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Direito à integridade psicofísica e os temperamentos de sua indisponibilidade

Agenda 02/07/2015 às 18:17

O presente trabalho tem como escopo examinar a concepção do direito à integridade psicofísica e a sua relativa indisponibilidade, através da análise crítica da sua tutela no ordenamento jurídico pátrio e de sua relação com a autonomia privada existencial.

1. Considerações iniciais   

Antes de definir o direito à integridade psicofísica, faz-se mister situá-lo, juridicamente, como espécie do gênero direitos da personalidade, delimitados como aqueles concernentes a bens jurídicos intrínsecos à noção de pessoa humana, geralmente, associados a três esferas fundamentais do sujeito de direito: física, psíquica e moral, incluindo, outrossim, suas respectivas projeções e imbricações.

Datados, juridicamente, do começo do século XX (apesar da expressão ter sido cunhada já no fim do século XIX) e de notoriedade angariada, sobretudo, no período pós-Grandes Guerras (DONEDA, 2005, P. 75-76), os direitos da personalidade têm como principais traços de caráter, segundo tradicional doutrina: o absolutismo, a generalidade, a extrapatrimonialidade, a indisponibilidade, a imprescritibilidade, a impenhorabilidade e a vitaliciedade (STOLZE; PAMPLONA, 2014, P. 194).

Tais caracteres devem ser aplicados cautelosamente. A complexidade e a pluralidade das sociedades contemporâneas tornam inidônea qualquer absolutização (em sentido amplo, distinto do supracitado absolutismo no sentido de oponibilidade erga omnes dos direitos da personalidade) de direito, valor ou princípio, que devem ser tomados a partir da experiência jurídica, que é permanente intercomunicação dos fatores normativo, fático e axiológico (REALE, 2002, P. 511).

Dentre as mencionadas características, a indisponibilidade é a mais cara ao escopo do presente trabalho, dessarte, pertinente é a sua elucidação: indisponíveis são os direitos da personalidade porquanto alijados do seu âmbito estão as capacidades de renúncia e transmissão, isto é, “não podem os seus titulares deles dispor, transmitindo-os a terceiros, renunciando ao seu uso ou abandonando-os, pois nascem e se extinguem com eles, dos quais são inseparáveis” (GONÇALVES, 2012, P. 181), ou seja, são imunes “à vontade do titular quanto ao seu destinado, direito que não pode ser extinto ou modificado pela vontade” (REYS; MONTESCHIO, 2014, P. 15 apud GARCIA, 2007, P. 46).

Intransmissibilidade e irrenunciabilidade são os únicos atributos dos direitos da personalidade consagrados positivamente pelo Código Civil brasileiro, em seu artigo 11: “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.

A rigidez excessiva do preceito é mitigada quando confrontado com o enunciado 4 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, que assinala o seguinte: “o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral” (JÚNIOR, R. R. A., 2012, P. 17).

O Código Civil brasileiro dedica o seu segundo capítulo (artigos 11 a 21) à regulamentação dos direitos da personalidade, optando por um tratamento fechado à matéria, ao elencar uma série de direitos e seus respectivos critérios de proteção, embora seja pacífico, doutrinariamente, o entendimento quanto à necessidade de tal rol de direitos ser numerus apertus, em virtude do constante reconhecimento de direitos típicos de um espaço-tempo determinado, ou seja, que não poderiam ser previstos em um rol taxativo anterior, como o direito a ser deixado em paz, parte integrante do direito à privacidade e o próprio direito à integridade psicofísica.

Com os conceitos básicos devidamente assentados, pode-se definir o direito à integridade física como o relativo à proteção jurídica da incolumidade do corpo humano em seu aspecto externo e interno, vivo ou morto, considerado em sua totalidade ou parcialmente.

Por sua vez, o direito à integridade psíquica é definido como o relativo à proteção jurídica da higidez mental, manifestando-se “pelo respeito, a todos imposto, de não afetar a estrutura psíquica de outrem (...). À coletividade e a cada pessoa prescreve-se então a obrigação de não interferir no aspecto íntimo da personalidade de outrem” (BITTAR, 2006, P. 119).

Parte da doutrina critica a separação entre as integridades física e psíquica, tratando as duas esferas como indissociáveis (LACERDA, 2009, P. 5277-5278) e merecedoras de tutela jurídica conjunta. Coadunamos com tal entendimento, escorreito em razão de a distinção possuir pouca utilidade teórica e se mostrar dissonante da realidade, à medida que incolumidade física e psíquica convivem em uma relação de mútua implicação. Emerge, destarte, a concepção de corpo-sujeito:

"O corpo-sujeito representa a superação da clássica dicotomia cartesiana, que separava o sujeito em dois planos distintos - a res extensa (matéria) e a res cogitans (espírito). A partir da união indissolúvel entre a mente e o corpo, a fragmentação entre integridade física e integridade psíquica impede a plena compreensão do sujeito em sua singularidade" (DALSENTER; MORAES, 2009, P. 141).

No tocante à matéria, há, semelhantemente, o entendimento de Carlos Alberto Bittar, que utiliza a expressão “integridade física” de modo amplo, abrangendo a incolumidade físico-mental:

"De grande expressão para a pessoa é também o direito à integridade física, pelo qual se protege a incolumidade do corpo e da mente. Consiste em manter-se a higidez física e a lucidez mental do ser, opondo-se a qualquer atentado que venha a atingi-las, como direito oponível a todos" (2006, P. 119).

2. O direito à integridade psicofísica na legislação pátria

O direito à integridade psicofísica, naturalmente, não encontra resguardo apenas na legislação cível como direito da personalidade, possuindo proteção assegurada pela Lei Maior como direito fundamental e recrudescida pela legislação penal como aspecto de vida digno de amparo mais severo. Indubitável é, portanto, que se trata de um bem jurídico de suma importância.

Visando a uma exposição sistemática da legislação pátria em relação ao tema em estudo, partir-se-á à análise da tutela jurídica da integridade psicofísica nas três vertentes normativas supracitadas, sem descuidar de suas respectivas correlações decorrentes da coesão pressuposta do ordenamento jurídico.

A Constituição Federal toma à sua égide a integridade psicofísica ao declarar em seu artigo 5º - isto é, em seu rol de direitos e deveres individuais e coletivos expressos -, nos incisos III, XLVII (alíneas “c” e “e”) e XLIX, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”[1], que “não haverá penas: (...) de trabalhos forçados; (...) cruéis” e que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, respectivamente.

Tão essencial quanto as menções explícitas a componentes da integridade psicofísica é a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (e, ipso facto, da totalidade do seu anteparo jurídico), prevista no artigo 1º, inciso III da Lei Suprema.

Pode-se conceituar brevemente a dignidade de que trata o princípio em questão como “o valor-síntese que reúne as esferas essenciais de desenvolvimento e realização da pessoa humana” (SCHREIBER, 2013, P. 8), logo, translúcida se torna a imbricação entre o basilar princípio e a incolumidade do corpo material-mental, porquanto a última permite a concretização do bem-estar individual, fazendo parte das capacidades humanas centrais, em expressão cunhada por Martha Nussbaum (2003, P. 33-59).

Cabe, igualmente, destacar a previsão constitucional de indenização por danos morais ou materiais quando violadas “a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” (artigo 5º, X), sem óbice à interpretação extensiva, já que os direitos a que se refere o dispositivo em questão “estão englobados no direito à dignidade, verdadeiro fundamento e essência de cada preceito constitucional relativo aos direitos da pessoa humana” (FILHO, 2012, P. 88).

O Direito Penal, como expressão por excelência do jus puniendi do Estado, somente é chamado a salvaguardar os mais importantes bens jurídicos de lesões significativas provocadas por outrem que não o seu titular (princípios da fragmentariedade, da intervenção mínima, da lesividade e da alteridade).

Seguindo tal diretriz, pode-se observar proteção explícita da legislação penal ao direito à integridade psicofísica no artigo 38 (“o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”), nos capítulos I (dos crimes contra a vida), II (das lesões corporais), III (da periclitação da vida e da saúde), IV (da rixa) e V (dos crimes contra a honra) do título I da Parte Especial (dos crimes contra a pessoa) e nos capítulos I (dos crimes contra a liberdade sexual), II (dos crimes sexuais contra vulnerável) e III (do rapto) do título VI da Parte Especial (dos crimes contra a dignidade sexual). Pode-se apontar como exemplo no âmbito da legislação especial a lei n. 9.455/97 (“Lei de Tortura”).

No domínio cível, a integridade psicofísica encontra suporte direto nos artigos 13, “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”, e 15, “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

O artigo 13 será objeto de análise crítica posterior, por sua vez, do artigo 15 pode-se ressaltar a preceituação, ainda que de maneira implícita, do princípio do consentimento informado (informed consent), definido como o direito da pessoa autônoma e capaz de tomar “uma decisão voluntária, (...) após um processo informativo e deliberativo, visando à aceitação de um tratamento específico ou experimentação, sabendo da natureza do mesmo, das suas consequências e dos seus riscos” (CLOTET, 2009, P. 1).

3. Entre a autonomia privada existencial e a indisponibilidade dos direitos da personalidade

Perceptível é que a vetusta doutrina da indisponibilidade dos direitos da personalidade tem como empecilho mais notável a autonomia privada existencial, a indispensável esfera de autodeterminação do sujeito, sendo o equilíbrio entre as duas características essencial para a plena efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.

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O significado da expressão jurídica “indisponibilidade” em relação a um direito subjetivo foi abordado anteriormente, mas imperioso é tratar da função que exerce esse atributo na proteção dos direitos da personalidade: de acordo a Cristiano Farias e Nelson Rosenvald, a indisponibilidade, devidamente relativizada, impede “que o titular possa deles dispor em caráter permanente ou total, preservando a sua própria estrutura física, psíquica e intelectual” (2012, P. 177), dessarte, é uma forma de salvaguardar tais direitos em relação ao seu titular ou a terceiro que conte com a sua aquiescência para efetuar lesão que venha a impedi-lo de alcançar o mínimo existencial, isto é, as “condições mínimas de existência humana digna” (IURCONVITE, 2010 apud TORRES, 1999, P. 141).

Por sua vez, em conceito jurídico de sentido amplo, "a autonomia poderia ser entendida como capacidade de o sujeito de direito determinar seu próprio comportamento individual" (ROCHA, 2011, P. 146). A doutrina, usualmente, ainda subdivide o conceito em três partes, embora seja comum a utilização de todas indistintamente:

“A autonomia da vontade tem feição subjetiva, pois revela a vontade em si mesma, no seu sentido mais psicológico. A função da autonomia da vontade, pode-se afirmar, era a de garantir a própria vontade do sujeito, por ser considerada a única fonte de efeitos obrigacionais; (...) entende-se por autonomia privada ‘o poder, reconhecido ou concedido pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas como conseqüências de comportamentos – em qualquer medida – livremente assumidos’. A autonomia privada, assim concebida, seria substrato para a criação, modificação ou extinção de situações jurídicas subjetivas, sempre na moldura formada pelo ordenamento jurídico. (...) Para Pietro Perlingieri, a locução autonomia negocial descreve o fenômeno da auto-regulamentação dos interesses na multiplicidade dos seus modos de expressão” (PENNA; MULHOLLAND, 2010, P. 57 apud MEIRELES, 2011, P. 63-73) (grifos de Iana Soares e Caitlin Sampaio).

A autonomia privada ainda se decompõe em patrimonial (conceituação clássica, relacionada à liberdade negativa de não intervenção estatal em determinados aspectos dos negócios jurídicos) e existencial ou extrapatrimonial, quando relacionada aos direitos da personalidade, conforme assinala Roxana Borges: “a autonomia privada não se resume à iniciativa econômica nem à autonomia contratual, pois abrange, também, situações subjetivas existenciais, como, por exemplo, transplantes, (...) cessão de uso da imagem, da voz” (MOREIRA, 2012, P. 7-8 apud BORGES, 2007, P. 50).

Rose Melo Meireles ainda ressalta a existência de princípios típicos da autonomia privada existencial, elencando os princípios da gratuidade, do consentimento qualificado, da revogabilidade e incoercibilidade, da confiança e da autorresponsabilidade como os mais notáveis (MOREIRA, 2012, P. 8 apud 2011, P. 201-270).

Como corolários do constitucional princípio da dignidade da pessoa humana, a autonomia privada existencial e a indisponibilidade dos direitos da personalidade devem ser alvos de uma ponderação entre si e com os demais ditames constitucionais, cujos efeitos devem se irradiar por todo o direito infraconstitucional, em processo intitulado “constitucionalização”. De acordo a Luís Roberto Barroso, “este fenômeno (...) consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados” (2005, P. 27).

Pacífico é, entre a doutrina, o entendimento tendente à relativização da indisponibilidade dos direitos da personalidade, consagrado, inclusive, positivamente no Brasil. Todavia, os critérios a serem utilizados para conservar a harmonia entre a esfera de autodeterminação pessoal e a necessária proteção exercida pela indisponibilidade ainda se encontram em estado de incipiência, como será examinado a seguir na experiência específica do direito à integridade psicofísica.

4. O artigo 13 do Código Civil brasileiro: origem, âmbito de aplicação, jurisprudência e análise crítica

O supratranscrito artigo 13 trata da disposição do próprio corpo físico, mormente, de partes dele, estabelecendo a proibição de tal prática salvo se: a) por exigência médica; b) não importar diminuição permanente da integridade física e não contrariar os bons costumes.

Tal enunciado normativo tem forte influência do Código Civil da Itália (DONEDA, 2005, P. 86), que data de 1942 e dispõe em seu artigo 5: “gli atti di disposizione del proprio corpo sono vietati quando cagionino una diminuzione permanente della integrità fisica, o quando siano altrimenti contrari alla legge, all'ordine pubblico o al buon costume”[2], tendo o legislador brasileiro optado por acrescentar a exigência médica às exceções e por suprimir o critério relativo à “ordem pública”.

Adriano de Cupis explana o dispositivo italiano, tratando do que o jurista afirma ser a sua área precípua de regulamentação - a lesão consentida:

"Esta norma refere-se àqueles atos de disposição que se concretizam no 'consentimento do titular do direito'. (...) O legislador admite agora, dentro de certo limite, a disposição do direito à integridade física mediante 'consentimento'. (...) Como se vê, este limite é duplo: (...) o primeiro limite [o relativo à diminuição permanente da integridade física] tem caráter especial, enquanto o segundo [engloba os demais critérios da legislação italiana] tem caráter geral e não faz mais do que reforçar, quanto à matéria regulada, um princípio já existente no ordenamento jurídico” (2008, P. 94).

Outro possível âmbito de incidência da norma em estudo – os transplantes inter vivos – foi, prudentemente, afastado pelo legislador, ao dispor em seu parágrafo único que “o ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial”. A Lei dos Transplantes (lei n. 9.434/97) prevê em seu artigo 9º:

“É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea.”

São elencadas outras restrições e condições procedimentais em seis parágrafos e um artigo residual do mesmo dispositivo, cabe mencionar o parágrafo § 3º, que trata dos órgãos disponíveis à essa modalidade de transplante:

“Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.”

Mais uma querela concernente à área de aplicação do artigo 13 do Código Civil é a possibilidade jurídica de realização de cirurgia de transgenitalização, tratamento da transexualidade, que “é considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um transtorno de identidade de gênero, sendo inclusive catalogada no código internacional de doenças, cujo CID é o de n° 10-F64.0” (FRANCO, 2012), em conjunto com psicoterapia de apoio.

Embora constitua diminuição permanente da integridade física e possa contrariar o sempre confuso critério dos bons costumes, a cirurgia de transgenitalização possui amparo legal, enquanto imperativo de saúde consagrado pela resolução n. 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina, que autoriza em seu artigo 1º “a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo”, embora imponha restrição etária (21 anos) e exija acompanhamento prévio de dois anos, vide artigo 4º da supramencionada resolução.

Corroborando com a posição doutrinária predominante, diz o enunciado n. 276 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal:

 “O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a conseqüente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil” (JÚNIOR, R. R. A., 2012, P. 48).

Cabe ressaltar a importância do reconhecimento do direito à integridade psicofísica, já que o mero direito à integridade física se mostra amplamente insuficiente à luz do caso concreto: a transexualidade é um transtorno de origem psíquica com significativos reflexos físicos. Sobre o tema, diz o enunciado 6 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “a expressão ‘exigência médica’, contida no art.13, refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente” (TARTUCE, 2005).

Os demais enunciados aprovados pelo Conselho Nacional de Justiça nas Jornadas de Direito Civil são o 532 da VI Jornada: “é permitida a disposição gratuita do próprio corpo com objetivos exclusivamente científicos, nos termos dos arts. 11 e 13 do Código Civil” (CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, 2013), e o 401 da V Jornada, transcrito abaixo:

“401 – Art. 13: não contraria os bons costumes a cessão gratuita de direitos de uso de material biológico para fins de pesquisa científica, desde que a manifestação de vontade tenha sido livre, esclarecida e puder ser revogada a qualquer tempo, conforme as normas éticas que regem a pesquisa científica e o respeito aos direitos fundamentais” (JÚNIOR, R. R. A., 2012, P. 60).

A possibilidade jurídica de realização da cirurgia de circuncisão também é tópico que vem suscitando debates. O procedimento, “na sua forma mais simples, (...) traduz-se no corte ou remoção, total ou parcial, do prepúcio (a pele que cobre a glande ou bálano)” (NEVES, 2014, P. 16), geralmente por motivos religiosos ou profiláticos, ganhando contornos mais polêmicos por ser habitual que pais submetam seus filhos ainda quando crianças à operação.

A discussão transborda os limites da integridade psicofísica e da autonomia privada existencial, ao passo que constitui frontal colisão de outros direitos fundamentais previstos na Constituição: o próprio direito à integridade física e o direito à liberdade de crença (artigo 5º, VI).

O sopesamento, consagrado método para a resolução de conflitos de princípios, que culminará na precedência condicionada, em expressão de Robert Alexy (JÚNIOR, D. D. C., 2012, P. 162), de um dos princípios, deverá levar em conta, no caso em questão, quatro aspectos fundamentais: a ausência, em regra, de efetivo prejuízo ao saudável desenvolvimento do circundado; a importância do procedimento para a concretização do sentimento de pertencimento religioso; a adequação social da prática e a impossibilidade de efetivo consentimento informado, quando estão envolvidos absolutamente incapazes.

Uma interpretação restritiva do artigo 13 poderia levar ao entendimento de que a circuncisão é ilícita, afinal, trata-se de diminuição permanente da integridade física sem, em regra, exigência médica, porém a análise da matéria deve ser conduzida sob o crivo constitucional, ponderando outros princípios enredados, conforme já expressado, além de não parecer provocar qualquer movimentação considerável na esfera jurídica nacional até então.

Diferente é a conjuntura na Alemanha, onde uma sentença de 2012 do Tribunal Regional de Colônia, baseada no artigo “Die strafrechtliche Relevanz der Beschneidung von Knaben: Zugleich ein Beitrag über die Grenzen der Einwilligung in Fällen der Personensorge”[3], de Holm Putzke (DEUTSCH TÜRKISCHE NACHRICHTEN, 2012), equiparou a circuncisão de um garoto de, à época do ocorrido, quatro anos de idade ao crime de lesão corporal, apesar de inocentar o médico, classificando a conduta como um “erro inevitável” (INSTITUTO HUMANITAS UNISONOS, 2012). Evidente é que se trata de um hard case por excelência.

Igualmente delicada é a situação dos portadores do transtorno de identidade de integridade corporal (TIIC), o “extremely rare phenomenon of persons who desire the amputation of one or more healthy limbs or who desire a paralysis” (MÜLLER, 2009), de origem controversa: já foi descrito como “a neurotic disorder, an obsessive-compulsion disorder, an identity disorder like transsexuality, or a neurological conflict between a person's anatomy and body image” (MÜLLER, 2009).

O transtorno é, ocasionalmente, associado à apotemnofilia, parafilia - termo que abrange “fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais intensos e recorrentes em resposta a objetos e situações incomuns” (LUCENA; ABDO, 2014, P. 42) - relacionada à amputação. O tratamento mediante amputação ainda não é reconhecido pela comunidade médica (MORAES, 2008, P. 376), além de a prática esbarrar nas outras duas condições previstas no artigo 13:  perenidade da diminuição da integridade física e adequação aos bons costumes.

Sobre a relevância jurídica da autolesão, Carlos Alberto Bittar aduz, em excerto datado de período onde o Código Civil de 1916 ainda vigia:

"(...) quanto à problemática da autolesão (mutilação voluntária), o ingresso no campo jurídico perfaz-se apenas quando em conexão com objetivo não permitido pelo ordenamento (assim, a realizada com intuito de fraudar terceiros, pessoa ou instituição, com que se vincule o interessado: isenção de serviço obrigatório, recebimento de seguro ou de prêmio), sujeitando o agente às sanções aplicáveis à espécie. Inexiste delito no ato em si, eis que, em nosso regime, o crime de lesões caracteriza-se pelo dano a outra pessoa" (2006, P. 80).

Ademais, também são práticas difundidas contemporaneamente e relacionadas ao direito à integridade psicofísica: a body art - utilização do corpo como “suporte da obra de arte” (SILVA, 2006) -, a body modification – “modificações corporais diversas de cunho, geralmente, artístico” (SILVA, 2006) - e a body suspension - “performances em que o artista é pendurado através de ganchos que perfuram sua pele” (SILVA, 2006) -, que poderiam ter sua licitude contestada em face da concepção tradicional dos bons costumes.

Outra problematização relevante envolve a abordagem legal do tema em si: segurança jurídica e adequabilidade ao caso concreto são características indispensáveis ao bom Direito, e convivem em relação de proporcionalidade inversa, onde é vital balanceá-las, já que a prevalência absoluta da primeira é o império do formalismo jurídico, inflexível mesmo perante injustiça explícita e de baixa capacidade de adaptação a novas situações (tão comuns no mundo pós-moderno); enquanto a prevalência absoluta da segunda é a imprevisibilidade total, a sujeição ao querer alheio não-legítimo e aleatório.

Logo, deve-se optar quanto à rigidez da regulamentação normativa, isto é, se a lei preverá critérios de alta ou baixa densidade normativa para prevenir e reprimir lesões ou se encaminhará à jurisprudência tal tarefa. No que se refere aos temperamentos da indisponibilidade do direito à integridade psicofísica, os ordenamentos jurídicos alienígenas tendem à última alternativa (privilégio da adequabilidade ao caso concreto), ao contrário de Brasil e Itália, como já averiguado (privilégio – excessivo – da segurança jurídica).

Os critérios selecionados pelo legislador nacional são, notavelmente, insatisfatórios: a irrestrita disponibilidade do próprio corpo em virtude de exigência médica é temerária, à medida que concede permissão a um sistema não-jurídico para deliberar sobre a licitude de condutas humanas; a proibição de qualquer diminuição permanente da integridade física não açambarcada pela exceção supracitada é rígida em demasia, perceptivelmente, à luz do cenário dos portadores do transtorno de identidade de integridade corporal; por fim, a menção aos “bons costumes” é anacrônica e, mesmo que reconceituada sob ótica constitucional como o conjunto de valores compartilhados que sobrepõem-se a limites setoriais, a uma moralidade privada, mesmo que majoritária (DALSENTER; MORAES, 2009, P. 118), a expressão não mais deveria ser utilizada com função proibitiva, mas permissiva.

Em semelhante diapasão, assinala Anderson Schreiber:

"Três críticas importantes têm sido dirigidas ao dispositivo. (...) (i) Primeiro, ao autorizar qualquer disposição do próprio corpo por ‘exigência médica’, o art. 13 parece elevar a recomendação clínica a um patamar superior a qualquer avaliação ética ou jurídica; (ii) segundo, ao vedar a disposição do próprio corpo que importe 'diminuição permanente da integridade física', o art. 13 sugere, a contrario sensu, que estariam autorizadas reduções não permanentes, o que se mostra extremamente perigoso; (iii) terceiro, o art. 13 alude à noção de 'bons costumes', ideia vaga e imprecisa, que pode causar sérias dificuldades em um terreno que sofre decisiva influência de inovações tecnológicas e científicas" (2013, P. 34).

5. Considerações finais

Os direitos da personalidade, assim como todo o Direito, estão sujeitos ao movimento dialético de eternos transformação e aperfeiçoamento, que tem como força motriz a realidade vigente, os fatos que a compõe e a gama de valores que os justificam, fatores que, igualmente, estão sujeitos a vicissitudes temporais, espaciais e morais.

Do fim do século XIX, origem remota de tais direitos, até a contemporaneidade, muitos aspectos da doutrina tradicional foram questionados, a exemplo da concepção do direito à integridade psicofísica, nascido não de mero ecletismo entre os direitos à integridade física e psíquica, mas da percepção de que a tutela dissociada é insuficiente em face a situações concretas porque os corpos material e mental estão, inexoravelmente, em constante estado de influência recíproca.

Sujeitos a mudanças também estiveram os atributos dos direitos da personalidade, que, muito em decorrência da gradativa constitucionalização do direito civil, passaram por um processo de relativização, evidenciado pelo abrandecimento da propriedade “indisponibilidade”, especialmente, em relação ao direito à integridade (psico)física, como prevê o artigo 13 do Código Civil brasileiro, utilizando os critérios exigência médica (permissivo absoluto), bons costumes e perenidade (proibitivos).

O absolutismo do critério médico, a falta de utilidade ou o desserviço prestado pelo critério dos bons costumes e a rigidez excessiva do critério temporal tornam imprescindível uma reformulação dos parâmetros de mitigação da indisponibilidade do direito à integridade psicofísica, a fim de, mesmo através de critérios mais vagos, ou seja, a despeito de eventual prejuízo à segurança jurídica, dotá-los de maior adequabilidade às situações concretas.

Faz-se mister, no caso nacional, além do reconhecimento da tutela conjunta da incolumidade de corpo e mente, a restauração do equilíbrio entre a autonomia privada existencial e a indisponibilidade relativa do direito à integridade psicofísica, porquanto ambas são, equitativamente, fundamentais para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, sob a égide do qual se encontra o ordenamento jurídico pátrio, à medida que a primeira fornece ao indivíduo autonomia e discricionariedade, ao permiti-lo fazer o que entende por bom uso de seu corpo e mente, para perseguir seus objetivos e se realizar como ser humano e a segunda impede que o próprio indivíduo ou terceiro com sua aquiescência o prive das condições necessárias para a uma existência digna.

Tal restauração passa pela sincronização da esfera cível com os valores constitucionais, a constitucionalização do direito civil, processo que envolve uma hermenêutica que, ao ser aplicada, visa a eliminar dissonâncias da legislação inferior com a Lei Maior. Porém, manobras interpretativas nem sempre são bastantes, a menção do artigo 13 do Código Civil aos bons costumes, por exemplo, em seu sentido arcaico, vai de encontro ao plano axiológico constitucional, e, quando redefinida, esvazia-se de qualquer função prática, sendo, portanto, prejudicial ou inútil ao ordenamento jurídico.

Para além da constitucionalização do direito civil, sobeja o paliativo jurisprudencial na hercúlea tarefa de amenizar os potenciais efeitos nocivos da tutela atual do direito à integridade psicofísica, enquanto os critérios previstos no artigo 13, CC/02 não forem verdadeiramente harmonizados com a Constituição e os corpos material e mental ainda forem vistos como desagregáveis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. 2005. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/neoconstitucionalismo_e_constitucionalizacao_do_direito_pt.pdf>. Acesso em: 01/07/2015.

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CLOTET, Joaquim. O consentimento informado nos comitês de ética em pesquisa e na prática médica: conceituação, origens e atualidade. Revista Bioética, vol. 3, n. 1, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 2009. Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/430/498>. Acesso em: 19/05/2015.

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[1] É conveniente invocar a legislação penal específica (lei n. 9.455/97), que define tortura em seu artigo 1º, incisos I e II, como “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental” e “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.

[2] Em tradução livre: “os atos de disposição do próprio corpo são vedados quando ocasionem uma diminuição permanente da integridade física, ou quando são de outro modo contrários à lei, à ordem pública ou aos bons costumes”.

[3] Em tradução livre: “A relevância criminal da circuncisão de garotos: paralelamente, uma contribuição para além dos limites do consentimento em casos de custódia”.

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