Resumo: o texto pretende chamar a atenção para a existência de uma dimensão político-econômica da coisa julgada, no seu papel de possibilitar o funcionamento do sistema de mercado, no contexto da ideologia liberal, e de servir como referencial para a elaboração e execução das medidas de política econômica, tanto pelo particular como pelo Poder Público.
É sobejamente conhecido entre os juristas o postulado segundo o qual a grande função da coisa julgada é encerrar definitivamente o conflito de interesses que seja trazido ao Judiciário. O artigo 467 do Código de Processo Civil brasileiro de 1973, aliás, trata a coisa julgada como a qualidade que a sentença de mérito assume, tornando-se imutável e indiscutível, quando resta impossível a impugnação por qualquer recurso. A função de toda sentença que produz coisa julgada material – porquanto é a esta que o artigo 467 do Código de Processo Civil se refere - projetando-se além dos limites do processo em que proferida, interditando qualquer novo pronunciamento judicial sobre a mesma lide, é eliminar o estado de incerteza, pacificando o conflito de interesses. Claro que se pode argumentar com o artigo 471 do mesmo Código, que prevê hipóteses em que pode ocorrer a revisão do comando, mas tal disposição não infirma a regra geral e, muito antes, confirma-a, porquanto a possibilidade de revisão está prevista justamente para se evitar a desautorização do comando estabelecido na sentença de mérito passada em julgado.
O debate que pretendemos introduzir, no presente momento, é sobre a relevância do instituto da coisa julgada para o Direito Econômico. Recordemos que este ramo do Direito tem por objeto o tratamento jurídico das medidas de política econômica [1], e definida esta como "‘ação dirigida’ no sentido de atender aos fins econômicos da sociedade mediante a busca do progresso e da estabilização, como valores econômicos". [2] Efetivamente, não podemos esquecer que a tranqüilidade para as condições negociais se coloca como uma das condições indispensáveis ao funcionamento da economia de mercado, traduzindo-se como segurança jurídica [3], preocupação que se vê espelhada neste acórdão do Supremo Tribunal Federal:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. INTERPOSIÇÃO CONTRA ACÓRDÃO PROLATADO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL A PRAZO CELEBRADO ENTRE PARTICULARES, COM PREVISÃO DE QUITAÇÃO ANTECIPADA DO SALDO DEVEDOR E CORRECAO MONETÁRIA PELA VARIAÇÃO DA OTN. SUPERVENIÊNCIA DE LEIS QUE ALTERARAM AS DISPOSIÇÕES SOBRE CORRECAO MONETÁRIA, DECRETOS-LEIS N.s. 2.284/86, 2.290/86 E 2.322/87. CONFLITO DE LEIS NO TEMPO RESOLVIDO EM FACE DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DO ATO JURÍDICO PERFEITO. IRRETROATIVIDADE DAS LEIS DE ORDEM PÚBLICA E DISPOSITIVA, ART. 5., XXXVI, DA CONSTITUICAO. 1. É cabível recurso extraordinário contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça prolatado em recurso especial, quando o recorrente sucumbe nesta instância e a decisão viola a Constituição. 2. As partes celebraram contrato de compra e venda de imóvel a prazo em 16.9.86, pactuando quitação antecipada do saldo devedor e correção monetária segundo a variação da OTN, que estava congelada por um ano a partir de 1.3.86, art. 6. do Decreto-lei n. 2.284/86. Este pacto não pode ser alcançado pelos supervenientes Decretos-leis n.s. 2.290, de 21.11.86, e 2.322, de 27.2.87, que determinaram a incidência de correção monetária proporcional nos contratos vinculados a OTN durante o período do congelamento. Precedentes. 3. O contrato concluído se constitui em ato jurídico perfeito e goza da garantia de não estar atreito a lei nova, tanto quanto a coisa julgada e o direito adquirido, eis que a eficácia da lei no tempo vem sendo assim regulada há mais de meio século. A garantia prevista no art. 5., XXXVI, da Constituição submete qualquer lei infraconstitucional, de direito público ou privado. Precedentes do Plenário: Repr. n. 1.451-DF, RTJ 127/799; ADIn n. 493-DF, RTJ 143/724; etc. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido para julgar procedente a consignatória, reformando o acórdão do Superior Tribunal de Justiça e restabelecendo a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Sao Paulo [4]..
A lide que se estabeleça, sem que se tenham definido os limites das posições de maior vantagem em relação a determinado objeto é considerada como um elemento perturbador da segurança dos negócios, porque paralisa o desenvolvimento das condições fácticas indispensáveis à plena produção dos efeitos desejados [5]. É o afastamento de tal paralisação que permite que os negócios se desenvolvam com o mínimo de perturbações possível, que permite que a regra seja a estabilidade das situações. Também no âmbito criminal, a coisa julgada desempenha um papel de extrema relevância, no sentido de que se proceda à intimidação dos indivíduos que possam ameaçar o desenvolvimento da economia de mercado. O juiz criminal, ao determinar que se segregue tal ou qual indivíduo do convívio social em virtude de perturbar o normal desenvolvimento dos negócios por colocar os partícipes do jogo mercadológico em situação de insegurança, também se colocaria como um garante do funcionamento da economia de mercado.
Neste caso, sob o prisma da ideologia liberal, a função político-econômica da coisa julgada é arredar, na medida do possível, as perturbações que possam atingir o funcionamento da economia de mercado, com o que se verifica, mais uma vez, que não é o livre jogo dos interesses em concorrência apto a dispensar a presença da coação estatal [6], aqui representada na figura do julgador.
A partir do momento em que, mesmo preservados os postulados básicos do liberalismo, passa a ser admitida a atuação estatal sobre e no domínio econômico, a coisa julgada passa a desempenhar outra função, além da referida no parágrafo anterior, no que interessa ao Direito Econômico: a de definir a juridicidade da medida de política econômica estatal que tivesse atingido o interesse do particular. Observe-se, outrossim, que não são somente as medidas de política econômica adotadas pelo Poder Público que podem vir a ser objeto de exame pelo Poder Judiciário. Ao contrário, uma decisão empresarial pode, também, ter os seus efeitos confirmados ou arredados pela sentença. Neste caso, a coisa julgada também pode desempenhar a função político-econômica de definição do legítimo exercício do poder econômico privado mediante, sobretudo, os atos negociais. É de se ter em mente, para o entendimento deste último período, que "ajustado à ideologia constitucionalmente adotada, funcionando na realização da política econômica, pela garantia da participação do particular, nessa política, é que se deve compreender o contrato no Neoliberalismo e em qualquer ideologia. São permanentes os elementos jurídicos de sua conceituação e são variáveis os elementos ideológicos cujos objetivos o Direito vai garantir por meio do contrato. Cada ramo do Direito deve tratá-lo de acordo com os princípios que o diferenciam dos demais. O Direito Econômico o considera em face da ‘política econômica’ posta em prática e, sob este prisma, cogita de fazer valer o princípio da ‘ordem pública econômica’, tanto nas condições a serem observadas para a efetivação do contrato como na própria economia interna deste". [7]
De outra parte, é de se observar que, em se tratando de obrigações de trato sucessivo, cuja substância tende a sofrer os efeitos da política monetária, não raro se impõe a revisão da sentença, mesmo que transitada em julgado. Mas não só em se tratando de obrigação de trato sucessivo pode ser verificada a exceção à indiscutibilidade e imutabilidade. Se a questão decidida era daquelas que pressupunham uma situação, por sua natureza, baseada em pressuposto sujeito à mutabilidade, descaberia falar na permanência do comando sentencial. Veja-se, a propósito, o que decidiu o Supremo Tribunal Federal:
Liquidação de sentença. Correção monetária. Quantia apurada, em liquidação, com o emprego dos índices oficiais referidos no Decreto-lei n. 75/66, como determinado na decisão da ação de conhecimento, e convertida em ORTNS, para o caso de eventual demora no pagamento, em conformidade com a Lei 6423/77. Inexistência, no caso, de ofensa à coisa julgada, único fundamento do recurso extraordinário. [8]
Houve, durante algum tempo, manifestações jurisprudenciais no sentido de que, ausente pronunciamento sobre a correção monetária, não se poderia entender haver ela sido deferida, dado o teor do artigo 468 do Código de Processo Civil, segundo o qual a sentença faz coisa julgada nos limites das questões decididas:
Impossível, em execução, estender-se a condenação além da coisa julgada. Art. 891 do Código de Processo Civil. Correção monetária não compreendida no julgado exeqüendo. Recurso extraordinário não conhecido [9].
Passou a prevalecer o entendimento, porém, de que como a correção monetária nada acrescentaria ao crédito, mas apenas lhe preservaria a substância, não haveria a extrapolação dos limites objetivos da coisa julgada – porque mais não se faria, no caso, que promover a execução do comando posto na sentença – nem haveria o seu malferimento – porque não se estaria a discutir o que já estava decidido, mas sim a promover o atendimento do que estava decidido:
Recurso extraordinário. Óbice regimental (art. 325, VI). Liquidação. Correção monetária. Coisa julgada (inocorrência). – Não excluída, de explícito, pelo acórdão exeqüendo, a concessão de correção monetária em condenação por dívida de valor não implica ofensa à coisa julgada, de modo a excluir a incidência do óbice regimental. [10]
Sob o ponto de vista do Direito Econômico, a primeira orientação expressa, na realidade, compromisso com a visão do comando da inflação como posto exclusivamente nas mãos das autoridades competentes para administrar a política monetária, com o que a coisa julgada não se poderia presumir como tendo o condão de, pela solução do litígio individual, subtrair aquela determinada situação ao controle daquelas autoridades. De acordo com tal orientação, expresso que fosse o comando sentencial passado em julgado acerca da correção monetária, o que se teria de entender é que fora tido por presente situação fáctica que seria apta a se colocar fora da regra geral, qual seja, o do respeito ao valor nominal definido pela autoridade competente. Quer dizer: a coisa julgada, para esta primeira corrente, teria como função político-econômica, a identificação das situações que escapariam à necessidade de observância do princípio do respeito ao valor nominal. A segunda orientação, contudo, parte do pressuposto de que a ausência de correção não se pode presumir simplesmente porque implica diminuição real no patrimônio do credor. Para se excluir a correção monetária, ter-se-ia de considerar que não se teria concedido a este efetivamente o seu crédito, mas tão-somente um valor nominal, cujo poder de compra se diminuiria e, portanto, o prejuízo de que se queixara o credor não teria, ao cabo, reparação pela decisão definitiva transitada em julgado. A sentença, assim, ao dizer que em determinada quantia montaria o prejuízo do credor, em realidade, estaria a dizer o real montante de tal prejuízo, que teria de ser reparado tal como identificado pela sentença. Neste caso, a função político-econômica da coisa julgada seria a de preservação da situação da pessoa em relação a seus bens tal como identificada pela sentença. Recorde-se, a este respeito, que "as conseqüências econômicas do direito de propriedade são o principal dado da própria configuração dos regimes e dos sistemas de vida dos povos. E o meio pelo qual o direito de propriedade incidirá sobre os bens econômicos constitui preocupação constante do legislador, sobretudo porque daí decorre a perfeição ou a falha técnica da realização dos objetivos políticos visados". [11]
A coisa julgada, por outro lado, vem a desempenhar uma importante função político-econômica no sentido de orientar o agente econômico – tanto público quanto privado – acerca dos limites em que se há de tomar a sua decisão. Nenhuma decisão empresarial voltada à maximização de sua capacidade de obtenção de lucros poderá ignorar os efeitos de decisão transitada em julgado que abranja a aludida empresa ou a qualquer outra pessoa com quem ela pretenda realizar negócio jurídico. Assim também o Poder Público não pode ignorar, quando pretenda formular e executar as medidas de política econômica que lhe competem, a existência de coisa julgada em face dele ou de qualquer pessoa que venha a se relacionar com ele.
Observe-se que não estamos aqui a enveredar pelo campo da análise econômica do Direito, que estabelece identidade entre os conceitos de "justiça" e "eficiência econômica" [12], a reduzir a função da coisa julgada a uma dimensão político-econômica. O que estamos a fazer, no presente texto, é tão-somente identificar a existência desta dimensão que aponta, uma vez mais, para a demonstração de que a elaboração e execução de medidas de política econômica não constitui campo estranho às atribuições normais de quem detém a atribuição de compor os conflitos de interesse com caráter de definitividade.
Também não se está aqui a trazer qualquer conceito estéril, desprovido de valor prático, ao se debater a função político-econômica da coisa julgada, porquanto o que se tem aqui é a pesquisa do papel por ela desempenhado na composição do que se entenda por "ordem pública econômica", posta como condicionante e limite à produção de efeitos de quaisquer decisões dos agentes econômicos [13].
Notas
01. SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras linhas de Direito Econômico. 4ª ed. São Paulo: LTr, 1999, p. 3; CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Breve introdução ao Direito Econômico. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1993, p. 35.
02. SOUZA, Washington Peluso Albino de. Parecer ofertado ao Estado do Rio Grande do Sul, em 1999, constante dos autos da Ação Cível Originária 545/RS, que tramitou no Supremo Tribunal Federal sob a relatoria do Min. Maurício Correa.
03. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 262; CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Agências de regulação no ordenamento jurídico-econômico brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000, p. 63-64.
04. Recurso extraordinário 159.779. Relator: Min. Paulo Brossard. DJU 19 dez 1994.
05. CAMPOS, Ronaldo Cunha. Limites objetivos da coisa julgada. Rio de Janeiro: Aide, 1988, p. 100; CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Direito Econômico – aplicação e eficácia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2001, p. 189.
06. SMITH, Adam. An inquiry into the nature and the causes of the wealth of the nations. London: Encyclopædia Britannica, 1955, p. 309.
07. SOUZA, Washington Peluso Albino de. Lições de Direito Econômico. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002, p. 167.
08. Recurso extraordinário 113.766. Relator: Min. Moreira Alves. DJU 30 out 1987.
09. Recurso extraordinário 79.959. Relator: Min. Cordeiro Guerra. DJU 5 maio 1975.
10. Agravo regimental em agravo de instrumento 94.128. Relator: Min. Luiz Rafael Mayer. DJU 21 out 1983.
11. SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 154.
12. POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. Boston: Little Brown, 1977, p. 186; FARIA, Guiomar Therezinha Estrella. Interpretação econômica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994, p. 36; TORELLY, Paulo Peretti. Democracia e Poder Judiciário. Porto Alegre: Escola Superior de Advocacia/Ordem dos Advogados do Brasil, 1998, p. 13; CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. O credor juiz em causa própria: a Doutrina de Drago x a Análise Econômica do Direito. Revista da Faculdade de Direito Ritter dos Reis. Canoas, v. 1, n. 1, p. 122-123, 1999.
13. MUYLAERT, Sérgio Ribeiro. Estado –Empresa pública – Mercado (um estudo aproximativo para efetivação da política econômica comum de integração no Mercosul). Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1999, p. 92.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Agências de regulação no ordenamento jurídico-econômico brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000.
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