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O direito fundamental ao trabalho e as limitações constitucionais ao Projeto de Lei nº 4.330/2004

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Agenda 12/08/2015 às 02:12

Trata dos limites constitucionais da terceirização nas atividades-fim do empreendimento econômico (como pretende o PL nº 4.330/2004), com foco no direito fundamental ao trabalho e a proteção contitucional em torno da relação de emprego.

Desde a segunda metade do século XX, a partir de movimentos sociais, jurídicos, políticos e econômicos, e dentro do contexto de constitucionalização dos direitos sociais, o Direito do Trabalho se consolidou nos países desenvolvidos do Ocidente, de modo que o direito ao trabalho foi elevado ao status de direito fundamental da pessoa humana. A consolidação desse quadro se dá depois da Segunda Guerra Mundial, com o advento do Estado de Bem Estar Social.[1]

Consoante Gabriela Neves Delgado, no Brasil:

[...] a dinâmica de consolidação do Direito do Trabalho firmou-se em distintos tempos do processo histórico-legislativo trabalhista brasileiro: o período de institucionalização, dos anos 1930 a 1945; o período de expansão da legislação trabalhista, de 1945 a 1988 até os dias atuais.[2] (grifos da autora)

A Constituição Federal de 1988, construída sob o conceito de dignidade da pessoa humana, assumiu compromisso com a concretização de direitos fundamentais e edificou um novo paradigma de direitos sociais trabalhistas – elevando-os à qualidade de direito fundamental, até mesmo dentro da organização textual, em que foram inseridos no Capítulo de “Direitos Sociais” dentro do Título “Direitos e Garantias Fundamentais”.[3]

A partir daí, o Direito do Trabalho foi constitucionalizado sob uma ótica humanista, compromissado com a concretização da dignidade humana, de modo que seu valor social sempre deve se sobrepor a seu valor econômico (exatamente por ser um direito fundamental de cunho social, e não de cunho econômico).[4]

Nesse sentido, a própria Constituição brasileira, em seu art. 170[5], ao fundamentar a ordem econômica nos valores sociais do trabalho, faz prevalecer o trabalho humano sobre quaisquer outros valores da economia de mercado.[6]

A “justiça social”, também estampada no art. 170 em alusão, pretende garantir que haja instrumentos jurídicos e administrativos aptos a promover a inclusão das pessoas na sociedade, por meio da distribuição de riquezas no País, da concretização da dignidade humana e da democratização política e civil do tecido social.[7]

A livre iniciativa e a liberdade de contratação, tanto quanto o trabalho, devem ser pautadas no valor social. Tal afirmação é explicita no art. 1º[8], IV, da CF/88. À vista disso, a interpretação da livre iniciativa dissociada do valor social não se amolda aos imperativos constitucionais.[9] O Projeto de Lei nº 4.330/2004 foi produto do isolamento do discurso, calcado apenas na livre iniciativa, em completo menosprezo ao valor social do trabalho – e, por conseguinte, à realização da dignidade humana.

No Capítulo voltado aos “Direitos Sociais”, o art. 7º[10] traz um rol de 34 incisos destinados à proteção dos trabalhadores. Cabe ao legislador infraconstitucional e aos representantes das categorias profissional e econômica – por meio de convenções ou acordos coletivos – incrementar a proteção estabelecida constitucionalmente[11], e não destruí-la, como fez o Projeto de Lei em exame.

Pelo texto constitucional “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa” (art. 7º, I), é perceptível que, ao declarar os direitos fundamentais trabalhistas, há enaltecimento óbvio à relação de emprego, instituto jurídico do qual decorrem todas as garantias trabalhistas constitucionais, infraconstitucionais e decorrentes das negociações coletivas. Assevera Gabriela Neves Delgado:

 

A “relação de emprego” prevista no art. 7º, I, da Constituição constitui conceito protetivo universalizado pelo Direito do Trabalho, como modelo hegemônico de inserção do trabalhador no modo de produção capitalista, dotado, por isso, de um conteúdo de sentido conformado historicamente na tradição jurídica de diversos países, a partir do elemento-base da subordinação jurídica.{C}[12]{C} (grifos da autora)

Orientada a ser um instrumento de promoção social, a relação de emprego é historicamente construída e, dentre os valores consagrados para melhor chegar ao resultado almejado, destaca-se as preocupações temporal (continuidade do vínculo empregatício) e espacial (integração do obreiro à empresa), incorporadas à Constituição Federal de 1988[13] – preocupações estas completamente desconsideradas pelo Projeto de Lei nº 4.330/2004.

Quanto à proteção temporal, é notável a intenção constitucional de manutenção do vínculo laboral, quando obstaculiza a dispensa sem justa causa ou sem um motivo sensato no inciso I do art. 7º, em plena consonância com o princípio da continuidade da relação empregatícia.[14]

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Ainda no art. 7º, outras proteções levam à constatação da pretensão de continuidade do vínculo de emprego, tais como a indenização compensatória (inciso I), o seguro-desemprego (inciso II), o levantamento de depósitos do FGTS (inciso III), aviso-prévio proporcional ao tempo de serviço (inciso XXI).[15]

Cumpre ressaltar que as férias anuais remuneradas, resguardadas pelo inciso XVII do art. 7º da CF/88, também dependem de certa estabilidade empregatícia. Isso porque se houver extinção contratual antes de completar um ano de emprego, as férias são monetarizadas com pagamento de indenização compensatória[16], e o gozo do direito constitucional é obstado, em desatendimento aos propósitos de “política de saúde pública, bem estar coletivo e respeito à construção da cidadania, voltado a resgatar o trabalhador da noção estrita de ser produtivo, em favor de uma noção mais larga de ser familiar, social e político.”.[17] (grifos da autora)

O FGTS, por ser um fundo que depende essencialmente do tempo de serviço, também deixa óbvia a preocupação constitucional na estabilidade do vínculo de emprego. O aviso-prévio proporcional ao tempo de serviço também tem clara intenção estabilizadora, na medida em que pretende tornar mais tênue a desvinculação contratual, de maior tempo de serviço, de maneira a não impactar o ritmo financeiro e cotidiano do empregado.[18]

Não bastasse, a aposentadoria, direito constitucional garantido no inciso XXIV do art. 7º, imprescinde da contribuição pessoal e patronal continuada, o que pressupõe a maior estabilidade possível no emprego, a fim de ensejar tais contribuições previdenciárias.[19]

O emprego terceirizado é essencialmente rotativo, tanto pela permanência reduzida do vínculo, quanto pela substituição massiva de trabalhadores. Segundo Gabriela Neves Delgado, em uma pesquisa realizada por Márcio Pochmann, o tempo médio de preservação da relação empregatícia terceirizada é de 18 meses, e 8 a cada 10 empregados são substituídos ao final de um ano de trabalho.[20]

À vista disso, o emprego terceirizado é um vínculo bastante instável, o que desarma o rol de direitos constitucionalmente resguardados em torno da continuidade da relação empregatícia.[21]

Há que se falar, ainda, que a Constituição Federal almeja a integração do trabalhador à vida da empresa (proteção de natureza espacial da relação de emprego), de modo a propiciar a solidariedade entre os empregados, como escopo de desenvolvimento humano e profissional de cada trabalhador, perfazendo a função social da empresa.

O molde de organização dos sindicatos, pela Constituição Federal, baseia-se na “categoria profissional”, que pressupõe um vínculo de solidariedade entre os trabalhadores e, por conseguinte, também a integração destes ao empreendimento econômico[22]. É o que se depreende do § 2º do art. 511 da CLT – recepcionado pela CF/88[23] –, que conceitua “categoria profissional”:

Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares ou conexas.

[...]

§ 2º A similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas, compõe a expressão social elementar compreendida como categoria profissional.{C}[24] (grifo nosso)

Ao possibilitar um modelo de organização sindical – e também direitos derivados da força coletiva dos sindicatos, como o direito à negociação coletiva (art. 8º, CF/88) e o direito à greve (art. 9º, CF/88) – baseado na atividade econômica do empregador, é evidente que a CF/88 pressupõe a integração dos trabalhadores à vida da empresa, caso contrário esse vínculo de solidariedade não seria viável.[25]

A terceirização na atividade-fim da empresa, em contrassenso a essa proteção constitucional, estorva a integração do terceirizado ao empreendimento econômico. Nesse ponto, cita-se a sabedoria de Gabriela Neves Delgado:

Note-se como a terceirização dificulta a proteção de natureza espacial do trabalhador. Ao vincular esse trabalhador a empresa diversa daquela que se situa no núcleo da organização econômica, a terceirização na atividade-fim da empresa enseja a desvinculação formal entre o trabalhador e o grupo profissional com o qual mantém o vinculo de solidariedade, expulsando-o da rede de relações sociais que figura a identidade coletiva do trabalho, o que esvazia a noção de categoria profissional, frustrando a eficácia dos instrumentos constitucionais de luta pela “melhoria de sua condição social” (Constituição, art. 7º, caput).[26] (grifos da autora)

As garantias constitucionais dos trabalhadores dependem essencialmente da identidade coletiva dos empregados, que está inevitavelmente ligada às relações de interação, que só se constroem com a integração entre trabalhador e a atividade final da empresa – e a própria empresa em si, para tanto.[27]

Esvaziar a identidade da força de trabalho é enfraquecer os sindicatos e, com isso, a força do Direito do Trabalho – o instrumento de maior eficácia na contensão dos excessos do capital na exploração dos trabalhadores, como antes esmiuçado.

A prática de participação nos lucros ou resultados da empresa, igualmente trazida pela CF/88 em seu art. 7º, inciso XI, é também dependente da vinculação do trabalhador à atividade final da empresa, expresso pela própria expressão “participação”, que é revestida de um sentido de realização social, para além da acepção meramente econômica.[28]

Nessa mesma lógica de proteção espacial à relação de empregado, insere-se o ambiente de trabalho. Isso porque, o art. 200[29], VIII, da CF/88, ao tratar do SUS (Sistema Único de Saúde), o inclui expressamente na proteção ao meio ambiente.

Assim, ao aplicar as normas de Direito Ambiental às relações de trabalho, remete-se às condições de medicina e segurança do trabalho, a fim de assegurar um labor hígido, que melhor perfaça a dignidade da pessoa humana.

E a terceirização frustra, também, essas normas protetivas. Nas palavras de Gabriela Neves Delgado:

A terceirização de serviços difunde a presença instável do trabalhador em diferentes ambientes artificiais, de diversos tomadores, em relação aos quais a empresa prestadora não exerce nenhum domínio, dificultando sobremaneira, para esta, a proteção da higidez do local, dos métodos, das interações, influências e organizações da atividade laborativa, em cada espaço de atuação terceirizada, o que se revela pelos mais altos índices de acidentes de trabalho nas empresas de terceirização [...].[30]

Desse modo, a contratação de força de trabalho por meio da terceirização na atividade-fim, como legaliza o Projeto de Lei nº 4.330/2004, é claramente inconstitucional, porquanto ofende o direito fundamental ao trabalho ao não resguardar a relação de emprego em seu aspecto temporal e espacial, e por sobrepõe o valor econômico ao valor social do trabalho, contrariamente ao que designa sistematicamente a CF/88.

Mesmo que se tenha conseguido – por muita insistência da oposição na Câmara dos Deputados – resguardar a responsabilidade solidária da empresa tomadora no Projeto de Lei nº 4.330/2004, isso não é capaz de resguardar todos os prejuízos decorrentes da relação de emprego terceirizada, porque a precariedade dessa modalidade de contratação não está apenas na dificuldade de recebimento das verbas rescisórias. A terceirização é, inevitavelmente, um emprego rarefeito. Conceitua-se a expressão pelas palavras de Gabriela Neves Delgado:

O emprego rarefeito é aquele que, apesar da roupagem formal, mediante registro e observância esquemática de direitos trabalhistas, padece de déficit de efetividade normativa, por uma intensidade e por uma qualidade protetiva muito inferior ao padrão constitucionalmente assegurado às relações de emprego diretas, firmadas entre o obreiro e o tomador de serviços.[31]

Por tudo isso, o trabalho terceirizado é inapto a se conformar com os imperativos constitucionais, na medida em que não realiza – pelo contrário, impede – a justiça social e retira o valor e a função social dos empreendimentos econômicos, de modo a não concretizar a dignidade da pessoa humana pelo trabalho, imperativo máximo da CF/88.

Nesse sentido, a expansividade incontrolável do capital pretende, no contexto atual brasileiro e por meio do Projeto de Lei nº 4.330/2004, desconsiderar o direito fundamental ao trabalho, a Constituição e a legislação justrabalhista – uma gama de lutas históricas por reconhecimento – em favor da acumulação incessante que lhe orienta. Trata-se, portanto, de uma forma velada de superação do Estado Democrático de Direito, para que o capital não tenha barreiras para conter seus valores desumanos.

Oculta-se, por meio do Projeto em análise, um autoritarismo, uma vez que é suprimida, com aparência de legitimidade e democracia, a proteção constitucional ao trabalho, a fim de que a classe trabalhadora se submeta aos desígnios do capital globalizado em detrimento de sua dignidade humana.

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