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A origem do Tribunal Penal Internacional e seus principais aspectos

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Agenda 09/06/2015 às 12:42

2. A Criação do Tribunal Penal Internacional

Foi então, motivados pela necessidade de coibir abusos aos direitos humanos, que a instalação de um tribunal penal internacional permanente foi discutida mais veemente ao longo da década de 90. Este tribunal é vinculado a Organização das Nações Unidas (ONU), alheio ao interesse dos países membros, uma vez que os tribunais de exceção dependiam da decisão do Conselho de Segurança da ONU, no qual cinco potências tinham o poder de veto43.

Assembleia Geral das Nações Unidas, entre 1995 e 1998, convocou dois comitês para a produção de um texto consolidado do Projeto de Estatuto para a criação de um Tribunal Penal Internacional de caráter permanente. O primeiro comitê discutiu as principais questões substanciais e administrativas, mas não iniciou as negociações nem a redação propriamente dita do Estatuto.44

Isto posto, o comitê que tratava acerca dos tribunais ad hoc foi substituído em 1996 pelo Comitê Preparatório para a criação de um Tribunal Penal Internacional. A partir do ano de 1996, uma vasta coligação de aproximadamente oitocentas organizações não governamentais, cobrindo o mundo inteiro, é formada com intuito de fazer pressão para que o futuro tribunal seja independente, imparcial e eficaz. Na conferência ocorrida em 17 de julho de 1998, foi aprovada a criação do Tribunal Penal Internacional, tendo 120 votos favoráveis, 21 abstenções e 7 votos contrários, quais sejam: China, Estados Unidos, Filipinas, Índia, Israel, Sri Lanka e Turquia.45

O Estatuto entrou em vigor na data de 1.º de julho de 2002 e até janeiro do ano de 2015, 122 Estados já haviam ratificado. O ingresso de 122 países ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional pode ser considerado o passo mais importante da sociedade internacional na batalha contra a impunidade e em favor de um maior respeito aos Direitos Humanos.

No caso do Brasil, a assinatura do tratado internacional referente ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, deu-se em 7 de fevereiro de 2000, tendo sido aprovado pelo Parlamento brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 112, em 06 de junho de 2002, que foi promulgado pelo Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002.

O Brasil tornou-se parte do referido tratado quando houve o depósito da carta de ratificação brasileira, ou seja, no dia 20 de junho de 2002. O art. 5, § 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece: “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.”

Assim, por força do referido artigo, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional passou a compor a Constituição da República Federativa do Brasil46 não podendo, com isso, haver abolição de quaisquer dos direitos e garantias, nele constantes, por qualquer meio no Brasil, inclusive por emenda constitucional.

No tocante à participação do Brasil, Mazzuoli explica que:

O corpo diplomático brasileiro, que já participava mesmo antes da Conferência de Roma de 1998, de uma Comissão Preparatória para o estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional, teve destacada atuação em todo processo de criação deste Tribunal. E isto foi devido, em grande parte, em virtude do mandamento do art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição brasileira de 1988, que assim preceitua: O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.47

Observa-se que o número de ratificações exigidas pelo Tratado para entrar em vigor não foi elevado comparando com outras convenções. A explicação para o fato é que o Estatuto de Roma adotou mecanismos bastante rígidos, onde não se permite fazer reservas. Assim, o Estado signatário tem que aceitar integralmente o tratado, comprometendo-se com cada um dos seus artigos, sem poder impor reserva a determinado artigo do documento. Isso teria atrasado o processo de ratificação por parte de cada Estado signatário.48

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional fixou regras de responsabilidade penal em escala plenária, para sancionar a prática de atos que lesam a dignidade humana. Todas as pessoas, naturais ou jurídicas, de qualquer nacionalidade, tenham direitos e deveres em relação à humanidade como um todo, e não apenas umas em relação às outras pela intermediação dos respectivos Estados.

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Nesse sentido, a definição de um ato criminoso, bem como o julgamento e punição do agente responsável, não constituem mais, exclusivamente, matéria adstrita à soberania nacional de cada Estado. Percebeu-se que, como ficou visível ao longo da história, na imensa maioria dos casos, os agentes criminosos são autoridades estatais, ou pessoas que gozaram da proteção destas para a prática dos atos criminosos.

Ampliou-se, assim, a noção de indivíduo não mais como objeto, mas como beneficiário e sujeito de direito internacional, levando em consideração a primazia da pessoa humana para o sistema internacional de proteção, passando a constituir uma garantia adicional.

O principal dispositivo do estatuto, entabulado no art. 1º, é o Princípio da Complementaridade, nos termos do qual a jurisdição do TPI terá caráter excepcional e complementar, isto é, somente será exercida no caso de manifesta incapacidade ou falta de disposição de um sistema judiciário nacional para exercer sua jurisdição primária. Assim sendo, os Estados terão primazia para investigar e julgar os crimes previstos no Estatuto do Tribunal.49

Constata-se, deste modo, a responsabilidade primária do Estado com relação ao julgamento de violações de direitos humanitários, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária. A jurisdição do Tribunal Interacional é adicional e complementar à do Estado, ficando condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno. Assim, o Estatuto busca de forma equacionada a garantia do direito à justiça, o fim da impunidade e a soberania do Estado, à luz do princípio da complementaridade50 e do princípio da cooperação51.

A ideia de responsabilidade individual é um principio fundamental sobre o qual se funda a jurisdição penal, pessoal, sem a qual os autores desses crimes permaneceriam impunes. O princípio é revestido de inegável importância quando se trata de julgar crimes em ampla escala, como aqueles que recaem sob a jurisdição do Tribunal Penal Internacional.

O princípio da responsabilidade individual, adotado pelo Estatuto, afirma a tese de que cada crime constitui uma individualidade única, precisa e inconfundível. Por este motivo, quando o fato imputado ao acusado não se enquadra exatamente na definição legal, é vedado ao intérprete ampliar o campo de aplicação da norma, recorrendo, por via de analogia, à definição de um crime semelhante ou aproximado.52 O artigo 22 do Estatuto dispõe:

  1. Nenhuma pessoa será considerada criminalmente responsável, nos termos do presente Estatuto, a menos que a sua conduta constitua, no momento em que tiver lugar, um crime da competência do Tribunal.

  2. A previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambigüidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada.

  3. O disposto no presente artigo em nada afetará a tipificação de uma conduta como crime nos termos do direito internacional, independentemente do presente Estatuto.

O presente artigo não somente consagra a tradicional proibição da analogia na interpretação de normas definidoras de crimes, ainda acrescenta a regra do in dubio pro reo 53 .

Além disso, cabe referir que o TPI é uma instituição independente, não é um órgão da ONU, embora mantenha uma relação de estreita cooperação com este. De acordo com o artigo 4.1 do Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Interacional tem personalidade jurídica internacional e a capacidade jurídica necessária ao regular desempenho de suas funções, bem como a realização de seus propósitos.

Com sede em Haia, pode exercer suas funções e prerrogativas em conformidade com o disposto no Estatuto do território de qualquer Estado-Parte e, mediante acordo especial, no território de qualquer outro Estado, de acordo com o disposto do artigo 4.2 do mesmo Estatuto.

O receio de admitir reservas deu-se, para evitar que os países menos desejosos de cumprir os seus termos pretendessem excluir (por meio de reserva) a entrega de seus nacionais ao Tribunal, com a alegação de que tal ato violaria a proibição constitucional de extradição de nacionais. Assim, nota-se que o impedimento da ratificação com reservas é uma ferramenta eficaz para a perfeita atividade e funcionamento do Tribunal.

A princípio, o TPI terá competência para julgar os crimes de genocídio, de guerra e outros crimes contra a humanidade, além de agressão externa. Convém mencionar que os crimes de tráficos de drogas e terrorismo foram inclusos nas negociações, formando-se um debate acalorado, na medida em que uma minoria de Estados fazia pressão contundente por sua inclusão. Por fim, a maioria atribuiu a esses crimes caráter fundamentalmente distinto dos crimes principais, receando que pudessem sobrecarregar o Tribunal, ficando fora da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, assim como, o crime de pirataria em alto mar.54


Notas

1 IAKAWA, Daniela Ribeiro. O Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro. In: PIOVESAN, Flávia (Org.). Temas de Direitos Humanos. 2. Ed. São Paulo. Max Limonad, 2003.

2 É a proteção que um Estado concede a estrangeiros.

3 ASCENSIO, Hervé. O Brasil e os Novos Desafios do Direito Internacional. ed. Forense, Rio de Janeiro, 2004, p.265.

4 MAZZUOLLI, Valério de Oliveira. Direitos Humanos, Cidadania e Educação. Uma nova concepção introduzida pela Constituição Federal de 1988. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/2074/direitos-humanos-cidadania-e-educacao> Acesso em 17 de março de 2014.

5 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Op., cit., p. 6.

6 A Legitimidade do Conselho de Segurança para criar tribunais penais internacionais de ad hoc está amparada pelos artigos 29 e 41 da Carta das Nações Unidas.

7 MIRANDA, João Irineu. O Tribunal Penal Internacional frente ao princípio da soberania. 2005. Dissertação (Mestrado). USP – São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Direito.

8 CAEIRO, Pedro. Tribunais Penais Internacionais: “Etapas de um caminho ou astros em constelação?”. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo. Revistas dos Tribunais. Ano 10, n° 37, p. 101, Jan/Mar 2002.

9 KRIEGER, César Amorim. Direito Internacional Humanitário: o precedente do comitê internacional da Cruz Vermelha e o Tribunal Penal Internacional. 2. Ed. Curitiba: Juruá, 2005.

10 Esse acordo também ficou conhecido como Acordo para Persecução e Punição dos Principais Criminosos de Guerra do Eixo Europeu. Rodrigo Fernandes. A Prevenção e Solução de Litígios Internacionais no Direito Penal Internacional: fundamentos, histórico e estabelecimento de uma Corte Penal Internacional. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/2819/a-prevencao-e-solucao-de-litigios-internacionais-no-direito-penal-internacional> Acesso em 15 de março de 2014.

11 AMBOS, Kai. Impunidade por violação dos direitos humanos e o direito penal internacional. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano 12, nº 49, Jul/Ago 2004.

12 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional e a Internacionalização do Direito Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004, p.59.

13 SOUB, Maria Anaides do Vale. O Ministério Público na Jurisdição Penal Internacional. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.

14 SOUB, Maria Anaides do Vale. Op. cit. p. 15

15 Idem.

16 SILVA, Carlos Augusto da. O Genocídio como crime internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. P. 69.

17 ROBERTSON, Geoffrey. Crimes against humanity: the struggle for global justice. Nova York: New York Press, 2000.

18 SOUB, Maria Anaides do Vale. Op. cit. p.18

19 STARLING, Luiza De Carvalho. CLEMENTINO, Priscilla Araújo. O Tribunal Penal Internacional e a Consagração do Princípio da Responsabilidade Penal Internacional Individual. UFMG – Faculdade de Direito.

20 SOUSA, Fernanda Nepomuceno de. Jurisdição Internacional Penal nos crimes contra a humanidade, 2001. Dissertação (Mestrado) – PUCMinas, Belo Horizonte, Programa de Pós-Graduação em Direito.

21 SOUB, Maria Anaides do Vale. Op. cit. p.23

22 SILVA, Carlos Augusto Gonçalves da. Op. cit., p. 62-63

23 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Op,. cit., p. 47.

24 SOUB, Maria Anaides do Vale. Op. cit. p.23 et. seq.

25 CAEIRO. Pedro. Op., cit., p.8.

26 ANDRADE, Roberto de Campos. Estatuto de Roma e a Ordem Pública Internacional. 2006. Tese (Doutorado) – USP, São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Direito.

27 LAMOUNIER, Gabriela Maciel. A atuação do Ministério Público no Tribunal Penal Internacional. Belo Horizonte, 2008.

28 MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional: aspectos institucionais, jurisdição e princípio da complementaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

29 A Iugoslávia era formada por 6 repúblicas: Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia. Etnias que formam a ex-Iugoslávia. <https://educaterra.terra.com.br/voltaire/atualidade/iugoslavia5.htm.> Acesso em 3 de abril de 2014.

30 ROBERTSON, Geoffrey. Op., cit.

31 SOUB, Maria Anaides do Vale. Op. cit. p.28

32 MAIA, Marrielle. Op., cit., p. 54. et. seq.

33 AMBOS, Kai. Es El procedimiento penal internacional “adversarial”, “inquisitivo” ou “mixto”?. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano 13, nº 57, Nov/Dez 2005.

34 SOUB, Maria Anaides do Vale. Op cit.p. 29. et. seq.

35 A morte de Milosevic. Disponível em: https://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=341. Acesso em 5 de janeiro de 2014.

36 SILVERMAN, Jon. Morte de Milosevic prejudica credibilidade de tribunal em Haia. Disponível em: <https://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/03/060312_haiaanaliseaw.shtml.> Acesso em 05 de setembro de 2014.

37 BARBOSA, Salomão Almeida. Tribunal Penal Internacional. 2005. Dissertação (Mestrado) – UniCEUB, Brasília.

38 SOUB, Maria Anaides do Vale. Op. cit. p.35.

39 MAIA, Marrielle. Op., cit., p. 58. et. seq.

40 SOUB, Maria Anaides do Vale. Op. cit. p.37.

41 O TEMPO. Mentor número dois de genocídio é extraditado. Belo Horizonte, Out/Nov de 2009. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/capa/mundo/mentor-n%C3%BAmero-dois-de-genoc%C3%ADdio-%C3%A9-extraditado-1.352780> Acesso em 12 de fevereiro de 2014.

42 MAIA, Marrielle. Op., cit., p. 61.

43 China, Estados Unidos,França, Rússia e Reino Unido.

44 GARCIA, Fernanda Luau Mota. Bacharel em Direito. O Tribunal Penal Internacional: funções, características e estrutura. 2012, 56f. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) - Centro Universitário Metodista, Porto Alegre. 2012.

45 Idem.

46 Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional 45 o Brasil passou a reconhecer formalmente a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Constituição Federal, artigo 5º, parágrafo 4: “O Brasil se submete a jurisdição do TPI a cuja criação tenha manifestado adesão”.

47 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. Rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015. p. 834.

48 Em se tratando de reservas, o Estatuto não a permite. A reserva é uma declaração unilateral da Parte Contratante, expressa no momento do consentimento, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico de uma ou mais disposições do tratado em relação àquela Parte Contratante. Em outras palavras, a Parte, ao assinar ou ao ratificar o tratado, pode informar às demais Partes que não se considera vinculada a uma ou mais disposições, e/ou considera que certas disposições lhe são aplicáveis de uma maneira específica, explicada no momento da reserva.

49 GARCIA, Fernanda Luau Mota. Op., cit., p.1 et seq.

50 MAIA, Marrielle. Op., cit., p. 65.

51 O artigo 86 do estatuto de Roma dispõe: “Obrigação geral de cooperar Os Estados partes, em conformidade com o disposto no presente Estatuto, cooperação plenamente com o Tribunal na investigação e persecução de crimes sob sua jurisdição.”

52 LEWANDOWSKI, Henrique Ricardo. O Tribunal Penal Internacional: de uma cultura de impunidade para uma cultura de responsabilidade. Revista Estudos Avançados. São Paulo. Volume 16, n° 45 Maio/Agosto 2002.

53 É uma expressão latina que significa que na dúvida deve-se favorecer o acusado. Essa expressão encontra amparo no princípio jurídico da presunção de inocência.

54 GARCIA, Fernanda Luau Mota. Op., cit., p.2 et seq.

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