Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Fraude contra credores

Agenda 18/08/2015 às 08:31

Examinamos o instituto da fraude contra credores sob o ponto de vista civil e processual civil.

I – OBJETIVO DO ESTUDO

 É reconhecido o ensinamento de Pontes de Miranda: “a ação dos arts. 106-113, do Código Civil é ação de anulação: a sentença tem eficácia constitutiva-negativa no tocante à existência do ato jurídico; era anulável o ato jurídico, foi anulado e passa a não existir”. O mestre alagoano acentua que a revogação dos atos do falido apenas torna ineficazes os atos, não os anula: os atos são válidos e válidos permanecem, salvo posterior anulação, segundo os princípios das anulabilidades. Diz mais:

“Na execução contra o devedor, não é possível oporem-se – no direito brasileiro – embargos de terceiro com alegação de fraude contra credores, embora se possa alegar com defesa...”

 O estudo presente parte da ilação de que trata-se de ação de anulação que nasce ao titular do crédito prejudicado pelo ato do devedor, que violou dever jurídico (o dever de não dispor do patrimônio a ponto de prejudicar os credores já existentes, que contam com a estabilidade patrimonial, ação civil). Entretanto, necessário será reconhecer seu caráter não anulatório na medida em que o ato, em verdade, é ineficaz, voltando a estudar, data venia, o caráter constitutivo-negativo da ação pauliana, antes regida pelos artigos 106-113 e, hoje, com a Lei n.° 10.406 (“Novo Código Civil”), pelos artigos 158 a 165 sem esquecer-se que o 768 do Código de Processo Civil fala de ação anulatória consorcial, permitindo-se a legitimação extraordinária para qualquer credor. O Novo Código Civil, em seu art. 159, diz que “serão anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante”. Por sua vez, diz no art. 158, que substitui o vetusto art. 106 do Código Civil, que “os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários como lesivos dos seus direitos”.


II – FRAUDE A CREDORES NO DIREITO ROMANO

 No direito clássico, havia a restitutio in integrum, com a actio rescissoria, a favor do bonorum emptor, e o interdictum fraudatorium, que se dava a qualquer credor, de cunho condenatório. A ação pauliana do Digesto, na orientação de Fischer, encampada por Pontes de Miranda, é ação pessoal . Em Butera, os remédios revocatórios, no direito romano, eram: a pauliana, a actio in factum, o interdictum fraudatorium, a restitutio in integrum e a utilis rei vindicatio. Diz Dinamarco que foi um certo pretor Paulo quem incluiu dito remédio em seu édito e daí o nome. Tal a lição de Butera. O que adquiria ao fraudador, devedor, havia de conhecer a fraude, para que contra ele pudesse ir a ação revocatória (L. 10, pr. sciente te). Diverso era o consilium fraudis, se nos atos jurídicos se apanha a intenção. No direito romano, o adquirente era condenado a restituir, a retransferir os direitos reais, inclusive as ações que lhe nasceram, e, se recebesse o pagamento antecipado, devia restituir o commodum medii temporis. Se renunciava ao grau de hipoteca, permitia-se reinstalar-se no grau. Esses conceitos são importantes para os requisitos da pauliana moderna em nosso sistema jurídico.


III – EVENTUS DAMNI, INSOLVÊNCIA, SCIENTIA FRAUDIS E CONSILIUM FRAUDIS. A QUESTÃO DA INEFICÁCIA

 O êxito da ação pauliana depende da configuração do prejuízo sofrido pelo credor que a propõe. Além da prova do prejuízo necessário à demonstração da insolvência (deficit patrimonial) que afeta a garantia de exequibilidade do crédito. O eventus damni (dano) é contemporâneo do ato que se impugna como fraudulento. Não se exige o consilium fraudis, na lei civil, conhecimento que tenha ou que deva ter o devedor do seu estado de insolvência e das consequências do ato lesivo para os credores. O mestre Pontes de Miranda assim conclui:

“O legislador civil satisfez-se, quanto aos atos a título gratuito, com a alegação e prova do estado de insolvência e do eventus damni, e, quanto aos atos jurídicos a título oneroso, com esses pressupostos e a scientia fraudis (por parte do terceiro adquirente).”.

 Essa lição é acompanhada pelo TJSP, Ap. 26.191-1, Rel. Des. Alves Braga, Ac. 16/9/1982, RT 568/44. Objetiva-se o reconhecimento da ineficácia do negócio jurídico. Assim pensam: Nelson Hanada, Cândido Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro Jr. Com isso ter-se-á grande consequência: a procedência da pauliana não levará ao cancelamento da transcrição no registro de imóveis e sim à averbação da decisão (art. 167, II, n.° 12, e 246 da Lei n.°  6.015/73). A sentença retira do negócio jurídico o efeito secundário consistente em suprimir a responsabilidade do bem pela obrigação do alienante perante ele. Essa a conclusão de decisões do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 2.ª C, Ap. n.° 283.667, j. 22-10-81, rel. Cândido Dinamarco, respeitando-se o princípio da continuidade registral, já que respeita-se a continuidade do registro (art. 195, Lei n.°  6.015/73). Não há vício de invalidade, carência intrínseca do negócio. Há ineficácia, um impedimento de caráter extrínseco. O mestre alagoano bem fazia a distinção entre inexistência, invalidade e ineficácia. Critica, categoricamente, Francesco Messineo (Instituzioni di Diritto Civile, I, 220) que não chegaria a compreender que havia diferença entre inexistente e nulo. O que não existe nem é válido, nem inválido, não entrou no mundo jurídico. O nulo é o desconstituível, que não precisa de desconstituição de efeitos. Na invalidade, falta a idoneidade para produzir os efeitos essenciais do tipo, de forma irremovível. Na ineficácia, o ato tem elementos essenciais e pressupostos em ordem, obstando-se à eficácia uma circunstância de fato a ele extrínseca. A inexistência é circunstância fenomenal no plano do ser; na nulidade faltam ao ato um dos seus requisitos essenciais (incapacidade, forma adequada). Há, pois, para a fraude contra os credores reconhecida ineficácia relativa do negócio, ineficaz com relação aos credores, pois o ato alienatório não tem efeitos em face dos credores. Essa a característica dessa ação pessoal: reconhecer a ineficácia do negócio, como os velhos comercialistas reconhecem na revocatória para a falência e o próprio Pontes de Miranda reconhecia para aquele remédio falencial. Presente a scientia fraudis, a prova da insolvência e do eventus damni (alienação onerosa), há previsão de ajuizamento de ação em 4 (quatro) anos do negócio jurídico, o qual a doutrina (art. 178, § 9.°, V, b) prevê como de decadência, direito potestativo. Nos negócios gratuitos não precisa ser provada scientia fraudis. O Código Civil não exigiu o concilium fraudis, pois o tem como presumido no comportamento do devedor que cria ou agrava a insolvência. Reconheceu o Superior Tribunal de Justiça que tudo se resume à ineficácia em relação a terceiro (Ap. 59.048-SP, TFR e REsp 5.307-0-RS, Rel. Min. Athos Gusmão Car-neiro, Ac 16/6/92, Lex – JSTJ 47/113).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

IV – NATUREZA CONSTITUTIVA DA SENTENÇA

 Parece-nos que Cândido Rangel Dinamarco considera tal sentença constitutiva, por ser considerado que a responsabilidade só se efetiva mediante o exercício bem-sucedido da ação pauliana, havendo a grande diferença entre a fraude à execução, em que o prejudicado é o Estado-Juiz, e onde há ineficácia originária do negócio, e a fraude a credor, onde o credor prejudicado tem o ônus de postular a retirada da eficácia secundária dele, de modo que “por força de sentença constitutiva dada na pauliana, aquela responsabilidade excluída por força da alienação se restabeleça e ele possa, então, obter a penhora”. Ineficácia sucessiva e não originária para o caso. Essa é a natureza jurídica. Ajuiza-se uma ação constitutiva. Os critérios propostos por Agnelo Amorim induzem reconhecimento de que serão sujeitas à decadência as ações constitutivas, porque terá havido decadência. É o caso da sentença revogatória que produz nas relações dos interessados uma modificação que é a revogação do ato, restabelecendo-se a responsabilidade do devedor e o débito. No entanto, Theodoro Jr. fala em sentença declaratória, não havendo desconsideração do ato fraudulento e, sim, reconhecimento de sua inoperância.Data venia, a sentença declara a ineficácia relativa do negócio, pois, em todas as sentenças, nota-se sua declaratividade. A responsabilidade excluída, ou força da alienação, é restabelecida pela sentença. Não se trata, pois, de mera declaração de que o negócio jurídico em pauta não prejudica terceiros, como pensam, data venia, Nelson Hanada e Sahid Cahali.


V – LEGITIMIDADE ATIVA E PASSIVA DA AÇÃO PAULIANA

 Legitimado ativo é o credor prejudicado, abstraindo-se de qualquer garantia real que sirva de situação privilegiada. Legitimado passivo é o devedor, pois foi ele quem fraudou. Ao terceiro com scientia fraudis, dá-se legitimidade passiva, pois adquiriu o bem. O beneficiado pelo ato é legitimado passivo. É lição do mestre Pontes de Miranda:

“A ação de anulação pode ser proposta contra o devedor fraudador e o adquirente ou beneficiado; e contra os sub-adquirentes ou sub-beneficiados.”.

 Só os credores que assim eram ao tempo da fraude estão legitimados. Assim era com o art. 106 do velho Código. Data venia não se entenda haver necessidade de litisconsórcio necessário entre o fraudador e o adquirente, são litisconsortes passivos necessários pela letra da lei (velho, art. 109 do CCB) e pela natureza da relação jurídica formada. O devedor é réu na pauliana. Na Alemanha (KO, 139; RanFG, 330), o réu deverá ser não o devedor, mas o terceiro que com ele negociou (adquirente) ou ainda o sucessor particular. Aqui a imposição é de lei.


VI – RECONHECIMENTO DA FRAUDE CONTRA CREDORES EM EMBARGOS DE TERCEIROS

 Na doutrina nacional, não entendem pelo reconhecimento da fraude contra credores nos embargos de terceiro: Rangel Dinamarco (RJTJSP, 97:8-31); Nelson Néry Jr. (Revista de Processo, 23:90); Arruda Alvim (Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo de Conhecimento, Revista dos Tribunais, 1972), dentre outros. Admite o reconhecimento: Nelson Hanada (Da insolvência, p. 101). Uma terceira corrente delineada por Lauro Laertes de Oliveira admite reconhecimento, como questão prejudicial, nos embargos de terceiro. Data venia, a ação própria para apreciar o vício de fraude a credores é a pauliana (REsp n.° 24.311-0, Rel. Min. Cláudio Santos, Ac. de 8/12/93, DJU de 22/3/93, pg. 4538 e REsp 27.903-7/RJ, Rel. Min. Dias Trindade, DJ 22.3.93, p. 4.540). Ratifica-se posição do Pretório Excelso, no RE 102.564, 1.ª  turma, RTJ 111/449, além de outras decisões como RE 103.907-8-SP, RT 595/284. A Corte Especial do Colendo Superior Tribunal de Justiça retirou dúvidas:

“A fraude é discutível em ação pauliana, e não em embargos de terceiro. Precedentes da 1.ª, 3.ª  e 4.ª  turmas e da 2.ª  Seção do STJ” (E. Div. no REsp 46, 192-2-SP).

 É a ação pauliana, ação constitutiva-negativa, o remédio adequado, sendo a ineficácia da alienação fraudulenta superveniente, configurada pela sentença. Assim, não há que falar em embargos de terceiro utilizado pelo adquirente para comprovar a inexistência de fraude à execução.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!