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A boa-fé objetiva nas relações contratuais de consumo

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01/05/2003 às 00:00
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Sumário:1. A necessidade de tutela pelo Estado das relações contratuais de consumo. 2. O dogma da autonomia da vontade: sua evolução e importância para a compreensão da concepção atual da boa-fé. 3. O dogma da boa-fé e a sua aplicação em todas as fases contratuais. 4. O abuso de direito como implicação da inobservância da boa-fé. 5. Previsão da boa-fé objetiva também no Novo Código Civil. 6. A boa-fé como dogma relativizador da autonomia da vontade. 7. Referências bibliográficas.


1. A necessidade de tutela pelo Estado das relações contratuais de consumo

Dito de uma forma geral, o CDC veio a sagrar princípios que visam a concretizar três importantes diretrizes: a) a socialidade, em que o individualismo clássico dá vez à função social do contrato; b) a efetividade, procurando transformar o Direito em instrumento eficaz de realização da Justiça; e c) a reticidade, através da qual se exige a boa-fé objetiva desde a oferta ou promessa de contratação até a fase posterior à execução do contrato.

O Estado de Direito em que vivemos, com as garantias constitucionais já alcançadas, não mais comporta a simples igualdade formal entre os indivíduos, requerendo do Estado intervenção para assegurar que interesses particulares não se sobreponham a interesses sociais, buscando sempre a concretização de uma igualdade dita material nas relações firmadas entre os seus cidadãos. Torna-se necessário, portanto, estabelecer um equilíbrio entre a liberdade individual e o bem estar coletivo, seja no âmbito do Direito Público ou do Direito Privado.

A Revolução Industrial incentivou a formação de classes, tornando a doutrina de fins do século XIX mais preocupada com os novos problemas sociais. Nesse contexto, surgiu no Brasil a primeira manifestação significativa da intervenção estatal nas relações privadas - o Direito do Trabalho - juntamente com os ideais pregados pela Igreja Católica de que o Estado deve zelar pelo bem estar social, deixando de lado a moral individual do liberalismo selvagem.

Já na era globalizada e capitalista em que estamos inseridos, as relações de consumo são uma constante. Riquezas são produzidas sistematicamente e em grande quantidade, socialmente valoradas e desfrutadas por uma sociedade de consumo, em clara demonstração de que a individualização que por tempos caracterizou as relações contratuais já não mais se aplica aos contratos da sociedade hodierna. Prima-se por uma circulação cada vez mais célere dos bens e serviços, de modo a atender de forma eficaz às necessidades de quem os usufrui. Para tanto, a informalidade e liberdade de escolher o que, como e com quem contratar permanecem fundamentais para o bom desenvolvimento dessas relações, desde que assegurado às partes um equilíbrio contratual que as proteja da condição de vulnerabilidade e hipossuficiência natural e no mais das vezes presente nas relações humanas.

No afã de assegurar esse equilíbrio nos contratos é que ganha alento o denominado dirigismo contratual, em que o Estado Social de Direito intervém nessas relações, seja por meio da atividade legislativa de normas de consumo, e o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (CDC) é um exemplo disso, seja através do Poder Executivo, implementando-as, e ainda do controle judicial exercido na aplicação de tais normas ao caso concreto.

Dada a amplitude dos princípios que informam as diretrizes contratuais, canalizamos o nosso raciocínio para uma abordagem acerca do princípio da boa-fé nas relações de consumo e da importância de seu reconhecimento pelo CDC. Tendo em vista que os contratos são, em regra, aperfeiçoados pelo acordo de vontades entre as suas partes, antes de tudo importante se faz um breve estudo acerca da evolução das acepções da autonomia da vontade, sustentáculo contratual do século XIX, para só então abordar a sua atual relativização por dogmas como o da boa-fé.


2. O dogma da autonomia da vontade: sua evolução e importância para a compreensão da concepção atual da boa-fé

Sem a pretensão de atribuir conceito definitivo e preciso ao contrato, podemos dizer que ele se apresenta como negócio jurídico firmado através do consenso entre as partes para alcançar determinado fim, fixando prestações e contraprestações mútuas, podendo criar, extinguir ou modificar direitos e obrigações. Como instrumento jurídico das relações econômicas, é reflexo do contexto social vivenciado em cada época, adequando-se às necessidades de sua sociedade e economia. Fundado essencialmente no acordo de vontades, ganha importância o dogma da autonomia da vontade ou, como preferem alguns, da autonomia privada - havendo, inclusive, quem não os utilize como sinônimos (Novais, 2001, p.40-42), discussão que aqui, especificamente, não nos interessa.

Em uma breve abordagem histórica acerca do tema, nos ensina a doutora Cláudia Lima Marques (1999, p.40-41) que o Direito Canônico teve importante contribuição para a formação do dogma da autonomia da vontade, base fundamental do Direito Contratual, ao atribuir validade e exigir o cumprimento das promessas em si mesmas, a partir das quais surgiriam as obrigações. Tinha o fundamento moral de que criavam expectativas de condutas e que, portanto, deveriam ser cumpridas. A doutrina do direito natural, por sua vez, atribuiu ao elemento da razão humana a condição de alicerce do Direito, considerando-a como base de validade das manifestações individuais da vontade.

Foi na vigência do Estado liberal clássico (século XIX), contudo, que o princípio da autonomia da vontade alcançou o seu apogeu. Fruto dos ideais pós-revolucionários franceses, teve por objetivo excluir os contratos do âmbito de intervenção estatal, de modo a garantir a liberdade de contratar e fazer circular riquezas da forma que melhor conviesse aos participantes de tal relação jurídica. Assegurava-se, assim, a liberdade quanto à forma, objeto e partes do contrato, através da existência entre elas de uma igualdade perante a lei (igualdade formal), e atribuía-se relevante importância à autonomia da vontade, em clara demonstração das necessidades sociais da época.

A evolução para a sociedade industrializada ultrapassou essa concepção clássica do contrato, tendo em vista tratar-se de uma sociedade massificada de consumo, cada vez mais impessoal e conseqüentemente não mais comportando a visão individualista que predominou no liberalismo. Mais do que a liberdade de contratar, fez-se necessário a tutela do Direito para que fosse assegurada às partes uma igualdade material nas relações de consumo, sendo fundamental a intervenção do Estado Social na garantia de respeito à dignidade da pessoa humana, de equilíbrio e de observância à boa-fé e à função social do contrato. Daí a socialidade do Direito atual.

Clara foi a preocupação do legislador constituinte em conferir proteção à pessoa do consumidor, determinando, em seu art. 5º, XXXII, que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" e, ainda, no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): "O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará o Código de Defesa do Consumidor". Foi nesse contexto, portanto, que surgiu no Brasil o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990, com projetos datados de 1988 e primeira publicação em 1989), como um micro-sistema normativo de direitos de terceira geração (Novais, 2001, p.70), protegendo especialmente as partes mais fracas nas relações consumeristas, presumindo-se a vulnerabilidade do consumidor. Nesse sentido, nos esclarece Alinne Arquette Leite Novais (2001, p.70), citando o professor Paulo Luiz Neto Lobo:

O Estado liberal assegurou os direitos do homem de primeira geração, especialmente a liberdade, a vida e a propriedade individual. O Estado social foi impulsionado pelos movimentos populares que postulam muito mais que a liberdade e a igualdade formais, passando a assegurar os direitos do homem de segunda geração, ou seja, os direitos sociais. Todavia, ainda segundo este ilustre jurista brasileiro, o maior golpe, contra o modelo liberal do contrato, foi desferido quando entrou em cena os direitos de terceira geração, de natureza transindividuais, protegendo-se interesses que ultrapassa (sic) os dos figurantes concretos da relação negocial, ditos difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Como exemplo mais significativo dos chamados direitos de terceira geração, e que mais avança nesta área, temos a experiência dos direitos do consumidor.

Portanto, com o desenvolvimento e a massificação das relações contratuais de consumo, surgiu a necessidade de tutela, pelo Estado social, desses direitos fundamentais ditos de terceira geração, de modo a adequar a realidade fática à nova teoria contratual, que não mais comporta aquela concepção clássica de supremacia da autonomia da vontade, hoje relativizada pela boa-fé objetiva.


3. O dogma da boa-fé e a sua aplicação em todas as fases contratuais

A história da boa-fé tem raízes no Direito Romano e inicia-se com a sua previsão no Código Civil Francês de 1804 como noção fundamental do Direito dos contratos, o que não se seguiu com os juristas da geração seguinte, posto que havia o reconhecimento da autonomia da vontade como dogma absoluto e também pelo receio da arbitrariedade do juiz. Por longo tempo evitou-se a inclusão nos textos legais de expressões como a da boa-fé, tidas como vagas e imprecisas. Essa orientação mudou com o desenvolvimento do mercado internacional e a necessidade de proteger a parte mais frágil do contrato (Loureiro, p.62-64).

Foi no Direito Germânico que tivemos a inovação de previsão do princípio da boa-fé objetiva, como hoje a concebemos (Novais, 2001, p.74). Segundo a autora, a boa-fé na Alemanha atingiu o status de princípio geral e absoluto, aplicável a todas as relações obrigacionais, em especial com a inovação trazida pelo parágrafo 242 Código Civil Alemão (BGB), que assim dispõe: "o devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego". Sobre a aplicação do dogma em comento no Direito Comparado, inclusive na jurisprudência alemã, ver exemplos e obra de Judith Martins-Costa (1999, p.413-427).

No Brasil, muito antes da promulgação do Código Civil de 1916, já havia a previsão legal da boa-fé no âmbito das relações contratuais. Trata-se do artigo 131 do Código Comercial (Lei nº 556 de 25 de junho de 1850), o qual determina que na interpretação das cláusulas contratuais a inteligência simples e adequada da boa-fé e do verdadeiro espírito e natureza do contrato terá preponderância em relação à restrita e rigorosa significação das palavras. Todavia, segundo Alinne Novais (2001, p.77) citando Ruy Rosado de Aguiar Júnior, tal dispositivo "permaneceu letra morta por falta de inspiração da doutrina e nenhuma aplicação nos tribunais". No Código Civil de 1916 prevaleceu a concepção subjetiva do dogma da boa-fé, o que não ocorreu ao nosso novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002), que a previu objetivamente em alguns de seus artigos, como teremos oportunidade de melhor discorrer adiante.

Pois bem. Sabemos que os contratos, como forma de circulação de bens e serviços, estão presentes nas mais diversas situações do nosso cotidiano. Vimos que a convivência em uma sociedade industrializada importa necessariamente na existência de diferenças sociais, sendo imprescindível a tutela do Estado na busca da equidade e da concretização de justiça. Para tanto, prima-se por uma relativização da autonomia individual da vontade, de modo a evitar que interesses particulares sobreponham-se aos interesses sociais. Essa constitui uma das diretrizes adotadas pelo Código Brasileiro de Direito do Consumidor, expressa, no mínimo, pela exigência de aplicação do princípio da boa-fé em todas as fases do contrato. Nesse sentido, preceitua o artigo 4º do CDC:

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Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos aos seguintes princípios:

(…)

III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. (grifo extra)

Por boa-fé entende-se a honestidade, a transparência, a lealdade e a expectativa de que as partes ajam de acordo com os fins a que se destina o contrato, tendo em vista não apenas a constatação por uma delas de que está agindo consoante o seu próprio direito, mas a verificação de que não está adentrando a esfera de direitos de outrem. Fundamental, portanto, a observância de um parâmetro de conduta a seguido, conforme a expectativa criada nos contraentes. Ainda, conforme visto acima, o princípio da boa-fé (estampado no artigo 4º do CDC), ao mesmo tempo em que confere proteção ao consumidor, visa a assegurar a concretização dos ditames constitucionais de desenvolvimento da ordem econômica.

A concepção clássica de boa-fé limita-se a alcançar a intenção do contraente no momento da celebração do contrato (boa-fé subjetiva). A sua previsão no Código de Defesa do Consumidor, contudo, trouxe a inovação de observância da probidade nos atos contratuais não mais como elemento subjetivo, mas como arquétipo de conduta a ser seguido, levando-se em consideração as expectativas criadas no âmbito de direitos das partes contraentes e terceiros interessados (boa-fé objetiva), devendo ser verificada não apenas no momento mesmo de contratar, como também durante as fases de oferta e execução do contrato. Judith Martins-Costa (1999, p.411-412) explicita de forma didática os traços que distinguem e caracterizam essas duas concepções do princípio da boa-fé (a subjetiva e a objetiva):

A expressão "boa-fé subjetiva" denota "estado de consciência", ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito (sendo) aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se "subjetiva" justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar outrem. Já por "boa-fé objetiva" se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação do parágrafo 242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo.

Um indivíduo economicamente desprivilegiado pode ver-se obrigado, por estado de necessidade ou monopólio de determinada empresa em relação ao produto ou serviço por ele desejado, por exemplo, a sujeitar-se a contraprestações abusivas, mesmo que a intenção do contraente economicamente mais forte não fosse a de prejudicá-lo. Em situação hipotética como a mencionada, a concepção que se vinha adotando da boa-fé não traria um julgamento satisfatório ao caso, de modo a manter o equilíbrio contratual. De fato, ter-se-ia em consideração apenas o seu caráter puramente subjetivo: uma simples constatação de inexistência da má-fé por parte do contraente privilegiado (a sua não intenção em prejudicar aquele com quem contratou), dele não se exigindo a devida observância às regras de conduta impostas, aos interesses e finalidades a que visaram ambas as partes (boa-fé objetiva, como standard jurídico) no momento do acordo de vontades.

Importante lembrar que o Código de Defesa do Consumidor trouxe a previsão de cláusulas abertas, que proporcionam ao juiz uma melhor possibilidade de aplicação ao caso concreto dos princípios que informam as relações contratuais de consumo. Permitem que ele constate em cada situação se a contratação e seus atos posteriores deram-se de forma transparente, leal, digna de não causar prejuízos a outrem. De fato, a boa-fé tem como parâmetro a expectativa de conduta do homem médio e, segundo Cláudia Lima Marques (1999, p.106), exerce dupla função na formação das obrigações, quais sejam: a) a de fonte de novos deveres e b) a de limitação do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos. Como bem ensina Luiz Guilherme Loureiro (2000, p.68):

(…) a boa-fé tem por função ajudar na interpretação do contrato (adjuvandi); suprir algumas falhas do pacto, vale dizer, acrescentar o que nele não está escrito (supplendi) e eventualmente corrigir alguma coisa que é de direito no sentido de justo (corrigendi).

Portanto, além daquelas duas funções acima mencionadas (criação de novos deveres e limitação ao exercício abusivo de direitos subjetivos), acrescente-se a função integradora e interpretativa do dogma da boa-fé, permitindo ao magistrado uma função menos subsuntiva e, por que não dizer, criadora do Direito. E, ainda, de forma conclusiva, pode-se dizer, acerca da ampla atuação do princípio em questão, que a sua funcionalidade abrange: a) norma ordenadora de condutas e, portanto, limite ao exercício de direitos subjetivos; b) critério informador de vários institutos jurídicos; c) técnica de interpretação; d) diretriz instituidora de deveres particulares de comportamento (Nobre Júnior, p.7).

Passíveis de anulação são aquelas cláusulas tidas como abusivas, dentre as quais encontram-se aquelas que não obedecem ao dogma da boa-fé. De tal modo, a violação dos deveres decorrentes da sua efetiva aplicação "é capaz de ensejar a invalidade de todo, ou de parcela do negócio jurídico, sem excluir o cabimento de indenização, em caso de dano comprovado" (Nobre Júnior, p.12). O seguinte tratamento é conferido ao assunto pelo CDC:

Art.51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento dos produtos e serviços que:

(…)

IV- estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.

Conforme dito anteriormente, na aplicação do Direito hodierno o princípio da boa-fé deve ser observado em todas as etapas do contrato. No que diz respeito à sua fase pré-contratual, há um dever de apresentação da situação fática real, através do fornecimento das informações necessárias para que a outra parte manifeste o seu consentimento. Cite-se como exemplo panfletos de propaganda de venda de algum bem, levando a crer que os acessórios estão incluídos no preço ofertado, sem que de fato estejam, influenciando de forma decisiva a aceitação da outra parte em integrar a relação jurídica contratual de consumo. È necessário, pois, que as partes submetam-se às regras de conduta da retidão e lealdade, de modo a observar se não estão ferindo a esfera de direitos de outrem, as suas expectativas quanto à natureza e as finalidades do contrato.

Atente-se para a importância crescente da informação na atual sociedade de consumo, na medida em que cada vez mais a discussão individual quanto à escolha da forma e conteúdo do contrato, além das partes com quem contratar, dá lugar a relações massificadas, em que a informação é transmitida através de sua divulgação pelos meios de comunicação de massa, destinada a um público alvo que pode ser determinado, porém de modo impessoal. Nesse sentido, compartilhamos com o entendimento abaixo transcrito de Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (2002, p.255):

Enquanto a informação circulava lentamente, enquanto a informação não ocupava tanto os fazeres do homem, enquanto a informação quase nada alterava o curso normal da vida em sociedade, enquanto a informação era recebida por pequena parcela da população, enfim, enquanto a informação não era determinante para traçar o rumo da vida em sociedade, era natural que a doutrina não se preocupasse mesmo com o seu aspecto jurídico. Na medida em que o avanço tecnológico permite uma inacreditável rapidez na sua circulação, ao mesmo tempo em que massifica a sua divulgação, a informação passa a ter uma relevância jurídica antes não reconhecida. O progresso tecnológico transformou a informação em um bem jurídico capaz não só de satisfazer a necessidade do saber, como de influir decisivamente no seu uso.

Julgamento relevante e que traduz a necessidade da boa-fé demonstrada no dever de informação foi a decisão proferida no tribunal de Québec, citada e traduzida por Loureiro (2002, p.72):

A aparição da obrigação de informação é relativa a um certo equilíbrio no âmbito do direito civil. Ainda que anteriormente se deixasse para cada parte a incumbência de se informar antes de agir, o direito civil está atualmente mais atento às desigualdades das partes em matéria de informações, o que impõe uma obrigação positiva de informação no caso onde uma das partes se encontra em posição vulnerável, onde os danos podem se seguir. A obrigação de informação e o dever de não falsear informações podem ser concebidos como duas faces de uma mesma moeda.

Portanto, o que se pretende com a previsão de observância da boa-fé nas relações pré-contratuais é evitar que haja prejuízo pelo não cumprimento das expectativas criadas pelas partes e que passaram a influenciar de alguma forma a razão e o modo de agir delas. Há a necessidade de se proteger a parte que eventualmente se prejudicou pela falta das informações pertinentes e necessárias ao seu convencimento quanto à aceitação ou não do contrato. Além da proteção quanto à informação, tutela-se ainda nessa fase preliminar as promessas de contrato, quando verificado qualquer prejuízo decorrente das expectativas formadas na esfera de direitos de outrem. Nesse sentido, pertinente a referência ao "caso dos tomates", citado por Judith Martins-Costa (1999, p.473):

Contrato. Tratativas. Culpa in contrahendo. Responsabilidade civil. Responsabilidade da empresa alimentícia, industrializadora de tomates, que distribui sementes, no tempo do plantio, e então manifesta a intenção de adquirir o produto, mas depois resolve, por sua conveniência, não mais industrializá-la naquele ano, assim causando o prejuízo do agricultor, que sofre a frustração da expectativa da venda da safra, uma vez que o produto ficou sem possibilidade de colocação. Provimento, em parte, do apelo, para reduzir a indenização à metade da produção, pois uma parte da colheita foi absorvida por empresa congênere, às instâncias da ré. Voto vencido, julgando improcedente a ação.

Explica a autora que a decisão acima transcrita foi proferida em grau de apelação no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A ação foi inicialmente intentada por um agricultor do município de Canguçu, Rio Grande do Sul, que costumava plantar sementes de tomate que recebia da Companhia Industrial de Conservas Alimentícias - Cica, a qual adquiria a sua produção para posterior industrialização. Ocorre que na safra de 1987/1988, dita empresa não quis adquirir a sua produção, alegando que não assumira qualquer compromisso e que naquele ano não exerceria a atividade de industrialização de tomates, por motivo de mudança na sua política industrial. A questão foi julgada procedente em primeira instância e resolvida em segundo grau de jurisdição, sob o fundamento de que a Cica não foi diligente, não observou a boa-fé e a expectativa de celebração do negócio jurídico que suscitou na outra parte, causando-lhe prejuízos. Contudo, atente-se para a escassez, na época, de julgamentos como o citado, no entanto ressaltando que os mesmos "bem evidenciaram a necessidade de que as partes, em suas relações negociais, deviam obrar de conformidade com a boa-fé" (Nobre Júnior, p.8).

Em um segundo momento, o da celebração mesma do contrato, permanece o dever de informação e transmissão das circunstâncias pertinentes a cada caso. Mais do que isso, exige-se agora que prestação e contraprestação mantenham um razoável equilíbrio, de modo a evitar qualquer conduta dolosa que produza vício na manifestação da vontade da outra parte. A redação em fontes pequenas, por exemplo, de cláusulas abusivas ou leoninas contidas nos contratos de adesão pode pôr em cheque a boa-fé do contratante, cabendo ao juiz, entretanto, verificar de igual modo se foi observado pelo aderente o seu dever de diligência e cautela no momento em que externou a sua vontade de integrar a relação jurídica de consumo.

Já em fase de execução do contrato, o princípio da boa-fé confunde-se com a figura do abuso de direito, a ser tratado um pouco mais especificadamente no tópico seguinte. Podemos ainda dizer que o princípio ora mencionado faz-se igualmente presente até mesmo após a extinção do contrato, quando se impõe às partes o dever de reserva e sigilo quanto às informações adquiridas no curso da relação contratual e que são aptas a causar lesão a outrem, caso reveladas. É a chamada responsabilidade pós-contratual ou post pactum finitum (Loureiro, 2002, p.71-77).

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Sobre a autora
Beatriz Azevedo de Oliveira

Advogada, Coordenadora Jurídica do Ministério Público Junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Beatriz Azevedo. A boa-fé objetiva nas relações contratuais de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4067. Acesso em: 2 nov. 2024.

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