CONCLUSÃO
É perceptível os reflexos que o advento de novos meios tecnológicos trazem para o mundo jurídico, na proporção que novas técnicas surgem para garantir uma maior precisão para a aferição da verdade fática da demanda posta em juízo. Desta feita, o direito como ciência social não pode se manter eqüidistante desta realidade, pois se assim procedesse estaria abrindo graves precedentes para o cometimento de iniqüidade na prestação da tutela jurisdicional.
O órgão judicante deve se valer dos meios probandis admitidos em lei para perseguir a verdade e, por fim, alcançar a justiça nas suas decisões. Todavia, existindo no processo o confronto entre a Segurança jurídica conferida pela imutabilidade da coisa julgada material e o prevalecimento da justiça, o judiciário não deve se ater a dogmas caducos em detrimento da possibilidade de se alcançar a verdade do caso em apreço.
No emblemático posicionamento do insigne Marinone:
A ‘tese da relativização" contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por "justiça" e sequer busca amparo em uma das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema. Aparentemente parte de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser descoberto por qualquer cidadão médio (l’uomo della strada), o que a torna imprestável ao seu propósito, por sofrer de evidente inconsistência, nos termos a que se refere Canaris.
O grande filósofo alemão Gustav Radbruch há muito já criticava a inconsistência que advém da falta de uma concepção adequada de justiça, quando dizia que a "disciplina da vida social não pode ficar entregue, como é óbvio, às mil e uma opiniões dos homens que a constituem nas suas recíprocas relações. Pelo fato de esses homens terem ou poderem ter opiniões e crença opostas, é que a vida social tem necessariamente de ser disciplinada duma maneira uniforme por uma força que se ache colocada acima dos indivíduos. [23]"
O problema da falta de justiça não é fato que aflige apenas o sistema jurídico. Outros sistemas sociais apresentam injustiças gritantes, mas é equivocado, em qualquer lugar, destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida.
Evidentemente, quando se trata de valores jurídicos é preciso fazer um juízo de ponderação, uma vez que, no que pese os ditames dos princípios jurídicos, é cediço que num confronto entre princípios, nenhum princípio impera de forma absoluta. Destarte, faz necessário parcimônia do órgão judicante para que no exame do caso em concreto pondere e fundamente sua decisão em prol da feição que melhor atenda os pressupostos para o prevalecimento da lídima justiça.
Infere-se que a problemática da relativização da coisa julgada material é um dos fenômenos mais complexos dentro do mundo jurídico, haja vista que o uso imoderado e/ou banalizado do instituto, sob o pretexto de estar se buscando atender a justiça no caso em concreto, pode conduzir a injustiças ainda maiores, na medida em que daria ensejo à perda da confiabilidade dos provimentos jurisdicionais, uma vez que estes poderiam ser flexibilizados todas as vezes que a parte prejudicada alegasse que estaria exposta a uma situação injusta.
Assim é imperativo seguir parâmetros legais criteriosos para a admissibilidade e efetivação da relativização da res iudicata, pois a flexibilização inadvertida e negligente conduziria a um estado de insegurança jurídica em que a instabilidade e a injustiça seriam vertentes mais gravosas.
Destarte a garantia Constitucional da coisa julgada insculpida no art. 5º, inciso XXXVI, é um preceito inerente ao Estado Democrático de Direito que deve ser respeitado e a sua relativização só deve ser admitida em caráter excepcional, mediante a demonstração do preenchimento das hipóteses legais de admissibilidade e por meio de instrumento processual apto para tal fim.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Araken de. Eficácia da Coisa Julgada Inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 4 ed., 2004.
BERALDO, Leonardo de Faria. A Relativização da Coisa Julgada que Viola a Constituição. Rio de Janeiro: América Jurídica, 3 ed. 2003.
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural, tradução de Sérgio Bath. Brasília: UnB, 1997.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da Coisa Julgada Material. Rio de Janeiro: América Jurídica, 4 ed. 2004.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a Coisa Julgada Material. São Paulo: Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n.º 55/56, 2002.
MACEDO, Alexandre dos Santos. Apud: NASCIMENTO, Carlos Valder do. Coisa Julgada Inconstitucional. 4 ed., Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004.
MARINONE, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conheciemento. 5 ed., São Paulo: RT, 2006.
RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental, tradução de Breno Silveira. 2. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1967, Livro Quarto.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. A coisa julgada e a Rescindibilidade da sentença. Revista Jurídica n. 219, jan/96, pág. 20.
THEODORO JÚNIOR, Humberto e FARIA, Juliana Cordeiro. A Coisa Julgada Inconstitucional e os Instrumentos Processuais para seu Controle. 4 ed., Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004
Notas
[1] KELSEN, Hans. O que é justiça?, tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 21.
[2] BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural, tradução de Sérgio Bath. Brasília: UnB, 1997, p. 33.
[3] Idem, p. 37.
[4] BOBBIO, op. cit., p. 111.
[5] Aristóteles defendia que, para se chegar à melhor solução, dever-se-ia lançar mão daquela opção que estivesse no meio termo entre os extremos, ou seja, para o filósofo, a justiça da decisão encontrava-se numa espécie de média aritmética.
[6] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 350.
[7] LIEBMAN, op. cit., p. 79.
[8] Como assinala Marinone “a imutabilidade que se verifica em relação as sentenças homologatórias (art.269, incisos II, III e V,do CPC) não é precisamente inerente à sentença, mas decorrente do ato jurídico perfeito homologado. E o ato jurídico perfeito que a sentença homologatória reconhece que opera a estabilidade – com status Constitucional idênticos ao da coisa julgada.
[9] Nesse sentido, na jurisprudência recente, cf. STJ, REsp 748.452/SC, Rel. Ministro Castro Meira, 2.ª T., julgado em 16.02.2006, DJ 13.03.2006 p. 278.
[10] A Coisa Julgada Inconstitucional e os Instrumentos Processuais para seu Controle. 3ª ed., Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, pag. 93.
[11] No mesmo sentido, na doutrina brasileira, é o que escrevem, dentre outros, Cândido Rangel Dinamarco, Litisconsórcio, 7. ed., Malheiros, 2002, n. 64.6, p. 288; Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, 10. ed., Forense, 1998, v. I, n. 304, p. 205.
[12] Trata-se de orientação há muito tempo pacífica no STF e no STJ. A respeito, cf. os seguintes julgados:
STF, RE 63677-GO, rel. Min. Amaral Santos, 1.ª T., j. 21.08.1969; STF, RE 96696-RJ, rel. Min. Soares Munoz, j. 22.10.1982, DJ 17.12.1982, p. 13210, RTJ 104-02, p. 826; STF, RE 97.589-SC, rel. Min. Moreira Alves, Pleno, j. 17.11.1982, DJ 03.06.1983, p. 7883.
STJ, REsp 26898/SP, Rel. Ministro Dias Trindade, 3.a t., , julgado em 28.09.1992, DJ 26.10.1992 p. 19050; REsp 18550/SP, Rel. Min. Pádua Ribeiro, 2.ª T., julgado em 20.10.1993, DJ 22.11.1993 p. 24931; STJ, REsp 23.182/GO, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4.ª T., julgado em 25.10.1994, DJ 19.12.1994 p. 35318; STJ, REsp 97928/RJ, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, 3.ª T., julgado em 13.08.1996, DJ 29.10.1996 p. 41645; STJ, REsp 459.351/SP, Rel. Ministro Castro Filho, 3.ª T., julgado em 22.05.2003, DJ 16.06.2003 p. 338; STJ, AgRg no REsp 599.505/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., julgado em 28.10.2004, DJ 29.11.2004 p. 331.
[13] Enrico Tullio Liebman, a propósito, escreveu que “il diffeto delle condizioni dell´azione non riguarda qual determinato processo, ma l’azione in sè, non potrà proporsi nuovamente um altro processo finchè non mutano le circostanze di fatto rilevanti (se, per. es. non sopravviene l´interesse ad agire, che prima era mancante)” (Manuale di diritto processuale civile. 4. ed. Milão, 1980, vol. I, n. 80, p. 156). Sob este prisma, a sentença que acusa a ausência de uma condição da ação é, a rigor – e embora se diga estar diante de sentença que extingue o processo sem julgamento do mérito – algo até mais grave, perante o ordenamento jurídico, que a sentença que julga improcedente o pedido. A sentença terminativa aí proferida declara que a ação sequer poderia ter sido proposta, porquanto ausentes os requisitos minimamente exigidos pelo sistema, para isso ocorresse.
[14] Cf., no mesmo sentido, Cândido Rangel Dinamarco, Relativizar a coisa julgada material, in Carlos Valder do Nascimento (coord.), Coisa julgada inconstitucional, América Jurídica, 2002, p. 33-75; Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle, in Coisa julgada inconstitucional, cit., p. 77-123
[15] Afirmando que, no caso, “possível é a solução pela via da ação ordinária”, cf. STJ, REsp 19241/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro Menezes Direito, 3.ª T., julgado em 02.03.2000, DJ 11.09.2000 p. 249. No mesmo sentido, mais recentemente: STJ, REsp 331850/RS, Rel. Ministro Menezes Direito, 3.ª T., julgado em 21.03.2002, DJ 06.05.2002 p. 288.
[16] STJ, REsp 12586/SP, Rel. Ministro Waldemar Zveiter, 3.ª T., julgado em 08.10.1991, DJ 04.11.1991 p. 15684.
[17] STJ, 3.ª T., REsp 245647-SC, rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 19.02.2001, DJU 02.04.2001, p. 290.
[18] Direito Civil – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2001, pág. 510
[19] CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da Coisa Julgada Material. Rio de Janeiro: América Jurídica, 4ª ed. 2004, pág. 200.
[20] A Coisa Julgada Inconstitucional e os Instrumentos Processuais para seu Controle. 4ª ed., Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, pag. 108/109.
[21] Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2000, pag. 188.
[22] DOUTRINA. PRECEDENTES. DIREITO DE FAMÍLIA. EVOLUÇÃO. RECURSO ACOLHIDO. I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido. II – Nos termos da orientação da Turma, "sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza" na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real. III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, "a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade".IV – Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum.
[23] Gustav Radbruch, Filosofia do Direito, cit., p. 178.