entre os contribuintes.
Tendo já definido os principais princípios constitucionais relacionados à norma antielisiva no capítulo anterior, cumpre agora confrontá-los, à luz da doutrina, para constatação da possibilidade de instituição da cláusula antielisiva.
5.1. Legalidade e tipicidade versus capacidade contributiva e isonomia
Como é sabido, a Constituição Federal não contém nenhum dispositivo de restrição aos princípios da legalidade e da tipicidade, nem admite restrições à liberdade contratual com fundamentos de natureza fiscal, não insculpidos no art. 170, pela lei infraconstitucional.
Não havendo limites intrínsecos ou extrínsecos da legalidade e tipicidade, a possibilidade de limitação estaria no conflito dos próprios princípios constitucionais de contraponto, no caso, os princípios da capacidade contributiva e isonomia. Ocorre que a doutrina majoritária identifica a capacidade contributiva e a isonomia como comandos destinados ao legislador infraconstitucional, como garantias para proteção do cidadão, e não como limites à liberdade. Desta forma, os princípios mencionados não se encontram no mesmo plano de atuação, cuja conseqüência é a não existência de conflito entre eles. A legalidade e tipicidade estariam em nível superior a isonomia e capacidade contributiva, suplantando-os.
Esclarece Alberto Xavier:
Para essa doutrina os limites à liberdade decorrem de leis, inspiradas decerto nos princípios da igualdade e da capacidade contributiva,mas não diretamente destes princípios, como fonte imediata desses limites, independentemente de leis, por sobre as leis, ou para além das leis.
Acresce que, em matéria tributária (como em matéria penal), as leis devem obedecer a um princípio de tipicidade, estabelecendo um "numerus clausus" de tributos para além do qual vigora uma ampla esfera de liberdade, tipicidade essa que significa precisamente inexistência de limite e conseqüentemente impossibilidade de abuso. [41]
Face a forteza do princípio da legalidade e tipicidade no sistema constitucional frente ao princípio da capacidade contributiva assevera José Artur Lima Gonçalves:
A lei, portanto, faz a seleção de fato manifestador de capacidade contributiva e, a partir daí, sua tipificação. Sem a tipificação específica – singularizadora de um dado fato – não é feita a seleção e cria-se uma cláusula geral – o que deixaria ao aplicador o exercício da vontade para: i) identificação do "fato imponível" (sem hipótese à qual pudesse submeter-se), e ii) definição do objeto da relação jurídico-tributária.
Esta é a demonstração cabal da inviabilidade dos que sustentam a possibilidade de norma ou cláusula geral de tributo. Para assegurar-se o consentimento e a legalidade, é necessária a tipicidade, de modo tal que a valoração esgote-se no plano da produção normativa – de hierarquia legal – do tipo tributário; garantindo-se a irrelevância da vontade do aplicador da norma tributária. [42]
Utilizando-se de outros argumentos, Ricardo Mariz de Oliveira aduz que a elisão fiscal pressupõe anterioridade a ocorrência do fato gerador do tributo de forma que a capacidade contributiva e a isonomia não poderão afetar a elisão eis que não há ainda a situação fática tributária que permita a incidência destes dois princípios. Afirma que o tratamento isonômico perante os tributos somente é possível após a existência do fato tributável. Pontifica que "de mais a mais, não se pode perder de vista que capacidade contributiva e isonomia são direitos do contribuinte, ou seja, garantias dele contra o fisco, limitações do poder de tributar, e não direitos do fisco contra o contribuinte." [43]
Sampaio Dória também tece seus comentários sobre a matéria:
Ademais, do ponto de vista político, uma opção se impõe no sentido de predominar o princípio da legalidade, vetor de segurança e certeza jurídica, sobre os da capacidade contributiva e igualdade, guias ideais da atividade legislativa que deve, entretanto, na formulação do direito positivo tributário, enfrentar realidades de poder nem sempre solícitas a ceder às necessidades da justiça fiscal. [44]
As assertivas acima lançadas, acrescidas dos conceitos constantes no capítulo anterior não esgotam o assunto mas trazem idéia consistente acerca do pensamento positivista que domina a doutrina, afastado o conflito da capacidade contributiva e isonomia e os princípios da legalidade e tipicidade em matéria tributária.
Em sentido contrário, Ricardo Lodi Ribeiro defende o entendimento de que a aplicação da norma antielisiva é fruto da aplicação do valor da segurança jurídica em conjunto com o da justiça. A cláusula antielisiva seria necessária para coibir atos ou negócios que revelem o exercício abusivo do ato, evidenciado pelo descompasso entre a sua motivação econômica e os efeitos por ele produzidos, com o intuito único ou preponderante de obter uma economia de imposto, em violação à isonomia e à capacidade contributiva. [45] Note-se que as argumentações são calcadas na interpretação econômica do fato tributário, no abuso de direito e de forma, que são conceitos vigentes na doutrina estrangeira, em parte não aplicáveis à doutrina nacional, como veremos a seguir.
5.2. O uso da interpretação econômica
A construção teórica conhecida por interpretação econômica é obra do direito alemão do século passado, tendo como seu idealizador Enno Becker. Tal teoria consiste na busca do significado econômico das leis tributárias com base no princípio da igualdade e capacidade contributiva, atentando para o conteúdo econômico do fato tributável, numa visão finalística, em detrimento dos aspectos formais que o cercam.
Becker formulou sua tese tendo em vista a necessidade de norma geral que atenuasse o positivismo vigente à época e que favorecia a evasão fiscal. Ives Gandra Martins explica o funcionamento da teoria:
Por decorrência do elevado grau de abstração vertente desses preceitos, o aplicador da lei tinha autonomia para definir, valendo-se da hermenêutica e calcado nos resultados econômicos alcançados pelos agentes, se o tributo era ou não passível de exigência. Tornou-se praticamente irrelevante, por conseguinte, as formas das quais se revestiam os negócios jurídicos, ou mesmo as causas que os motivaram: situações que apresentassem resultados econômicos semelhantes poderiam ser tributadas nas mesmas bases. [46]
Da mesma forma, Gandra Martins explicita as conseqüências da aplicação da teoria:
A rigor, verificou-se uma inversão de valores: a estrutura jurídica que havia sido concebida para combater a elisão fiscal, isto é, os excessos cometidos pelos contribuintes nos planejamentos tributários, passou a ser um instrumento eficaz de arrecadação, que, como relata a doutrina estrangeira, foi utilizado de forma arbitrária pelo Erário, visto que este se viu favorecido pela aplicação de critérios subjetivos, o que era abalizado pelas normas citadas. [47]
Para a maioria da doutrina, a interpretação econômica não tem acolhida no direito brasileiro diante do princípio da legalidade estrita e tipicidade cerrada, portanto, qualquer tentativa de sua utilização em norma antielisiva fatalmente será inconstitucional. Seu maior defensor em terras nacionais é Amílcar de Araújo Falcão, que recebeu pesadas críticas de Brandão Machado [48] e Alfredo Augusto Becker.
5.3. O uso da analogia
Urge analisar a constitucionalidade do uso da analogia de normas tributárias decorrente da aplicação de normas antielisivas.
Segundo Alberto Xavier a analogia é o uso de idêntica disciplina a uma situação não contemplada no ordenamento jurídico, que apresenta em relação a outra situação disciplinada um grau de similaridade que justifica a igualdade de tratamento. [49]
Se considerados os princípios constitucionais da legalidade e tipicidade tal como descritos no capítulo anterior, que encerram os princípios da seleção, do numerus clausus, do exclusivismo e da determinação ou tipicidade fechada, o uso da analogia é legalmente inviável. Na lição de Alberto Xavier:
Ora, os próprios conceitos de taxatividade e de numerus clausus, inerentes à idéia de tipicidade, são incompatíveis com a existência de lacunas e sua integração analógica, pois foram adotados como regras constitucionais precisamente para vedar a possibilidade de analogia, vedação esta que resulta de constatação de que a analogia não é fenômeno meramente interpretativo, mas "criativo" (ainda que de modo vinculado, complementar ou derivado) e que a "criatividade" do aplicador do Direito é incompatível com as exigências estritas da separação dos poderes (reserva absoluta de lei) e da segurança jurídica (previsibilidade, proteção de confiança). [50]
Dentro deste contexto é possível concluir que os espaços "vazios" deixados pela legislação são zonas de liberdade juridicamente protegidas, que não podem ser violados pela analogia. Consistem em verdadeiros limites para a atuação do Estado, para além do qual o direito não permite o alongamento das fronteiras.
Da mesma forma, diante do princípio do exclusivismo, que exige descrição completa dos elementos relevantes ao fato tributário, qualquer situação fática que não se subsuma perfeitamente ao modelo típico torna-se absolutamente diversa, não autorizando qualquer espécie de analogia. Neste sentido pontifica Jose Artur Lima Gonçalves quando aduz que "não pode o Executivo, portanto, "completar" regra matriz de incidência tributária, nem tampouco presumir a prática de certos atos, e muito menos recorrer à analogia para reputar ocorrido fato imponível e nascida a obrigação tributária correspondente." [51]
Não obstante isto, o próprio Código Tributário Nacional veda expressamente o uso da analogia para situações não descritas em lei, no seu art. 108, § 1º.
5.4. O poder/dever de tributar e a liberdade individual
Muito se questiona sobre o alcance do poder/dever do Estado de tributar, editando normas com esta finalidade, e a liberdade do cidadão de adotar medidas que visem a diminuição ou supressão do pagamento de tributos. A questão é em que limites é lícita a atividade elisiva e até que ponto o Estado pode limitar ou impedir tal atividade.
Sobre a voracidade do fisco frente aos direitos constitucionais dos contribuintes José Artur Lima Gonçalves afirma:
Daí nossa convicção em afirmar que o mero interesse arrecadatório, como interesse secundário, não pode sobrepor-se ao consentimento ao tributo, à legalidade, à tipicidade, à isonomia e aos direitos e garantias individuais.
E nenhuma justificativa do plano extrajurídico – que varia de intensidade ao sabor das necessidades de caixa do Executivo – serve de fundamento válido para a subversão dos princípios mais básicos do sistema constitucional brasileiro, organizados a partir da noção republicana, que exige o consentimento e a legalidade. Não se pode invocar interesse fazendário para justificar iniciativa que não se contenha estritamente dentro das bitolas rigidamente fixadas pelo texto constitucional brasileiro. [52]
No mesmo sentido Ulhoa Coelho manifesta sua opinião:
O contribuinte que escolhe o modo de atingir resultados econômicos ou financeiros segundo o critério de suportar o menor ônus fiscal que a lei permita não evidência, só por isso, falta de civismo ou de espírito público. Se é certo que o cidadão deve fielmente contribuir para os gastos coletivos segundo normas legais em vigor, não é menos certo que dele o Fisco não pode esperar pagamento de montante superior ao que a lei lhe impõe, eis que, pelo excesso o que haveria seria mera doação. [53]
Ricardo Mariz de Oliveira, com propriedade, aduz:
É por isso, não se canse de repetir, que a conduta humana num ou noutro sentido influencia a existência ou não-existência deste ou daquele fato gerador, assim como a grandeza material dos que existirem. Pela mesma razão, a conduta humana evita tributos, ou diminui tributos.
O fundamento de validade dessas condutas elisivas reside no regular uso da liberdade individual de fazer o que a lei não proíbe ou não fazer o que a lei não obriga, em associação com o direito de propriedade assegurado pela Magna Lei. [54]
Acerca das liberdades constitucionais dos cidadãos assevera Santi Romano:
As liberdades políticas contrapõem-se às liberdades civis que concernem não mais ao exercício de funções públicas, mais à manifestação de atividades meramente lícitas e, portanto, particulares. Já se observou que o direito privado encontra seu principal fundamento no direito público, que o permite e tutela, ou melhor no direito constitucional, enquanto este limita precisamente os poderes públicos que de outro modo poderiam invadir e anular tais liberdades. Mesmo estas, por conseqüência, devem ser consideradas como verdadeiras e próprias liberdades constitucionais, não quando se afirmam e se fazem valer perante sujeitos colocados em posição de supremacia, principalmente o Estado. [55]
Os fundamentos antes expostos fornecem elementos suficientes para identificar as limitações do Estado diante da liberdade dos contribuintes em relação a condutas antielisivas. De um lado sempre estará o Fisco, com seu apetite voraz e seus fiscais e auditores, e de outro, o contribuinte, com seus advogados e contadores tentando minimizar a carga tributária, num eterno jogo de forças onde as regras serão sempre ditadas pela Constituição Federal.
VI. O TEXTO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 116 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL
A Lei Complementar nº 104 de 10/01/2001 introduziu no sistema tributários nacional o parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, com a seguinte redação:
A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
Com esta inovação, o legislador implementa ou tenta implementar no direito nacional uma norma geral antielisiva com vistas a diminuição da perda de arrecadação de tributos decorrentes da prática planejamento fiscal (tax planing) pelos contribuintes. Nos termos da exposição de motivos contida na Mensagem 1.459/99 do Presidente da República, a introdução do § único do art. 116 se constituiria em "instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma e de direito." Entretanto, sua formulação recebeu pesadas críticas por parte da doutrina, como veremos adiante.
Apesar da manifesta intenção na exposição de motivos de se adotar o abuso de forma e de direito na desconsideração dos atos atentatórios à tributação, o texto legal incorporou apenas a dissimulação como critério para desconsideração, reduzindo, assim, o seu alcance.
6.1. Aspectos formais, materiais e processuais da norma
James Marins classifica o conteúdo do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional em três espécies de regras jurídicas: regra formal ou de estrutura (que faculta competência à Administração para desconsiderar atos ou negócios jurídicos), regra material (o contribuinte que praticar atos com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária poderá ter estes atos desconsiderados) e regra de aplicabilidade normativa (somente com a observância da lei ordinária regulamentar a ser editada poderá ser promovida a desconsideração dos atos considerados dissimulatórios) [56].
A classificação é importante na medida que identifica três elementos no texto: a competência formal da autoridade administrativa para desconsiderar os atos do contribuinte, tipifica a conduta do contribuinte considerada elisiva valendo-se da dissimulação e fixa requisitos de aplicabilidade normativa fazendo remissão à lei ordinária.
Como antes mencionado, dentro do aspecto tipológico fragmentário e progressivo para criação de leis, cabe a lei complementar a definição do fato gerador, base de cálculo e contribuintes, sempre por conceitos determinados, e à lei ordinária a instituição do tributo e definição dos tipos tributários, sempre dentro dos limites e parâmetros contidos na lei complementar. A lei complementar, ainda segundo James Marins, "não pode ser nem tão minuciosa que chegue a interferir na competência legislativa da União, Estados, Municípios e Distrito Federal,nem tão vaga que não se preste para homogeneizar minimamente o tratamento a ser dado nacionalmente ao tema." [57]
No artigo em comento, a remissão à lei ordinária para estatuir procedimentos limita-a simplesmente a requisitos formais, autorizando apenas a disciplinar procedimentos, sem a possibilidade de criação de novas hipóteses legais de condutas além daquela já fixada no parágrafo único. Vale dizer que o campo material é exaurido no próprio texto complementar.
Sendo texto legal que depende de normatização para eficácia plena, dentro do sistema federativo instituído pela Constituição Federal cumpre o atendimento da questão normativa para efetivação dos ditames contidos no parágrafo único do artigo em comento. Cabe à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, cada qual dentro de suas competências tributárias constitucionais, a edição de leis ordinárias próprias para regulamentação do procedimento.
Questão surge quando se constata que os entes tributantes já possuem normas gerais disciplinadoras dos procedimentos administrativos tributários, a exemplo da Lei 9.784/99 do Decreto 70.235/72 no âmbito federal. Marco Aurélio Greco entende que a exigência de lei ordinária que estabeleça procedimentos não é atendida pela atual legislação procedimental [58]. Sustenta seu ponto de vista, o qual acompanho, no fato de que a hipótese prevista na Lei Complementar envolve avaliação subjetiva quanto às intenções, finalidades e motivos da conduta do contribuinte, o que refoge às normas procedimentares vigentes. Na verdade, a novel parágrafo único cria um novo sistema de presunções aliado à criação de uma ficção legal. Nas palavras de Greco:
Este primeiro passo não envolve apenas a interpretação de fatos, mas abrange, principalmente, uma ponderação de elementos subjetivos, finalidades, intenções, o que faz com que a qualificação daí resultante também incorpore a ponderação de valores. Disto decorre que a atividade exercida não é mera execução do direito posto, mas, fundamentalmente, de "construção" de uma realidade. [59](grifo nosso).
Desta feita, as situações criadas pela Lei Complementar 104 são completamente distintas daquelas contidas nas normas procedimentais vigentes, merecendo tratamento especial, para que o procedimento de desconsideração tenha adequado tratamento.
Este raciocínio leva à conclusão de que o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional somente terá aplicação após a edição da lei ordinária regulamentadora, como veremos a seguir.
6.2. Critério temporal de aplicação da norma
Três são as situações que se apresentam quanto aos objetos a serem alcançados na aplicação da Lei Complementar 104: os negócios jurídicos ocorridos antes da vigência da Lei Complementar 104, os negócios jurídicos ocorridos no interregno após a edição da Lei Complementar 104 e antes de sua regulamentação por lei complementar e os negócios jurídicos ocorridos após a regulamentação da norma.
Quanto à última questão não há duvidas. A lei se aplicará a todos os negócios jurídicos que subsumirem a norma. Quanto às duas primeiras, há controvérsias.
James Marins afirma que a Lei Complementar 104 poderá ser aplicada ao caso concreto somente após a vigência da lei ordinária regulamentadora, afirmando que se afigura irrelevante juridicamente a data de início da vigência da Lei Complementar nº 104, pois os fatos nela descritos somente passarão a ser juridicizados a partir de sua instituição/regulamentação infracomplementar, em decorrência do princípio da anterioridade. [60]
Questão interessante neste aspecto é proposta por Marco Aurélio Greco. Afirma que para análise da questão deve-se considerar a natureza da norma instituída pela Lei Complementar 104. Para ele, a norma descrita não é material mas sim processual, e, desta forma, a aplicação da Lei Complementar 104 é imediata. Defende seu entendimento da seguinte maneira:
Trata-se de saber se a norma em questão tem natureza material ou processual. Vale dizer, se a norma do parágrafo único do art. 116 define tipos ou hipóteses de condutas, requisitos para celebração dos atos ou negócios, exigências a serem atendidas pelos seus partícipes, etc., ou se, ao revés, prevê apenas o cabimento de um procedimento de desconsideração sempre que a autoridade administrativa estiver diante de um ato ou negócio celebrado com a finalidade apontada no dispositivo.
Entendo que o dispositivo não tem natureza material. Não está definindo o que seja simulação, fraude à lei ou o abuso de direito em matéria tributária. Nem está regulando a definição ou os elementos dos negócios indiretos etc. Limita-se a dizer que todo e qualquer ato ou negócio, seja qual for a categoria a que pertença, se estiver informado pela finalidade ali prevista, será o pressuposto de emanação de um ato de desconsideração, desde que atendidos os procedimentos pertinentes.
Objeto da norma não são os atos. Objeto da norma é a competência administrativa a ser exercida procedimentalmente. [61]
Em outras palavras, a tese de Greco prega que o parágrafo único do art 116 não está regulando atos ou negócios jurídicos, decrevendo-os como fato gerador de novos tributos, como requer o inciso I do art. 150 da Constituição Federal, mas tão somente a competência administrativa que pode vir a ser exercida em relação a eles. Sendo assim, por ter natureza processual, entende que a Lei Complementar 104 poderia desconsiderar os atos simulados antes mesmo de sua edição. Evidente que tal desconsideração somente poderia ser levada a efeito somente após a vigência da lei ordinária que regulamentará a atividade estatal para este fim.
Confesso que a hipótese é atraente, mas deve ser objeto de cautela. A norma em questão contém realmente um conteúdo processual que regula a competência administrativa, mas também contém dispositivo de natureza material quando se refere à dissimulação como característica dos atos ou negócios jurídicos a serem desconsiderados. Como o parágrafo único do art. 116 cria uma ficção jurídica, dando origem a fatos geradores tributáveis, que não ocorreram porque foram anteriormente dissimulados, estes fatos geradores somente surgirão no mundo jurídico, ainda que somente para efeito de tributação, depois do procedimento de desconsideração pela Administração como admitido na norma, que somente poderá ser operacionalizado após a vigência da lei ordinária regulamentar, eis que o parágrafo único em comento não é autoaplicável por fazer expressa remissão à lei regulamentar. De outro modo, como não há criação de novo tributo mais sim de subsunção da norma já existente sobre fatos imponíveis fictamente criados pela desconsideração, entendo que a desconsideração será aplicável a atos e negócios jurídicos ocorridos a partir da edição da Lei Complementar nº 104, que contém a previsão material da dissimulação, mas que somente poderão sofrer desconsideração após a vigência da lei ordinária regulatória, recaindo na prescrição qüinqüenal para o lançamento.
6.3. A necessária conceituação de dissimulação, abuso de forma e abuso de direito
As doutrinas brasileira e estrangeira demonstram que o conceito de elisão tributária está relacionado ao emprego de formas jurídicas anormais, atípicas, inadequadas a sua finalidade usual, artificiais, na realização do fato imponível. É tradicional a referência à manipulação ou à adaptação do fato imponível como instrumento para atingir vantagem tributária. [62] Diante deste fato, cabe a descrição das modalidades utilizadas na obtenção destas vantagens fiscais.
Deixo de proceder maiores investigações aos conceitos de negócio jurídico indireto e fraude à lei, apesar de largamente mencionados na doutrina, concentrando os estudos na dissimulação, abuso de forma e abuso de direito, eis que estes três elementos, ou fazem parte do texto legal (dissimulação), ou foram mencionados na exposição de motivos da Lei Complementar nº 104 (abuso de forma e abuso de direito), e seus conceitos e definições serão importantes na análise da lei em comento.
6.3.1. Dissimulação e simulação
A simulação e a dissimulação são defeitos do negócio jurídico que objetivam burlar a lei ou prejudicar terceiros, procurando alguma vantagem econômica. Apesar de possuírem a mesma finalidade e representarem uma realidade falsa, têm aplicações distintas e significados próprios.
Simular significa aparentar algo que não existe enquanto que dissimular significa esconder algo que existe. Na simulação encontramos apenas um componente irreal que se esgota em si mesmo, visando o ato a ser apresentado ao mundo, enquanto que na dissimulação existe um componente irreal para ocultar um componente real, visando um ato a ser escondido. Não há como confundir simulação com dissimulação, que também é chamada de simulação relativa pela doutrina.
Desta forma, precisa é a definição trazida pela Lei Complementar nº 104 quando alude a desconsiderar atos que visem "dissimular" a ocorrência de fato gerador ou natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
Neste sentido Ricardo Mariz de Oliveira pontifica:
Com efeito, este dispositivo manda desconsiderar os atos ou negócios que aparentem perante o mundo exterior uma realidade falsa, porque a realidade verdadeira, que se constitui no fato gerador e/ou nos elementos constitutivos da obrigação tributária, está ofuscada pelos atos ou negócios dissimulatórios.
Sendo assim, como os atos ou negócios dissimulatórios encobrem o fato real, incumbe à autoridade administrativa desconsiderá-los para desvendar a verdade, isto é, para trazer a verdade material às luzes claras. [63]
Dissimulação ou simulação relativa é a expressão mais correta a ser usada para conferir a lei o intuito desejado. Em matéria tributária, mesmo que tratemos de simulação absoluta, ou simulação propriamente dita, estaremos diante de simulação relativa.
Mesmo que o contribuinte simule um ato absolutamente inexistente (simulação absoluta), v.g. ágio de subscrição de capital, ainda assim, para efeitos tributários, estaremos diante de uma dissimulação. No exemplo mencionado há a simulação de um ato inexistente que não encobre qualquer outro ato, portanto simulação absoluta, mas que afeta os elementos constitutivos da obrigação tributária cujo objeto é o imposto de renda. Neste caso, pode-se notar que há um ato dissimulatório da realidade porque, embora sendo um ato falso que não encubra outro ato real no âmbito privado, no âmbito tributário encobre a realidade representada pela materialidade do fato gerador realmente existente. Portanto, na órbita tributária a simulação da órbita privada é recebida como dissimulação por encobrir a base de cálculo de tributo, no caso, de imposto de renda. O que ocorre é a "relativização" dos atos ou negócios jurídicos particulares em relação ao Fisco.
6.3.2. Abuso de forma
A teoria do abuso de forma está calcada na utilização de forma jurídica "atípica" ou "não comum" para realização de negócio jurídico visando menor incidência fiscal.
Esta teoria, originalmente adotada pelo código alemão, nasce da interpretação econômica do direito tributário, onde é possível identificar quatro requisitos para a caracterização do abuso de formas jurídicas: i) adoção de uma forma jurídica não correspondente ao resultado econômico perseguido; ii) obtenção, através da elisão, de um resultado econômico substancialmente idêntico ao que se obteria com a forma jurídica prevista na lei tributária; iii) irrelevância das desvantagens jurídicas da forma elisiva em comparação com a forma jurídica prevista na lei tributária iv) intenção de elidir imposto. [64]
Em suma, o abuso de forma poderia ser traduzido como a utilização de forma jurídica não correspondente ao resultado econômico desejado.
Para Ives Gandra Martins o abuso de formas não encontra acolhida no direito brasileiro face à inexistência de normas legais que levem a sua aplicação. [65]
Gilberto Ulhoa Canto esclarece com propriedade a aplicação da teoria do abuso de forma:
O desacerto da teoria do abuso de formas de direito privado parece evidente. Se as formas são de direito privado e elas não são legitimadas pelas normas desse ramo do direito, então estaremos diante de um caso comum de ilegalidade ou nulidade, pura e simples. Mas, se face ao direito privado tais formas são legítimas, não vemos como se possa acusar alguém de estar cometendo abuso destas formas apenas para efeitos legais. Se o legislador tributário não quiser que as formas de direito privado que forem lícitas e legais em face das normas deste ramo do direito produzam os efeitos que os agentes poderiam ter em vista quando a eles recorrem, o que ele tem a fazer é, simplesmente, dizer que para fins especificamente tributários os atos que segundo o direito privado seriam lícitos e eficazes serão tratados como se fossem atos de natureza idêntica a um modelo predeterminado; ou poderia, ainda, o legislador tributário definir, para fins especificamente fiscais, determinados institutos originado do direito privado de modo substancialmente distinto daquele pelo qual estão definidos nesse departamento do Direito. [66]
Desta feita, o abuso de forma está intrinsecamente relacionado com os efeitos econômicos do ato praticado e como a intenção do agente. Se a forma utilizada está em desacerto com as normas de direito privado, estamos diante de uma ilegalidade e, portanto, haverá evasão fiscal; se a forma utilizada for legal, cabe ao direito tributário regular as situações em que as condutas serão consideradas não lícitas para efeitos fiscais.
Vale lembrar que o abuso de forma é citado na exposição de motivos da Lei Complementar nº 104 como procedimento a ser combatido pela referida lei, apesar de não constar expressamente no corpo do texto legal.
6.3.3. Abuso de direito
Assim com o abuso de forma, o abuso de direito é desdobramento da interpretação econômica do direito tributário. O abuso de direito considera ilícita a conduta do contribuinte que pratica negócios jurídicos visando exclusivamente a economia de imposto, tendo como fundamento o uso imoral do direito. O intérprete aplicaria uma regra moral própria, convertendo-a numa regra jurídica a incidir em cada caso. Para cada situação existirá uma regra moral específica. Seu campo de incidência é o plano da moral, o que rejeita o princípio da legalidade e o valor da segurança jurídica. [67]
A maioria da doutrina nacional rejeita a teoria do abuso de direito. Segundo Ives Gandra Martins o "o abuso de direito esbarra de forma incontornável – antes de qualquer outro aspecto jurídico – na ausência de previsão legal conferindo à fiscalização autoridade para ultrapassar o limite da estrita legalidade, buscando outros elementos e subsídios para afirmar ou não a validade jurídica, ainda que sob o prisma tributário, de cada operação individualizada." [68]
Alfredo Augusto Becker, citado por César A. Guimarães Pereira, questiona se é possível haver mau uso do direito sem que este se confunda com ilegalidade ou ilicitude. Sendo uma regra moral, o abuso de direito entrega ao intérprete o poder de converter uma regra moral em regra jurídica, sendo que o intérprete não detém poder de legislar. [69]
O novo Código Civil suplantou tal questão pelo seu art. 187 [70], quando prevê que o titular de um direito comete ato ilícito ao exercê-lo de modo manifestamente excedente aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Desta forma, o legislador caracterizou o abuso de direito como ato ilícito. A sua prática com a finalidade de economia de tributos configura evasão tributária, em função da ilicitude, não estando afeta a elisão tributária, que pressupõe a utilização de atos lícitos.
Assim com o abuso de forma, o abuso de direito é mencionado na exposição de motivos da Lei Complementar nº 104, como sendo objeto de combate pela referida lei, mas não integra o seu texto legal.
6.4. Desconsideração dos atos ou negócios jurídicos
O novo parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional prevê a possibilidade de desconsideração de atos ou negócios jurídicos que possuírem o vício da dissimulação.
Não será formulada análise processual ou procedimental da desconsideração tendo em vista que a regulação dos procedimentos de aplicação da norma "antielisiva", que ficaram a cargo da lei ordinária complementar, foram estabelecidos na malfadada Medida Provisória 66/02, que ao tornar-se a Lei 10.637 de 30/12/2002, teve os seus dispositivos relativos a antielisão suprimidos. Portanto, a questão procedimental carece ainda da edição de nova lei ordinária que estabelecerá a operacionalização da desconsideração, sendo desnecessário e precipitado qualquer comentário neste momento.
Poderiam alguns entender que a Lei Complementar 104 poderia ser aplicada independentemente da edição de lei ordinária, observando-se os procedimentos existentes na legislação administrativa tributária. Marco Aurélio Greco afasta esta possibilidade argumentando que se trata de situação que refoge aos casos normais ou corriqueiros de fiscalização diante da necessidade de juízo prévio da qualificação jurídica dos atos ou negócios sob análise. Aduz que num primeiro passo envolve a ponderação de elementos subjetivos, finalidades e intenções, o que faz com que a desconsideração se torne questão prejudicial e distinta da eventual ação fiscal propriamente dita, regulada pela atual legislação de procedimentos tributários. [71]
Questão vertente na doutrina é saber se é possível desconsiderar atos ou negócios jurídicos através de simples ato administrativo sem desconstituir seus efeitos, face ao princípio da divisão de poderes do Estado, onde o Poder Judiciário detém a função jurisidicional (princípio da reserva de jurisdição).
Alberto Xavier defende que diante do novo parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional é reconhecida às autoridades administrativas a faculdade de, unilateralmente, desconsiderar o ato ou negócio simulado mediante a declaração de sua ineficácia ou inoponibilidade ao fisco. [72] Sustenta seu entendimento em três fundamentos: o primeiro infirma que a nova lei não tem o condão de autorizar a autoridade administrativa a invalidar o ato jurídico no que se refere a relação entre particulares, mas tão somente proceder declaração de ineficácia relativa ao fisco; o segundo fundamento reside na lógica do princípio da verdade material, que deve ser buscada pelo Estado em decorrência do seu poder-dever de investigar a verdade dos fatos; e por último, afirma que o princípio da reserva de jurisdição não é incompatível com a auto-tutela, privilégio de execução prévia ou presunção de legalidade do ato administrativo. Arremata seu pensamento nos seguintes termos:
A atribuição de um poder de "auto-tutela declarativa" à Administração, quer este se digne por imperatividade ou obrigatoriedade do ato administrativo, não é incompatível com o princípio da reserva de jurisdição, constituindo o fundamento da atribuição de "monopólio da primeira palavra" à Administração pública, em matéria não intrinsecamente jurisdicional, como é a declaração de ineficácia relativa do ato simulado. [73]
Em oposição a Alberto Xavier vem José Artur Lima Gonçalves, que afirma que impedir a produção de efeitos jurídicos, ainda que frente ao Estado, corresponde a fazer de conta que o ato jurídico perfeito não existe, e não é possível desconsiderar ato jurídico perfeito que existe e cuja validade não foi submetida a apreciação judicial. Afirma que se isto ocorresse não haveria proteção a ato jurídico perfeito, cujos efeitos passariam a estar à disposição da Administração, o que parece não estar conforme com o que determina a Constituição. Mais adiante conclui:
Admitir a anulação de seus efeitos – por ato administrativo – implica equiparar a função administrativa à função jurisdicional, na medida em que os efeitos jurídicos decorrentes da "desconsideração" do negócio jurídico pelo ato administrativo já seriam, desde logo, equivalentes (no plano validade/produção de efeitos) à eventual decretação judicial de nulidade do negócio jurídico (plano da existência). [74]
Deste mesmo entendimento comunga Sacha Calmon Navarro Coelho. Se esta linha de raciocínio for trilhada, fatalmente encontrará a inconstitucionalidade da norma "antielisiva".
Ricardo Mariz de Oliveira sustenta que a lei permite que a autoridade administrativa desconsidere os atos ou negócios dissimulatórios, mas entende que não se trata de ato discricionário ou arbitrário do agente fiscal, eis que será praticado na conformidade das normas contidas na lei ordinária procedimental a ser editada.
Quanto aos efeitos da desconsideração, James Marins afirma que o pronunciamento de desconsideração desconstitui o ato ou negócio jurídico, embora para fins estritamente administrativos, tendo eficácia constitutiva negativa total ou parcial. Aduz que:
A desconsideração, enquanto ato jurídico administrativo desconstitutivo, não gera, por si só o nascimento da obrigação tributária. O despacho de desconsideração não é "fato gerador" da obrigação tributária, mas mero antecedente lógico de outro ato administrativo que é o lançamento, agora sim, embora excepcionalmente, de natureza constitutiva pois a chamada "requalificação" do fato é decorrente de uma ficção legal que reescreve a realidade de modo a fazer surtir de um fato não realizado os mesmos efeitos jurídicos que decorreriam de sua realização. Requalifica, reescreve mas não muda a realidade fática, nada acrescenta ao mundo real, mas meramente ao mundo jurídico e ainda assim exclusivamente no limitado campo tributário. [75]
As conclusões de James Marins, além de discorrer quanto aos efeitos da desconsideração, auxiliam no entendimento da posição de Alberto Xavier quanto a possibilidade da desconsideração pelo ato administrativo. A ocorrência de ficção legal que nada cria no mundo real, mas apenas surte efeitos no campo tributário, minimiza a idéia de Lima Gonçalves de que a ação administrativa invade a esfera jurisdicional pela declaração de nulidade integral do ato dissimulatório. Na verdade, a desconstituição relativiza o ato ou negócio jurídico para fins de tributação, mas não declara nula a relação havida entre particulares.