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Crime de casa de prostituição e o princípio da adequação social

Agenda 30/07/2015 às 14:28

Fazemos a análise do crime do artigo 229 do Código Penal à luz da principiologia constitucional, notadamente, a adequação social e a intervenção mínima.

 

Como sabido, muito se discute acerca da permanência do referido crime (art. 229 do CP – tecnicamente: casa de exploração sexual) no nosso ordenamento jurídico, à luz do princípio da adequação social. Afinal, à luz do referido princípio, só se pode glosar condutas sob a pecha, criminal quando tais comportamentos forem contrários aos nossos atuais valores sociais.

 

O princípio da adequação social possui dupla finalidade: (a) ao legislador, como uma exortação a fim de reavaliar o tipo penal, mantendo-o ou não no ordenamento jurídico; (b) ao aplicador do direito (jurista/exegeta) a fim de limitar tipos penais, a ponto de afastar condutas adequadas socialmente da subsunção ao tipo criminal, jamais com o condão de revogar tipos incriminadores.

 

O princípio da adequação tem duas funções precípuas: (a) de restringir o âmbito de abrangência do tipo penal (limitando sua interpretação ao excluir condutas socialmente aceitas); (b) de orientar o legislador na seleção dos bens jurídicos a serem tutelados, atuando, também, no processo de descriminalização de condutas (CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. Juspodivm. p. 75).

 

Daí a impossibilidade de se entender que o crime do art. 229 do CP não possua nenhuma aplicação.

 

A lei penal incriminadora só perde sua força quando revogada por outra lei, não podendo o princípio da adequação social revogar tipos penais incriminadores. (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Ed. Impetus).

 

Até que o dispositivo seja revogado – e não foi pela Lei 12015/2009 – deve ser aplicado, com as limitações próprias do princípio da adequação social.

 

RECURSO ESPECIAL. ARTIGO 229 DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL. INAPLICABILIDADE. TIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. 1. O princípio da adequação social é um vetor geral de hermenêutica segundo o qual, dada a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal, se o tipo é um modelo de conduta proibida, não se pode reputar como criminoso um comportamento socialmente aceito e tolerado pela sociedade, ainda que formalmente subsumido a um tipo incriminador. 2. A aplicação deste princípio no exame da tipicidade deve ser realizada em caráter excepcional, porquanto ao legislador cabe precipuamente eleger aquelas condutas que serão descriminalizadas. 3. A jurisprudência desta Corte Superior orienta-se no sentido de que eventual tolerância de parte da sociedade e de algumas autoridades públicas não implica a atipicidade material da conduta de manter casa de prostituição, delito que, mesmo após as recentes alterações legislativas promovidas pela Lei n. 12.015/2009, continuou a ser tipificada no artigo 229 do Código Penal. 4. De mais a mais, a manutenção de estabelecimento em que ocorra a exploração sexual de outrem vai de encontro ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo incabível a conclusão de que é um comportamento considerado correto por toda a sociedade. 5. Recurso especial provido para restabelecer a sentença condenatória, apenas em relação ao crime previsto no artigo 229 do Código Penal. (STJ. REsp 1435872/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 03/06/2014, DJe 01/07/2014)

 

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CASA DE PROSTITUIÇÃO. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA FRAGMENTARIEDADE E DA ADEQUAÇÃO SOCIAL: IMPOSSIBILIDADE. CONDUTA TÍPICA. CONSTRANGIMENTO NÃO CONFIGURADO. 1. No crime de manter casa de prostituição, imputado aos Pacientes, os bens jurídicos protegidos são a moralidade sexual e os bons costumes, valores de elevada importância social a serem resguardados pelo Direito Penal, não havendo que se falar em aplicação do princípio da fragmentariedade. 2. Quanto à aplicação do princípio da adequação social, esse, por si só, não tem o condão de revogar tipos penais. Nos termos do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (com alteração da Lei n. 12.376/2010), “não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”. 3. Mesmo que a conduta imputada aos Pacientes fizesse parte dos costumes ou fosse socialmente aceita, isso não seria suficiente para revogar a lei penal em vigor. 4. Habeas corpus denegado. (STF. HC 104467, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 08/02/2011, DJe-044 DIVULG 04-03-2011 PUBLIC 09-03-2011 EMENT VOL-02477-01 PP-00057)

 

 

Nessa esteira, ante a possibilidade de limitação do tipo penal em razão da adequação social, deve-se bem entender o que configura nos dias atuais a prostituição e a exploração sexual.

 

A prostituição é o comércio habitual da atividade sexual. Tal conduta é absolutamente ilícita quando envolver crianças e adolescentes, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. Mas aos maiores e capazes, tal conduta não é ilícita pelo ordenamento brasileiro, embora seja conduta imoral para muitos. A imoralidade, todos sabemos, não é capaz, por si só, de receber a atenção do direito penal, que deve se ocupar, tão somente, à luz do princípio da intervenção mínima, daqueles comportamentos que gerem lesão ou ameaça de lesão significante e intolerável aos bens jurídicos mais importantes da nossa vida em sociedade.

Não mais se sustenta, à luz de uma visão secular do Direito Penal, o entendimento do Tribunal de origem, de que a natureza do serviço de natureza sexual não permite caracterizar o exercício arbitrário das próprias razões, ao argumento de que o compromisso assumido pela vítima com a ré - de remunerar-lhe por serviço de natureza sexual - não seria passível de cobrança judicial. A figura típica em apreço relaciona-se com uma atividade que padece de inegável componente moral relacionado aos "bons costumes", o que já reclama uma releitura do tema, mercê da mutação desses costumes na sociedade hodierna e da necessária separação entre a Moral e o Direito. Não se pode negar proteção jurídica àquelas (e àqueles) que oferecem serviços de cunho sexual em troca de remuneração, desde que, evidentemente, essa troca de interesses não envolva incapazes, menores de 18 anos e pessoas de algum modo vulneráveis e desde que o ato sexual seja decorrente de livre disposição da vontade dos participantes e não implique violência (não consentida) ou grave ameaça. Acertada a solução dada pelo Juiz sentenciante, ao afastar o crime de roubo - cujo elemento subjetivo não se compatibiliza com a situação versada nos autos - e entender presente o crime de exercício arbitrário das próprias razões, ante o descumprimento do acordo verbal de pagamento, pelo cliente, dos préstimos sexuais da paciente. (STJ. HC 211.888/TO, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 17/05/2016, DJe 07/06/2016)

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Embora a prostituição não seja crime, o direito penal veda toda e qualquer forma de fomento a tal prática, seja estimulando, explorando ou tirando proveito. Pratica crime aquele que favorece (art. 228 do CP), mantém espaço reservado para tanto (art. 229 do CP), ou tira proveito dessa atividade (art. 230 do CP).

 

 Daí o tipo penal do art. 229 do CP, que incrimina a conduta de manter estabelecimento em que ocorra exploração sexual.

 

A prostituição – comércio habitual da atividade sexual – pode configurar ou não uma forma de exploração sexual.

 

Exploração sexual é gênero que abrange a prostituição, o turismo sexual, tráfico para fins sexuais e a pornografia. Todavia, nem sempre a prostituição, o turismo sexual, o tráfico para fins sexuais, a pornografia, configurar-se-ão espécies de exploração sexual. Explorar, para o direito penal, não tem o sentido de tomar vantagem de qualquer natureza. Se assim fosse, toda a indústria pornográfica brasileira seria uma organização criminosa, sendo os atores e atrizes – maiores e capazes - vítimas de crimes contra a dignidade sexual.

 

Pornografia, por outro lado, é atividade lícita, onde há inclusive recolhimento de impostos ao Estado. Afasta-se dela os menores de 18 anos. No mais, pode ser até mesmo formas e expressões de arte. Não há nenhuma exploração sexual nisso. Pensando-se na pessoa que participa de fotos ou filmes pornográficos, não se pode denominar de exploração, mas de trabalho lícito, com remuneração, como qualquer outro filme ou sessão de fotos (      NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. Forense. 14ª ed. p. 1081).

 

Explorar sexualmente, à luz do princípio da adequação social, é toda e qualquer forma de tolhimento da liberdade sexual. Exploração sexual é toda conduta que inibe, obsta, embaraça ou neutraliza a liberdade de escolha na esfera sexual humana. Essa é a mens legis, punir a violência, a ameaça, a fraude, ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade, enfim, toda e qualquer conduta capaz de fragilizar ou paralisar a liberdade humana no campo sexual.

 

Explorar é obrigar a alguém a fazer o que não quer, é constranger, oprimir. A prostituição, o turismo sexual, o tráfico para fins sexuais, a pornografia, se forçados, configurar-se-ão espécies de exploração sexual.

 

A prostituição é fato concreto e, mais, fato penalmente irrelevante. O estabelecimento que abrigue a prostituição nada mais faz do que um favor às pessoas que assim agem. Inexiste qualquer ofensividade a bem jurídico, merecedora de tutela penal. Por isso, a intervenção mínima é desrespeitada. O Estado deve restringir sua atuação aos atos violentos e ameaçadores, capazes de comprometer a segurança a e tranqüilidade dos cidadãos. Punir o rufião, explorador de prostitutas, sob ameaças variadas, é desejável. No entanto, prever punição para quem auxiliar a prostituição, de modo pacífico e consensual, torna-se invasivo e intolerante. Entretanto, o Judiciário no Brasil carece de forca suficiente para declarar inaplicável ou inconstitucional o tipo penal incriminador, considerado excessivo ou invasor da privacidade ou intimidade do indivíduo (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Forense. p. 1046).

 

Assim o artigo Casa de Prostituição de Luiza Nagib Eluf, ex-Procuradora de Justiça:

 

Nossa lei nunca puniu a prostituta ou o seu cliente, mas criou regras que dificultam a atividade. Partindo do princípio de que a sociedade não pode prescindir do comércio sexual, haja vista a falência de todas as medidas adotadas para coibir a prática em todos os tempos, impedir essas(es) profissionais de ter um lugar para trabalhar gera uma situação perversa e injusta, cria constrangimentos na rua e expõe a variados tipos de risco. Diante disso, a casa é uma solução, não um problema. Assim, a Lei n. 12015/2009 corrigiu uma distorção decorrente de tabus e preconceitos do começo do século passado e passou a considerar crime apenas “estabelecimento em que ocorra exploração sexual”, o que foi um grande acerto. Crime é manter essa pessoa em condição de explorada, sacrificada, obrigada a fazer o que não quer. Explorar é colocar em situação análoga à de escravidão, impor a prática de sexo contra vontade ou, no mínimo, induzir a isso, sob as piores condições, sem remuneração nem liberdade de escolha. A prostituição forçada é exploração sexual, um delito escabroso, merecedor de punição severa, ainda mais se praticado contra crianças. O resto não merece atenção do direito penal. A profissional do sexo, por opção própria, maior de dezoito anos, deve ser deixada em paz, regulamentando-se a atividade. A meu ver, com a recente alteração trazida pela nova lei, os processos que se encontram em tramitação pelo crime de 'casa de prostituição', se não envolverem exploração sexual, deverão resultar em absolvição, pois a conduta de manter casa para fins libidinosos, por si só, não mais configura crime [...] Dessa forma, vamos caminhando no sentido da abolição da perseguição à mulher e do fim do estigma de uma profissão que se reconhece a mais antiga do mundo.

 

Da mesma forma a jurisprudência mais acertada:

 

 

RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. CASA DE PROSTITUIÇÃO. TIPICIDADE.EXPLORAÇÃO SEXUAL. ELEMENTO NORMATIVO DO TIPO. VIOLAÇÃO À DIGNIDADE SEXUAL E TOLHIMENTO À LIBERDADE. INEXISTÊNCIA. FATO ATÍPICO.1. Mesmo após as alterações legislativas introduzidas pela Lei nº 12.015/2009, a conduta consistente em manter Casa de Prostituição segue sendo crime tipificado no artigo 229 do Código Penal. Todavia, com a novel legislação, passou-se a exigir a "exploração sexual" como elemento normativo do tipo, de modo que a conduta consistente em manter casa para fins libidinosos, por si só, não mais caracteriza crime, sendo necessário, para a configuração do delito, que haja exploração sexual, assim entendida como a violação à liberdade das pessoas que ali exercem a mercancia carnal.2. Não se tratando de estabelecimento voltado exclusivamente para a prática de mercancia sexual, tampouco havendo notícia de envolvimento de menores de idade, nem comprovação de que o recorrido tirava proveito, auferindo lucros da atividade sexual alheia mediante ameaça, coerção, violência ou qualquer outra forma de violação ou tolhimento à liberdade das pessoas, não há falar em fato típico a ser punido na seara penal.3. Recurso improvido.(STJ. REsp 1683375/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 14/08/2018, DJe 29/08/2018)

 

Dessa forma, devem ser interpretados os crimes contra a dignidade sexual à luz do princípio da adequação social, como fator limitador da tipificação penal, bem como sob a ótica do princípio da intervenção mínima. Toda e qualquer conduta envolvendo prostituição, o turismo sexual, tráfico para fins sexuais e a pornografia, só serão crimes quando envolverem menor de 18 anos (ou vulnerável) – eis que a lei presume nessas hipóteses não possuir a vítima liberdade sexual plena - ou quando houver efetiva exploração sexual no sentido de tolhimento da liberdade sexual.

Sobre o autor
Cleber Couto

Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Cleber. Crime de casa de prostituição e o princípio da adequação social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4411, 30 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41150. Acesso em: 23 dez. 2024.

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