Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Da aplicabilidade dos institutos da coautoria e participação nos crimes culposos no atual ordenamento jurídico criminal

Exibindo página 3 de 4
Agenda 05/08/2015 às 15:17

4. DA PROBLEMÁTICA DA APLICAÇÃO DO CONCURSO DE PESSOAS NOS CRIMES CULPOSOS 

4.1. COAUTORIA NOS CRIMES CULPOSOS 

De início, antes de entrarmos na celeuma da aplicação do instituto da coautoria nos crimes culposos, precisamos esclarecer o que vem a ser crime culposo.

O próprio Código Penal Brasileiro, em seu artigo 18, inciso II, se encarregou de conceituar de forma “tímida” e genérica o crime culposo. Contudo, o conceito extraído de tal dispositivo legal é incompleto, por isso, deveremos recorrer à analogia do conceito constante do Código Penal Militar (BRASIL, PLANALTO, 1969), que em seu artigo 33, inciso II o aborda de forma mais completa, vejamos:

Art. 33, II, CPM. Culposo, quando o agente, deixando de empregar a cautela, atenção, ou diligência ordinária, ou especial, a que estava obrigado em face das circunstâncias, não prevê o resultado que podia prever ou, prevendo-o, supõe levianamente que não se realizaria ou que poderia evitá-lo.

Para uma melhor elucidação desse instituto, recorreremos ao conceito doutrinário desenvolvido por Nucci (2014, p.198): 

[...] é o comportamento voluntário desatencioso, voltado a um determinado objetivo, lícito ou ilícito, embora produza resultado ilícito, não desejado, mas previsível, que podia ter sido evitado. O dolo é a regra; a culpa, exceção. Para se punir alguém por delito culposo, é indispensável que a culpa venha expressamente delineada no tipo penal. Trata-se de um dos elementos subjetivos do crime, embora se possa definir a natureza jurídica da culpa como sendo um elemento psicológico-normativo. Psicológico, porque é elemento subjetivo do delito, implicando na ligação do resultado lesivo ao querer interno do agente através da previsibilidade. Normativo, porque é formulado um juízo de valor acerca da relação estabelecida entre o querer do agente e o resultado produzido, verificando o magistrado se houve uma norma a cumprir, que deixou de ser seguida.

Assim sendo, crime culposo é aquele em que o agente agindo de forma voluntária, produz um resultado involuntário, justamente por Inobservar o dever objetivo de cuidado que é imposto a todos, atuando então, com negligência, imprudência ou imperícia.

Pois bem, após passarmos brevemente pela noção conceitual, voltemos à problemática proposta por este artigo, qual seja a da aplicabilidade do instituto da coautoria nos crimes culposos.

Destarte, a dúvida que impera é a da possibilidade ou não da aplicação da Coautoria nos crimes culposos. Isso se deve ao fato de que seriam necessárias a conjugação de vários requisitos para a aplicação do supracitado instituto, e parcela da doutrina entende que é impossível reuni-los quando da feitura de um crime culposo.

Assim, a título de exemplo, como seria possível provar o liame subjetivo entre os demais coautores do crime de homicídio culposo, por exemplo. Essa crítica é bastante recorrente, e é defendida por diversos doutrinadores, principalmente as teses provenientes da Alemanha.

Apesar das diversas críticas que rondam o entendimento contraposto, ressalta-se que a idéia apresentada acima não prosperou, e vige atualmente na doutrina majoritária brasileira, a possibilidade da aplicação da Coautoria nos crimes culposos.

Esse entendimento é majoritário no Brasil, e é sustentado por diversos autores criminais, dentre os quais, está presente Bitencourt, que em sua obra expõe (2012, epub reader):

A doutrina brasileira, à unanimidade, admite a coautoria em crime culposo, rechaçando, contudo, a participação. Pode existir na verdade um vínculo subjetivo na realização da conduta, que é voluntária, inexistindo, contudo, tal vínculo em relação ao resultado, que não é desejado. Os que cooperam na causa, isto é, na falta do dever de cuidado objetivo, agindo sem a atenção devida, são coautores. Nesse aspecto, a concepção brasileira assemelha-se, na essência, com a alemã, ao sustentar que toda contribuição causal a um delito não doloso equivale a produzi-lo, na condição de autor, para os alemães, na de coautor, para os brasileiros, pois, como dizia Welzel, “a coautoria é uma forma independente de autoria... A coautoria é autoria. Por isso, cada coautor há de ser autor, isto é, possuir as qualidades pessoais (objetivas e subjetivas) de autor...”. Assim, no exemplo do passageiro que induz o motorista de táxi a dirigir em velocidade excessiva e contribui diretamente para um atropelamento, que para os alemães seria autor, para os espanhóis seria simples partícipe, para a doutrina brasileira seria coautor. 

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Sendo assim, a doutrina brasileira, diversamente da Alemã, que não admite a coautoria em crime culposo, é uníssona ao admiti-la nos crimes culposos, entendendo que quando duas ou mais pessoas agindo de forma conjunta, praticam atos de forma imprudente, negligente e imperita, violando o dever objetivo de cuidado a todos imposta, estaria cometendo o crime em coautoria com o agente que realizou a mesma atividade.

Esse é o entendimento que me parece mais correto, e que encontra amparo em toda a doutrina brasileira, e que vem ganhando cada vez mais respaldo da jurisprudência dos nossos tribunais superiores.

 Destarte, para uma melhor visualização prática da aplicação da coautoria nos crimes culposos, o renomado doutrinador Magalhães Noronha (1966, p. 103), em uma de suas obras conseguiu sintetizar de forma didática a figura retro citada, vejamos: 

Suponha-se o caso de dois pedreiros que, numa construção, tomam uma trave e a atiram à rua, alcançando um transeunte. Não há falar em autor principal e secundário, em realização e instigação, em ação e auxílio, etc. Oficiais do mesmo ofício, incumbia-lhes aquela tarefa, só realizável pela conjugação das suas forças. Donde a ação única – apanhar e lançar o madeiro – e o resultado – lesões ou morte da vítima, também uno, foram praticados por duas pessoas, que uniram seus esforços e vontades, resultando assim coautoria. Para ambos houve vontade atuante e ausência de previsão. 

Sendo assim, coaduno com as ideias explicitadas acima, acreditando que quando duas pessoas diante de uma situação concreta, deixarem de observar o dever objetivo de cuidado, e juntos causarem um “dano” a um bem jurídico tutelado pela lei penal, ambos os agentes deverão ser punidos pela conduta criminosa em coautoria delinquente.

Por fim, para que não paire nenhuma dúvida sobre o tema em análise, devemos colacionar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que assim como o Supremo Tribunal Federal, é pacífico ao aceitar a coautoria em crime culposo, conforme se infere abaixo, quando do julgamento do Habeas Corpus nº 40474/PR HC 2004/0180020-5, 5º Turma, julgado em 06.12.2005 (BRASIL, STJ, 2005), de relatoria da Ministra Laurita Vaz, que em suma aduziu: 

HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO CULPOSO. DELITO DE TRÂNSITO. COAUTORIA. POSSIBILIDADE. ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE NEXO CAUSAL ENTRE O COMPORTAMENTO DO PACIENTE E O EVENTO DANOSO. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. VIA INADEQUADA.

1. É perfeitamente admissível, segundo o entendimento doutrinário e jurisprudencial, a possibilidade de concurso de pessoas em crime culposo, que ocorre quando há um vínculo psicológico na cooperação consciente de alguém na conduta culposa de outrem. O que não se

admite nos tipos culposos, ressalve-se, é a participação.

Precedentes desta Corte.

2. Afigura-se inviável, conforme pretende o Impetrante, reconhecer, na via estreita do writ, a ausência, por falta de provas, do nexo causal entre o comportamento culposo do paciente - reconhecido na sentença - ao acidente em questão, uma vez que demandaria, necessariamente, a análise aprofundada do conjunto probatório dos autos.

3. Habeas Corpus denegado. 

4.2.       PARTICIPAÇÃO EM CRIMES CULPOSOS

Como bem exposto acima, o tema da coautoria em crime culposo encontra-se atualmente pacificado tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Isso se deve pelo fato de que a hermenêutica criminal Brasileira acabou adotando certos entendimentos que se coadunam com tal instituto, diferente de outros países, que não aceitam a coautoria em crimes culposos, como por exemplo, a escola Alemã de direito penal.

Diferentemente da pacificação encontrada na coautoria em crimes culposos, existe uma enorme divergência doutrinária e jurisprudencial que rondam a matéria atinente à participação nos crimes culposos.

Posto isto, a doutrina divide a participação em crimes culposos em duas vertentes, quais sejam a participação culposa em crime culposo e a participação dolosa em crime culposo.

A respeito da participação dolosa em crime culposo, assevera Greco (2014, p. 474) que essa modalidade não é admitida, conforme se infere abaixo:

A doutrina refuta com veemência tal situação, uma vez que o concurso de pessoas exige, como regra geral, em face da adoção da teoria monista, a identidade de infração penal, dividida por todos aqueles que concorreram para a sua prática.

A adoção desse posicionamento se deve ao fato de que o Brasil adotou a teoria monista ou unitária no concurso de pessoas (art. 29, CP), e diferentemente desse entendimento, toda vez que um agente induz, instiga ou auxilia dolosamente uma terceira pessoa a praticar erroneamente uma figura delituosa, estaríamos diante de diferentes tipos de infrações penais. Destarte, é por conta de tal fator que a participação dolosa em crime culposo não é admitida no ordenamento jurídico brasileiro. Diante disto, torna-se necessário demonstrarmos as duas correntes existentes sobre o assunto.

A primeira corrente, à qual acredito ser equivocada, é defendida por diversos doutrinadores, dentre os quais se destaca Greco, que em sua obra defende a aplicação da participação nos crimes culposos.

Para Rogério Greco (2014, p. 475), se aplica o retro instituto pelos seguintes motivos:

Quando alguém, no exemplo do automóvel, induz ou estimula outrem a imprimir velocidade excessiva, objetivando, geralmente, alcançar alguma finalidade lícita, era-lhe previsível, nas circunstâncias, que, anuindo ao pedido, a conduta do motorista poderia ocasionar o acidente. Era previsível, da mesma forma, ao motorista que detinha o controle do automóvel. Não foram as condutas conjugadas simultaneamente que levaram à eclosão do acidente, tal como no exemplo dos operários que, juntos, arremessam a tábua por sobre o tapume? Autor será aquele que praticar a conduta contrária ao dever objetivo de cuidado; partícipe será aquele que induzir ou estimular alguém a realizar a conduta contrária ao dever de cuidado. (grifos acrescidos).

Em posição oposta à maioria da doutrina brasileira, Rogério Greco entende ser plenamente possível aplicar tal instituto, já que para o mesmo, o autor seria aquele que pratica o núcleo do tipo, e o partícipe seria aquele que o auxiliasse na empreitada criminosa, ou seja, nada mudaria na conduta de crime culposo, permanecendo os mesmos preceitos ditados para os crimes dolosos.

Com todo o respeito que merece o supracitado doutrinador, entendo que a sua tese não pode prosperar, dado que o crime culposo possui determinadas peculiaridades que lhe são próprias, e que devem ser atendidas para a sua configuração. Assim, fica difícil vislumbrar a figura do partícipe que auxilia alguém a cometer um crime culposo.

Nesse mister, acompanho a doutrina majoritária ao entender que não se aplica a participação nos crimes culposos, dado que não pode existir a figura de uma pessoa que auxilie, instigue ou induza outrem a praticar um crime de forma culposa. Caso o agente consiga convencer outrem a praticar um determinado delito, este agente o produzirá de forma dolosa, e não de forma culposa.

Diante disto, me filio ao entendimento de Damásio de Jesus (2006, p. 422), que em sua obra aduz:

Todo grau de causação a respeito do resultado típico produzido não dolosamente, mediante uma ação que não observa o cuidado requerido no âmbito de relação, fundamenta a autoria do respectivo delito culposo. Por essa razão, não existe diferença entre autores e partícipes nos crimes culposos. Toda classe de causação do resultado típico e ilícito é autoria.

Portanto, quem instiga outra pessoa a tomar uma atitude imprudente, negligente ou imperita está cometendo o mesmo crime em coautoria com a pessoa que vier a cometer o núcleo do tipo penal.

A respeito das discussões travadas sobre o tema, conforme já fora exposta mais acima, a doutrina e jurisprudência pátria se inclinam de forma majoritária pela não aceitação da participação nos crimes culposos. Sendo assim, mostra-se necessário colacionarmos a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, STJ, 2013), que no julgamento do HC nº 235.827/SP (2012/0050257-8), de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado em 18.09.2013, entendeu da seguinte forma:

[...] concurso de agentes pode se dar na forma de coautoria e de participação, que se distinguem em virtude de o partícipe apenas induzir, instigar ou auxiliar materialmente o autor, ou seja, não pratica a conduta típica, mas apenas uma conduta acessória, que não integra o fato típico. De fato, "coautor é aquele que pratica, de algum modo, a figura típica, enquanto ao partícipe fica reservada a posição de auxílio material ou suporte moral (onde se inclui o induzimento, a instigação  ou o  comando)  para a  concretização do  crime" (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado.10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 296).  

A doutrina majoritária admite a coautoria em crime culposo, contudo, não admite a participação. Com efeito, o crime culposo é definido, em regra, por um  tipo penal aberto, no qual se encaixa todo comportamento que viola o dever objetivo de cuidado. Assim, a contribuição para o evento culposo revela sempre coautoria e não participação, devendo aquele que de qualquer modo concorreu para o resultado, que violou o dever de cuidado, ser autor de sua própria negligência, imprudência ou imperícia.

Destaque-se que o liame subjetivo que se exige na coautoria em crime culposo se dirige à prática da conduta, inexistindo no que concerne ao resultado, que nem ao menos é desejado. Assim, aqueles "que cooperam na causa, isto é, na falta do dever de cuidado objetivo, agindo sem a atenção devida, são coautores" (Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 497.)

Nos termos do que bem elucida Rogério Greco, "duas pessoas podem, em um ato conjunto, deixar de observar o dever objetivo e cuidado que lhes cabia e, com a união de suas condutas, produzir um resultado lesivo". (Código Penal: comentado. 6. ed. Niterói: Impetus, 2012, p. 101/102). Não se deve descurar, ademais, do próprio conceito de culpa, que traduz conduta voluntária, dirigida a objetivo, em regra, lícito, porém que resulta em ilícito penal, não desejado, mas previsível e evitável. Ademais, como é cediço, nos delitos culposos, a autoria está atrelada à conduta que infringe o dever de cautela, limitando-se, portanto, àquele que tinha esse dever.

Outrossim, não há se falar em culpa presumida, devendo ser referido elemento sempre demonstrado e provado pela acusação. Assim, caracterizada a contribuição culposa para o resultado tem-se configurada a coautoria em crime culposo.

Nas palavras de Nilo Batista, "autor do crime culposo é o sujeito que 'deu causa' – tipicamente – 'ao resultado'". (Concurso de agentes.2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004,p. 80). Como se vê, plenamente possível a coautoria em crime culposo, devendo, no entanto, demonstrar-se, conforme já enumerado, a pluralidade de pessoas, relevância causal das várias condutas, liame subjetivo entre os agentes e identidade de infração penal. (grifos acrescidos).

Sendo assim, acompanhando a melhor doutrina e jurisprudência, que aduzem pela impossibilidade da existência de participação em crime culposo, entendo particularmente ser inviável o cometimento de um delito na figura de partícipe em crime culposo, dado que as duas figuras juntas não podem coexistir a fim de evidenciarem um delito de tal natureza, pelos fatos e motivos já evidenciados acima.

Sobre o autor
João Firmo Neto

Bacharel em Direito. Advogado Criminalista. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado da Paraíba. Autor de artigos científicos nas áreas de Direito Penal e Direito Processual Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!