Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Controle difuso de constitucionalidade das leis e espaço público no Brasil

Exibindo página 2 de 2
Agenda 01/04/2003 às 00:00

Capítulo 3. A Construção de um Espaço Público Plural

Como dissemos no começo deste trabalho, há uma tendência no sentido de se centralizar a apreciação da constitucionalidade das leis e atos normativos no Brasil.

Após essa introdução, mostramos como foi se construindo a relação entre público e privado na modernidade até sua atual configuração no Estado Democrático de Direito, onde ambas as esferas não se opõem, mas se complementam e se co-originam (conformando-se o paradoxo moderno do Direito que retira sua legitimidade a partir da legalidade, cf. supra).

Com isso, percebe-se a importância da linguagem para a integração social. Assim, a manutenção de — e constituição de novosforos de discussão é fundamental como meio onde os cidadãos possam, desde uma posição "performativa", apresentar seus argumentos num procedimento discursivo, até que se chegue a um consenso (ou ao menos a compromissos) onde prevaleça o melhor argumento.

Nesse sentido o sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis pode ser apontado como um dos grandes mecanismos na manutenção de arenas de discussão pública, descentralizada e dinâmica acerca da interpretação que se dá à Constituição em épocas e lugares distintos (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 137)

No Brasil, desde a primeira Constituição Republicana, por influência direta de Rui Barbosa, cristalizou-se a possibilidade de questionamento incidental da inconstitucionalidade das leis. Apenas posteriormente foi o sistema de controle concentrado sendo adotado aos poucos até que na década de 60 viríamos somar definitivamente o controle concentrado ao difuso. Foi através da Emenda Constitucional nº 16/65, onde ficou prevista uma ação especial para defesa "em tese" da Constituição: a Representação de Inconstitucionalidade. Apenas o Procurador-Geral da República tinha legitimidade para propô-la.

A partir da Constituição de 1988 advoga-se que o sistema principal de controle de constitucionalidade no Brasil torna-se o concentrado (contrariando toda nossa história institucional). Dessa forma o sistema de controle difuso, ainda que não eliminado, deve se posicionar subsidiaria e subservientemente frente ao concentrado. Esse entendimento vem corroborado pelas leis que atualmente regulam a Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade, além da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

3.1. Considerações Finais

O que se percebe atualmente é que o órgão de cúpula do Judiciário do nosso país vem, desde já algum tempo, em consonância com o Legislativo, referendando esta mudança no sistema de controle de constitucionalidade no Brasil propugnada por uma boa parte da doutrina.

Assim, conforme dissemos no começo deste trabalho, a doutrina que informa a supra citada decisão defende que o sistema de controle concentrado é superior ao difuso, deve se sobrepor a este, já que a possibilidade de questionamento incidental da constitucionalidade de lei ou ato normativo geraria insegurança jurídica.

Impressiona ver que o próprio Supremo Tribunal Federal se reconhece como participante de um processo de evolução segundo o qual ele se aproximaria cada vez mais das Cortes Constitucionais Européias (vide, e.g., os votos dos Ministros do STF na ADC-4). Nesse sentido, não há qualquer problema em se suspender processos dos demais Tribunais em que se esteja questionando uma lei sobre a qual o Supremo Tribunal emitiu um juízo provisório quanto à sua constitucionalidade. Aliás há, ao contrário, um "ganho" em o Supremo Tribunal Federal ordenar, sem apreciar nenhum dos casos concretos (nem as pretensões levantadas), a suspensão dos efeitos de decisões já tomadas por juízes em todo o País.

Perguntamos no início se essa concentração da apreciação da constitucionalidade de leis/atos normativos seria compatível com os princípios do Estado Democrático de Direito, e, quanto a este, ressaltamos a concepção que se tem hoje de espaço público.

Diante de todo o exposto, podemos concluir que não. O paradigma do Estado Democrático de Direito reclama para si um espaço público aberto, onde os cidadãos possam desenvolver seus argumentos de forma livre. Em consonância com isso, observamos que o poder que é disponibilizado aos cidadãos de poderem vir a juízo e questionarem incidentalmente a constitucionalidade de lei ou ato normativo representa um ganho democrático imenso às comunidades jurídicas que adotam o sistema difuso.

Levantamos a hipótese de que as recentes inovações legislativas, bem como a fundamentação doutrinária que está por trás delas não se coadunam com os princípios do Estado Democrático de Direito; entre eles a nova concepção que se dá às esferas pública e privada. Para apontar a contradição refizemos o entendimento que a relação público-privado assume no atual paradigma.

Por outro lado, mostramos que o sistema de controle difuso, ao invés de ser um inconveniente, um apêndice do sistema de garantias processuais constitucionais, é fundamental à construção de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição. O sistema de controle difuso de constitucionalidade no Brasil representa uma arena extremamente importante para a formação discursiva da opinião e da vontade do Estado. E, ao contrário do que é advogado por alguns, ele é o meio ordinário de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos no Brasil, mesmo após a Constituição de 1988 (sendo o sistema concentrado modo "especial"), isto "não somente por razões históricas, jurisprudencialmente assentadas, mas em função da sistemática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, no quadro da Constituição da República" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, pp. 159-160) [6].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Parece-nos que é desde instrumentos como esse, que possibilitam uma gama tão grande de participação (ao contrário de qualquer um dos procedimentos em controle concentrado) é que podemos vislumbrar que se possa colocar em prática a Teoria de Häberle de que "todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma" (HÄBERLE, 1997, p. 15).

Logo, se desde uma perspectiva pós-tradicional, os cidadãos são co-autores das normas feitas sob a égide da Constituição e, se todos os que estão sob a mesma — e a aplicam direta ou indiretamente no seu dia-a-dia — são legítimos intérpretes da mesma, eles devem ter garantida a possibilidade de influenciar na compreensão que o Estado possui daquela, isto é, eles devem poder "controlar" as leis/atos normativos.

É claro que o sistema difuso é completado pelo sistema de controle concentrado, desde que este seja também revisto. Assim, não é que sejamos contrários a este último, ou que não acreditemos em seu potencial democrático. O sistema concentrado de controle de constitucionalidade possui a importante função de "controle do risco", isto é, nessa forma de controle há um "caso" subjacente (não é um controle abstrato como se costuma dizer) que é justamente a lesão ou o risco de lesão — que também já é em si um dano. Todavia, a conformação que se tem dado a ele (cf. supra) não condiz com o paradigma do Estado Democrático de Direito, logo nossa crítica não a esta forma de controle em si, mas à sua configuração atual no Brasil.

Contudo, nós já possuímos um instituto que garante essa possibilidade: o sistema de controle difuso de constitucionalidade, que possui as condições para contribuir à manutenção de um espaço público de discussão.


Notas

01. Quanto à Constituição da Áustria, nos ensinava Kelsen que seria melhor que a Constituição previsse quais são os efeitos, se não o faz, "todas las cuestiones concernientes al efecto de uma ley inconstitucional pueden ser respondidas de formas contradictorias" (KELSEN, s/d, 87).

02. Aliás, um tal dispositivo como o analisado parece tributário da teoria kelseniana acerca do estabelecimento de um "quadro de intérpretes". A respeito, ver o seu texto Sobre a Teoria da Interpretação, principalmente p. 35 e segs. Para um estudo completo do tema, ver CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 31 e segs.

03. Nesse sentido, veja-se a valiosa contribuição de ROSENFELD, 2000, p. 153 e segs., ao trabalhar com seu conceito de "pluralismo compreensivo", o autor reclama que, para o debate devem participar até mesmo aqueles que não são tolerantes, que não estão dispostos ao mesmo.

04. A legitimidade das regras positivas não está na faticidade de usos e costumes, mas, em última instância, "atendiendo a si han sido producidas en un procedimiento legislativo que quepa considerar racional o si por lo menos hubieram podido ser justificadas desde puntos de vista pragmáticos, éticos y morales" (p. 92).

05. Habermas explica o paradoxo de como o Direito pode garantir legitimidade através da legalidade. Supera tanto uma dogmática que primeiro tentou fundar a legitimidade dos direitos civis em termos de autonomia moral, sem contudo cair na justificação metafísica de num Direito Natural Racional (ver pp. 151-154).

06. E, completa o autor, "[t]al compreensão seria a única que possibilitaria uma visão não excludente ou não incompatível dos dois modos de controle" (p. 160).


Referências Bibliográficas

BRASIL. STF. Jurisprudência brasileira.

CARVALHO NETTO, Menelick de. (2001), "A Contribuição do Direito Administrativo Enfocado da Ótica do Administrado para uma Reflexão acerca dos Fundamentos do Controle de Constitucionalidade das Leis no Brasil: um pequeno exercício de Teoria da Constituição". Revista Fórum Administrativo, n. 1: 11-20.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. (2000), Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte, Mandamentos.

———. (2001), Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte, Mandamentos.

———. (2002), Direito Constitucional. Belo Horizonte, Mandamentos.

DAVIGNO, Evelina (org.). (1995), "Os Movimentos Sociais e a Emergência de uma Nova Noção de Cidadania", in Anos 90: política e sociedade no Brasil, São Paulo, Brasiliense.

DE GIORGI, Rafaelle de. (1998), Direito, Democracia e Risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre, Sérgio A. Fabris.

GONÇALVES, Aroldo Plínio. (1992), Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro, Aide.

HÄBERLE, Peter. (1997), Hermenêutica Constitucional, a sociedade aberta de intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Porto Alegre, Sérgio A. Fabris.

HABERMAS, Jürgen. (1984), Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

———. (1995), Três Modelos Normativos de Democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, n. 3: 107-121.

———. (1998), Facticidad y Validez: sobre el derecho y el estado democratico de derecho en términos de teoría del discurso. Madrid, Trotta.

KELSEN, Hans. [s/d], "El control de la constitucionalidad de las leys: estudio comparado de las constituciones austriaca y norteamericana". Ius et Veritas, n. 6.

———. (1997), "Sobre a Teoria da Interpretação". Cadernos da Escola do Legislativo, n. 5: 31-43.

MAUS, Ingeborg. (2000), "Judiciário como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ´sociedade órfã´". Novos Estudos CEBRAP, n. 58: 183-202.

MELO FRANCO, Afonso Arinos. (1958), Curso de Direito Constitucional Brasileiro. Vol. I, Rio de Janeiro, Forense,.

MENDES, Gilmar Ferreira.(1998), Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e Alemanha. 2ª edição, São Paulo, Saraiva.

ROSENFELD, Michel. (2000), Les Interprétations Justes. Paris/Bruxelas, Bruylant/LGDJ.

VELASCO ARROYO, Juan Carlos. (1999), "Introducción", in J. HABERMAS, La Inclusión del Otro: estudios de teoría política. Barcelona, Paidos.

Sobre o autor
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Professor Adjunto na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e na Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Professor permanente do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Advogado no Cron - Advocacia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Controle difuso de constitucionalidade das leis e espaço público no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3988. Acesso em: 25 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!