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A boa-fé objetiva nas relações contratuais de consumo

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Agenda 01/05/2003 às 00:00

4. O abuso de direito como implicação da inobservância da boa-fé

Não obstante constituir matéria de vasta amplitude, suficiente para a exposição de um tema à parte, não haveria como se falar em princípio da boa-fé nas relações contratuais de consumo sem sequer tecer alguns comentários, ainda que sucintos, do abuso de direito. Conforme mencionado no tópico anterior, o princípio da boa-fé está intimamente ligado à figura do abuso de direito, na medida em que se torna parâmetro para a verificação da regularidade ou não do exercício de direitos subjetivos. De fato, conforme nos ensina Luiz Antônio Rizzato Nunes (2000, p.108):

Já a boa-fé objetiva, que é a que está presente no CDC, pode ser definida, grosso modo, como uma regra de conduta, isto é, o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo. Não o equilíbrio econômico, como pretendem alguns, mas o equilíbrio das posições contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, como regra, há um desequilíbrio de forças. Entretanto, para chegar a um equilíbrio real, somente com a análise global do contrato, de uma cláusula em relação às demais, pois o que pode ser abusivo ou exagerado para um não o será para o outro. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva do fornecedor ou mesmo do consumidor. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa a garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes.

Luiz Guilherme Loureiro (2002, p.85-89) nos traz um sucinto apanhado histórico acerca do tema. Ensina o autor que, apesar de não constituir entendimento unânime, resquícios do abuso de direito são encontrados em Roma, onde já se reconheciam limitações ao exercício de direitos subjetivos, tais como a proteção contra a fraude, a do filho em relação ao pai ou mesmo do escravo em relação ao amo. Contudo, esse reconhecimento era disperso, aplicável caso a caso com fundamento na equidade, não reunindo elementos suficientes para a configuração de uma teoria.

Na Idade Média podem ser vislumbrados dois momentos distintos: o dos atos de emulação e o dos atos de imissão. Nos primeiros, reconhecia-se como prejudicial o fato de um titular de direitos os exercer com o dolo de prejudicar alguém. A influência ético-religiosa do cristianismo terminou por tornar tal conduta reprovável, restando clara, porém, a presença de seus elementos puramente subjetivos, posto que o que se levava em consideração era a vontade do agente em prejudicar terceiros através do exercício abusivo de seu direito. Já na teoria das imissões valorizou-se objetivamente o resultado da ação, retratando um contexto de freqüentes contaminações ambientais em face do desenvolvimento industrial da época.

É da jurisprudência francesa, contudo, o mérito de abrigar em suas decisões os elementos necessários à construção da teoria do abuso de direito. Através da supervalorização dos ideais revolucionários franceses, a autonomia da vontade reinou em absoluto durante muito tempo. Contudo, o desenvolvimento da indústria e o surgimento de uma sociedade de classes trouxeram a necessidade de adequação das leis aos reclames sociais, o que ocorreu progressivamente nos Tribunais da França, terminando por reunir os elementos constitutivos da teoria do abuso de direito (Loureiro, 2002, p.85-89).

Portanto, conclui-se que, na fase de execução do contrato, ou seja, no momento em que é dado às partes exercer as prerrogativas e deveres obrigacionais decorrentes da relação contratual estabelecida, o direito de um não pode imiscuir-se na esfera individual do outro, causando-lhes prejuízo. A ausência de observância ao princípio da boa-fé é objetivamente caracterizada pela lesão causada a outrem por desatenção aos fins sociais estabelecidos, servindo a verificação de dolo ou culpa como critérios de convencimento do juiz. Há quem entenda que o pronunciamento judicial deve estar vinculado unicamente ao elemento subjetivo daquele que lesionou, havendo também as teorias defensoras de que a simples verificação do dano cria a obrigação de indenizar, restando, por fim, aquelas que utilizam um critério misto, combinando a verificação do prejuízo com a intenção do agente.

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Optamos pela necessidade e legitimidade de ser cobrada dos contratantes a observância do dogma da boa-fé objetiva, entendida como regra de conduta a ser observada pelo homem comum, naquelas determinadas circunstâncias, sempre tendo em vista a natureza do contrato e a expectativa dos resultados que foi criada nas partes como decorrência da celebração do mesmo. Compartilhamos ainda da idéia de que a previsão de regras abertas no Código de Defesa do Consumidor, desde que não utilizadas com discricionariedade em grau prejudicial, constitui um avanço do Direito, permitindo que o juiz, atrelado aos princípios informadores das relações contratuais de consumo, os aplique ao caso concreto e proporcione um equilíbrio entre as partes.


5. Previsão da boa-fé objetiva também no novo Código Civil

Retratando a conjuntura do nosso Código Civil de 1916, afirma Antonio Junqueira de Azevedo, citado por Alinne Novais (2001, p.76):

Em assuntos específicos, como o contrato de seguro, contrato de sociedade (art. 1.404), aquisição a non domino (art. 622), pagamento indevido (art. 968), posse (art.490 e ss.), usucapião (art. 550 e ss.), construção e plantação (art. 546 e ss.), dívida de jogo (art. 1.477), etc., o próprio Código Civil prevê a boa-fé para certas conseqüências jurídicas. Trata-se, porém, em todos esses casos, salvo os dois primeiros (seguro e sociedade), da chamada boa-fé subjetiva, isto é, aquele estado interior ou psicológico relativo ao conhecimento, ou desconhecimento, e à intenção, ou falta de intenção, de alguém.

Adverte o doutor Edilson Pereira Nobre Júnior (p.7-8), entretanto, para a necessidade de visualização do contexto sócio-econômico-político (sociedade predominantemente agrária e escravista) em que foi gerado o Código Civil de 1916, privilegiando a autonomia da vontade e não comportando a concepção da boa-fé como cláusula geral. Afirma o professor que a esse respeito não houve omissão, por parte do legislador da época, posto que em diversos dispositivos do nosso Código vislumbra-se menção à boa-fé, seja em sua concepção subjetiva ou objetiva. Ademais – prossegue - a ausência de uma cláusula geral expressa não impediria a interpretação que hoje temos do dogma, seja com base em alguns de seus artigos (são citados os artigos 85 e 1.443 do Código de 1916) ou mesmo a sua construção através das peculiaridades do caso concreto. Como exemplo, aduz que tivemos na jurisprudência pátria, embora escassos, alguns brilhantes e inovadores julgamentos a esse respeito (um deles, inclusive, mencionado no item 3 do presente trabalho).

O novo Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002), prevê, em seu artigo 113, que "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". Prossegue, em seu artigo 187: "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes" e explicita ainda, no artigo 422, que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

A doutrina e jurisprudência já vinham reclamando a necessidade de previsão e aplicação da boa-fé objetiva aos contratos, pois, conforme foi visto, o Estado Social em que estamos inseridos não mais comporta uma concepção subjetivista do dogma da boa-fé contratual. Apesar de o novo código apresentar projeto datado de 1975, portanto anterior mesmo ao Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990, com projetos datados de 1988 e primeira publicação em 1989), teve este último tramitação legislativa mais célere, antecipando-se quanto à previsão da boa-fé objetiva no que tange às relações de consumo. No entanto, participamos da idéia de que o advento do novo Código Civil ampliará o âmbito de atuação de tal princípio, igualmente aplicando-o às demais espécies contratuais, posto que considerado regra geral para todos os contratos. Tal se apresenta de fundamental importância para a garantia da honestidade e lealdade na participação de tais negócios jurídicos, permitindo uma condição mais equânime de forças na hora de contratar e fortalecendo o efetivo exercício da autonomia da vontade, através da relativização desta por princípios como o da boa-fé objetiva. Assim, proporciona-se de maneira mais eficaz o equilíbrio que deve estar presente nas relações jurídicas tuteladas pelo Estado, ampliando-se a sua esfera de atuação, agora não mais restrita apenas ao âmbito do Direito do Consumidor.


6. A boa-fé como dogma relativizador da autonomia da vontade

A civilização industrial fomentou a existência de diferenças sociais e econômicas e trouxe consigo a produção e o consumo em massa, em que não mais é conferida ao consumidor a prerrogativa de discussão individual de todas as cláusulas consumeristas, de modo a melhor adequar-se à situação concreta de cada caso. Entretanto, apesar de todo esse desenvolvimento tecnológico, inclusive dos meios de comunicação, muitas lesões foram verificadas nas relações de consumo, tendo em vista o desequilíbrio de forças existente entre as partes.

Foi nesse contexto que foi promulgada no Brasil a Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), assegurando proteção ao consumidor através da presunção de vulnerabilidade deste nas relações consumeristas e de relativização dos dogmas como a autonomia da vontade e o brocardo segundo o qual o contrato faz lei entre as partes, que sempre informaram o Direito contratual de modo absoluto, mas que agora encontram limites em princípios tais como o da boa-fé, evoluída de seu conceito clássico subjetivo para uma concepção objetiva, aplicável a todas as etapas dos contratos, inclusive em seu momento posterior. Transforma-se a parte social, intelectual e economicamente mais fraca em juridicamente mais forte.

Dito de outra forma, os elementos sociais passaram a integrar a preocupação do Estado, que passou a intervir nas relações contratuais de consumo (dirigismo contratual) e retirou da autonomia da vontade o status de fonte única da obrigação. Esta não mais é tida como dogma absoluto e o conhecido princípio do pacta sunt servanda também encontrou no CDC a sua relativização, através de dogmas como o da boa-fé objetiva (artigos 4º, III e 51, IV do CDC e artigos 113, 187 e 422 do novo Código Civil) e da função social dos contratos (artigo 421 do novo Código Civil), posto que condicionado às diretrizes destes e aos fins do Estado Social de Direito.


7. Referências bibliográficas

CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. A informação como bem de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Ano 11, n 41. p. 253-262, jan. / mar. 2002.

FARIAS, Cristiano Chaves. A proteção do consumidor na era da globalização. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Ano 11, n 41. p. 81-95, jan. / mar. 2002.

GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria Geral dos Contratos no Novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2002.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo Código Civil. Aula inaugural ministrada no curso de preparação à carreira do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, promovida pela Fundação Escola Superior do Ministério Público – FESMP/RN e disponibilizada pelo ilustre professor aos alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.

NOVAIS, Alinne Arquette Leite. A teoria Contratual e o Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

NUNES, Luiz Antônio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000.

Sobre a autora
Beatriz Azevedo de Oliveira

Advogada, Coordenadora Jurídica do Ministério Público Junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Beatriz Azevedo. A boa-fé objetiva nas relações contratuais de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4067. Acesso em: 23 dez. 2024.

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