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Os princípios informadores do novo Código Civil e os princípios constitucionais fundamentais.

Lineamentos de um conflito hermenêutico no ordenamento jurídico brasileiro

Desde o advento do paradigma Estado de Direito, construído pelas revoluções burguesas e entronizado pela dogmática alemã, compreende-se que a legislação infraconstitucional deve estar adequada à ordem constitucional vigente em determinado país.

O paradigma Estado Democrático de Direito, esposado na Constituição Federal de 1988, tendo como arcabouços uma sociedade inclusiva e mecanismos institucionais para a emancipação do cidadão, pressupõe a vinculação dos atos estatais e do legislador ao texto constitucional.

Com efeito, há que se indagar, aprioristicamente, acerca da missão do legislador ordinário (dotado de poder constituinte derivado) no processo de constitucionalização do Direito Civil brasileiro, em relação aos matizes filosóficos plantados na elaboração do novo Código Civil.

Salvo melhor juízo, de forma equivocada, a codificação civil – há pouco em vigor – apega-se à concepção axiológica, isto é, à tirania de valores, tão questionada por FRIEDRICH MÜLLER, mas praticada pelo Tribunal Constitucional Alemão.

KONRAD HESSE, um dos marcos teóricos da concepção axiológica, fornece subsídios para a apreensão do significado deste método hermenêutico, isto é, mediante elaboração de metódica ajustada à interpretação constitucional, pretendendo, assim, o equilíbrio capaz de evitar o sacrifício da dimensão normativa de uma dada constituição em face da realidade.

Partindo da premissa de que a norma constitucional carece de existência independentemente da realidade, para KONRAD HESSE sua eficácia não pode extrapolar as condições naturais, históricas, sociais e econômicas de cada situação. Todavia, uma constituição consiste em algo maior do que essas condições fáticas, possuindo peculiar força normativa dirigida a ordenar e conformar a realidade político-social.

Dentre os pressupostos que permitem a consecução do enunciado equilíbrio ressalta-se a vontade da constituição – eis que representa uma alternativa à mera vontade de poder e à normatividade formal e abstrata, carente de vontade –, que repousa em três convicções: a) necessidade de uma ordem normativa objetiva e estável, como garantia frente à arbitrariedade do poder; b) a ordem normativa necessita de constante legitimação; c) o valor normativo da ordem vigente depende de sua racionalidade e dos atos da vontade humana tendentes à sua realização.

Não obstante tais considerações, o novo Código Civil, sob a coordenação de MIGUEL REALE e gestado durante a ditadura militar, envelheceu no decorrer de seu longo período de tramitação no Congresso Nacional.

Apesar de superar a feição individualista do Código Civil de 1916, peculiar ao paradigma Estado Liberal de Direito, deixou-se acorrentar pela concepção axiológica, concernente ao paradigma Estado Social de Direito, desconhecendo o ideal de democracia social e o respeito às minorias, característicos do Estado Democrático de Direito.

Metodologicamente, a nuança conservadora de MIGUEL REALE subjaz no novo Código Civil, entronizando, na perspectiva da eticidade e da socialidade, os bens culturais reconhecidos e aceitos pela comunidade em geral.

Destarte, a nova codificação, segundo o próprio MIGUEL REALE [1], está pautada nas seguintes diretrizes: a) aderência aos problemas concretos da sociedade brasileira; b) unidade sistemática determinada pela parte geral; c) unificação lingüística; d) unidade valorativa; e) sentido de concreção de que as normas se revestem, atendendo ou buscando aliar os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência ao "direito vivido" pelas diversas categorias profissionais.

A socialidade dos modelos jurídicos, assente no culturalismo de MIGUEL REALE [2], peculiar ao paradigma Estado Social de Direito, reflete-se na nova codificação, especificamente na prevalência dos valores coletivos em detrimento dos individuais, redimensionando os conceitos dos cinco principais personagens do Direito Privado: o proprietário, o contratante, o empresário, o pai de família e o testador.

Isto porque, além de representar a quebra do individualismo, consagra também a ruptura do patrimonialismo que permeava as relações jurídicas de Direito Privado à luz do Código Civil de 1916, podendo-se depreender da leitura hermenêutica do novo Código Civil a influência de EMILIO BETTI nesse sentido, conquanto busque combinar o valor da livre iniciativa, no plano econômico, com a socialidade, o que é característico do status socialis, exigindo, p. e., que o contrato e a propriedade cumpram sua função social.

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MIGUEL REALE [3] ignorou a superação dos paradigmas tradicionais com o advento do Estado Democrático de Direito, ao considerar que não houve a vitória do socialismo no plano jurídico, mas o triunfo da socialidade, ou seja, dos valores atinentes a uma sociedade capitalista reformista democrática.

O princípio da eticidade, outro pilar teórico de MIGUEL REALE, está igualmente presente no novo Código Civil, consubstanciado na utilização constante de princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, os quais fazem referência a expressões cujos significados exigem uma atividade valorativa do julgador no tocante à aplicação da regra infraconstitucional e possibilitam a superação do apego ao formalismo jurídico.

A ampla menção aos princípios da boa-fé e eqüidade, bem como a constante invocação aos bons costumes, refletem essa tendência, propiciando ao novo Código Civil uma feição que é peculiar ao paradigma Estado Social de Direito, figurando as diversas cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, consoante MIGUEL REALE, como pontos de mobilidade e de abertura do sistema jurídico em tela para as modificações da realidade.

Entrementes, foram introduzidas na nova codificação regras infraconstitucionais que visam ampliar sua incidência a fatos não previstos expressamente e cuja previsão não poderia ser formulada pelo legislador ordinário.

Ora, se existem princípios constitucionais para serem aplicados à matéria, tais regras tão somente devem adequar-se aos mesmos, segundo a interpretação principiológica a ser assumida pelos operadores jurídicos, em consonância com o paradigma Estado Democrático de Direito. [4]

A idéia de natureza das coisas, ressuscitada por MIGUEL REALE, vinculada ao caráter nomotético da consciência e normativo de alguns fatos, por mais que faça referência a um sistema de valores, determinado historicamente pela experiência natural e cultural, torna-se utópico resgate jusnaturalista que não tem pertinência com o ideal democrático das complexas sociedades contemporâneas.

O ideal democrático, de acordo com MARTIN KRIELE [5], seria a identidade entre os que mandam e os que obedecem, a qual, sem embargo, há de requerer a unanimidade. Como esta não pode ser alcançada na prática, devem ser criados mecanismos democráticos que autorizem que o maior número possível de pessoas goze de autonomia e de que o menor número possível esteja sujeito à heteronomia. Pelo menos, a maioria deve ter a liberdade de viver conforme as suas próprias leis.

Por outro lado, o Estado Democrático de Direito, enquanto comunidade do povo, consiste em uma comunidade de valores ou unidade vinculada ao ideal democrático. O povo somente pode ser representado quando o princípio da representação, como forma de dominação, vincula-se aos valores desta comunidade política ideal.

Consagrou a Carta Política de 1988 (art. 1º) enquanto fundamentos do Estado Democrático de Direito cinco princípios, de prática obrigatória em todos os processos de escolha e tomada de decisões que lhes são concernentes, qualquer que seja a ação política, econômica ou social a ser empreendida.

As posições conceituais que espelham os princípios ali constantes devem integrar-se, visando coexistirem, a fim de conferir legitimidade à República Federativa do Brasil, eis que transcendem a concepção de Estado instituído, atingindo os valores preambularmente expostos no mesmo diploma constitucional que motivaram seu reconhecimento como "Constituição cidadã".

E se, por um lado, tais princípios representam os fundamentos do Estado brasileiro, por outro igualmente o serão de todo o ordenamento jurídico pátrio, seja ele constitucional ou infraconstitucional, superando o princípio da legalidade na qualidade de regra primeira da interpretação do arcabouço legislativo em vigor, atuando como fatores primordiais de validade das normas no ordenamento jurídico brasileiro.

Ademais, descabe o argumento de que se tratam de normas programáticas, dependentes de regulamentação, por ausência de previsão no texto constitucional e por configurarem princípios, o que por si só já é bastante para lhes conferir aplicabilidade imediata e para a persecução de sua efetividade.

Mas dentre os princípios enunciados apenas três estão em destaque, em sintonia com a abordagem do tema proposto. Estes são a cidadania (inc. II), a dignidade da pessoa humana (inc. III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inc. IV).

Os princípios de que ora se ocupa, na evolução histórica do Direito nacional, converterão em realidade a lógica pessoal de sua conformação material: a integração da pessoa humana – a saber, nos limites do âmbito de jurisdição da Constituição Federal, o brasileiro, nato e naturalizado, e o estrangeiro residente no país como destinatários finais da norma constitucional (art. 5º, CF) –, no processo político, social e cultural que a capacita à qualidade de agente plasmador da cidadania [6].

A pessoa humana, na dicção constitucional, é valorada mediante o espectro antropocêntrico que permeia a Ciência Jurídica no Estado Democrático de Direito, no qual é posta no vértice do prisma da hierarquia das normas jurídicas, juntamente com os demais princípios expostos no art. 1º mencionado, haja vista a consolidação da noção de que a justiça é o fundamento do Direito, sendo o fundamento da justiça a dignidade da pessoa humana.

E não há como falar de justiça, distributiva ou social, afastando em posições estanques pessoa humana e cidadania. Preleciona MIGUEL REALE [7] que estes são "valores que devem ser interpretados conjuntamente, pois o respeito devido à pessoa humana em sentido universal (eu costumo dizer que a pessoa humana é o ‘valor fonte’ de todos os valores), não exclui, mas antes implica a dimensão jurídico-política que cada membro da coletividade brasileira adquire só pelo fato de nascer no território nacional, assegurando-lhe um campo específico de direitos e deveres, sem prejuízo da igualdade perante a lei...".

MARIA CRISTINA DE CICCO [8] ressalta o compromisso a que se está adstrito em face da realidade jurídica que se impôs a partir da elevação destes princípios à categoria de fonte primária do Direito interno: "A Constituição Brasileira de 1988 (...) ao eleger a dignidade da pessoa humana e o pleno exercício da cidadania como fundamentos do ordenamento e ao consagrar a justiça distributiva, provocou uma profunda alteração no tecido normativo. Essa transformação não pode passar despercebida, nem ser relegada a um plano secundário com a desculpa de a Constituição significar tão-somente uma carta de princípios; exigindo, ao contrário, uma mudança de mentalidade no operador do Direito em todos os sentidos".

Uma das projeções da livre iniciativa é a liberdade de participação na economia, corroborando o capitalismo enquanto modelo econômico adotado, que traz consigo todas as mazelas e formas de exclusão que lhe são inerentes, mas que deverá, antes de tudo, respeitar os valores sociais do trabalho, juntamente com a livre iniciativa na posição de fundamento do Estado e preceito da Ordem econômica, visando compatibilizar o regime de produção escolhido (capital, lucro), a dignidade da pessoa humana e a dimensão econômico-produtiva da cidadania.

O capitalismo é parte integrante do ambiente cultural em que se vive e, conseqüentemente, parâmetro obrigatório na análise de qualquer propositura jurídica que se estabeleça no Estado brasileiro.

Não se pode, assim, esquecer que qualquer abordagem dentro do ordenamento jurídico pátrio deve, necessariamente, perpassar pela noção de que o intérprete está diante de uma ordem jurídica constitucional que não só reconhece, como impõe, que a liberdade econômica somente é limitada pelos ditames constitucionais acima tratados e por outros de menor valor na escala jurídica, ética e social.

Firma-se, pois, como lembra MIGUEL REALE [9], que "a Carta Magna não consagra o liberalismo infenso à justiça social, mas sim o social-liberalismo, segundo o qual o Estado também atua como ‘agente normativo e regulador da atividade econômica’, muito embora sem se tornar empresário, a não ser nos casos excepcionalíssimos previstos no Art. 173, por imperativos de segurança nacional, ou relevante interesse coletivo definido em lei".

Para ROGER RAUPP RIOS [10] "a valorização do trabalho humano como elemento fundamental da ordem jurídica-econômica [após mencionar que também da República Federativa do Brasil] revela-se, simultaneamente, postulado da consciência geral no atual estágio do desenvolvimento histórico da humanidade e, particularmente, da sociedade brasileira, bem como dado normativo central para a compreensão e equacionamento dos problemas econômicos...". E mais adiante aduz: "A fundamentalidade ínsita à noção de livre iniciativa implica o reconhecimento de uma esfera jurídica dentro da qual os agentes econômicos gozam de autonomia no exercício de sua atividade econômica. Esse campo, onde grassa a autonomia privada, ‘consiste na faculdade concedida aos particulares de auto-regulamentação de seus interesses’".

Em síntese, apesar do brilhantismo do trabalho de MIGUEL REALE, haverá um saudável conflito hermenêutico no ordenamento jurídico brasileiro entre os princípios informadores do novo Código Civil e os princípios constitucionais fundamentais, proporcionando aos intérpretes a percepção e compreensão da verdadeira comunidade de valores erigida sob a égide do paradigma Estado Democrático de Direito.


Notas

01. REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil. 2. ed. reform. e atual. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 50 e ss.

02. Idem. Visão geral do projeto de Código Civil. Revista dos Tribunais, v. 752, São Paulo, jun. 1998, p. 23.

03. Idem. O projeto..., cit., p. 7.

04. SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 303 e ss.

05. KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del Estado: fundamentos históricos de la legitimidad del Estado Constitucional Democrático / traducción por Eugenio Bulygin. Buenos Aires: Depalma, 1980, p. 320 e ss.

06. BOFF, Leonardo. Depois de 500 anos: que Brasil queremos? 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 51-53.

07. REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 3.

08. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução do Direito Civil Constitucional / trad. de Maria Cristina De Cicco. 1. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Prefácio da tradutora.

09. REALE, Miguel. O Estado..., cit., p. 45.

10 PAULSEN, Leandro; CAMINHA, Vivian Josete Pantaleão; RIOS, Roger Raupp. Desapropriação e reforma agrária: função social da propriedade, devido processo legal, desapropriação para fins de reforma agrária, fases administrativa e judicial, proteção ao direito de propriedade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 29-30 e 31-32.


Referências bibliográficas

BOFF, Leonardo. Depois de 500 anos: que Brasil queremos? 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del Estado: fundamentos históricos de la legitimidad del Estado Constitucional Democrático / traducción por Eugenio Bulygin. Buenos Aires: Depalma, 1980.

PAULSEN, Leandro; CAMINHA, Vivian Josete Pantaleão; RIOS, Roger Raupp. Desapropriação e reforma agrária: função social da propriedade, devido processo legal, desapropriação para fins de reforma agrária, fases administrativa e judicial, proteção ao direito de propriedade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução do Direito Civil Constitucional / trad. de Maria Cristina De Cicco. 1. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1999.

______. O projeto do novo Código Civil. 2. ed. reform. e atual. São Paulo: Saraiva, 1999.

______. Visão geral do projeto de Código Civil. Revista dos Tribunais, v. 752, São Paulo, jun. 1998.

SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

Sobre os autores
Mário Lúcio Quintão Soares

professor da PUC/MG, mestre e doutor em Direito pela UFMG

Lucas Abreu Barroso

professor da PUC/MG, mestre em Direito pela UFG, doutorando em Direito na PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Mário Lúcio Quintão; BARROSO, Lucas Abreu. Os princípios informadores do novo Código Civil e os princípios constitucionais fundamentais.: Lineamentos de um conflito hermenêutico no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3974. Acesso em: 22 nov. 2024.

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