1 INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda o tema dos pressupostos para o controle de constitucionalidade. Portanto, trata de assunto introdutório ao entendimento dos elementos que devam ser existentes em determinado ordenamento jurídico para que se possa caracterizar neste a possibilidade controle de constitucionalidade.
2 OS PRESSUPOSTOS PARA O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
A construção histórico-jurídica acerca das Constituições ensejou a constatação de três pressupostos para efetivação do controle de constitucionalidade: uma Constituição formal; uma Constituição que seja compreendida como norma jurídica fundamental; e, por fim, que preveja a existência de um órgão de controle, um “guardião da Constituição”.[1]
2.1 A CONSTITUIÇÃO FORMAL E ESCRITA
Apesar de a Constituição na concepção formal e escrita serem conceitos correlatos, são distintos[2]. Distintos porque a Constituição escrita é a forma na qual a Constituição se apresenta, é dizer, é a sua forma material, real. Assim, se o conteúdo da Constituição for previsto em um só documento escrito e solene, classificar-se-á de Constituição escrita.
A concepção formal da Constituição, ou Constituição formal, diz respeito à forma como determinado conteúdo será considerado constitucional ou não. À concepção formal será constitucional tudo o quanto se estabelece no Texto Constitucional. E assim o é porquanto a Constituição é o produto do atuar do Poder Constituinte Originário.
Posto isto, se deve entender a Constituição escrita e formal como aquela estabelecida em um só documento, ou Documento Constitucional[3]. Esta espécie de Constituição é o resultado do processo constituinte, ou, de forma mais específica, é o ato final, formalizado e escrito, de um processo constituinte, entendido este como o trâmite procedimental conduzido pelo Poder Constituinte Originário com vistas à elaboração de um Texto constitucional.[4]
Assim, a Constituição formal e escrita é o documento solene e escrito que abarca a Constituição material de um Estado.
A razão de ser para considerar este tipo de Constituição um pressuposto é a segurança jurídica que o texto escrito proporciona, a formalidade que se reveste tal texto, afinal, é fruto da exteriorização do poder soberano e, por fim, a instrumentalização jurídica proporcionada à Constituição, constituindo-se um adicional à Constituição material.
De outro lado, às Constituições materiais e não-escritas tende a viger o princípio da supremacia do parlamento, que veda a “fiscalização dos atos dele decorrentes”.[5]
2.2 A CONSTITUIÇÃO COMO NORMA JURÍDICA FUNDAMENTAL, RÍGIDA E SUPREMA. A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO
A supremacia constitucional, por construção doutrinária, tem dois aspectos: material e formal ou supremacia material e supremacia formal. A material dizendo respeito ao seu conteúdo e a formal consubstanciada em relação à “organicidade, aos procedimentos e competências pelos quais seus preceitos se inter-relacionam com os demais, indicando relação de hierarquia”.[6]
Não se olvida que o conceito de supremacia constitucional é tributário do poder que a origina: o Poder Constituinte Originário. E que esta, a supremacia, se perfaz em um conceito mais amplo do que o de ser um simples conjunto normativo fundamental. O que se afirma aqui é algo específico: se pode encaixar estas duas figuras, quais sejam, a Constituição como um corpo formal e a Constituição como norma jurídica fundamental, como elementos da supremacia constitucional.
De outro lado, é imprescindível um mecanismo lógico-jurídico que fundamente a superioridade das normas da Constituição frente às outras normas. É dizer: seria inócua a proteção a uma dita supremacia constitucional fundamentada em si mesmo. A supremacia, sob um aspecto lógico, decorre de outro instituto: a rigidez constitucional[7].
A rigidez é a forma especial de modificação que as normas constitucionais requerem para que haja a sua alteração. Assim, o parâmetro para a rigidez é a modificação normativa da Constituição pelos órgãos constituídos.[8] Se esta se apresentar sob o mesmo processo modificativo ou até por processo modificativo menos dificultoso em relação às outras normas do ordenamento, não se pode cogitar de uma modificação constitucional rígida.
De outro lado, a questão da rigidez constitucional não pode se encontrar suprimida ou até sob a tutela de outro princípio, como, por exemplo, o da supremacia do Parlamento. Assim é que se faz necessária que a rigidez constitucional seja consentânea com concepções que oportunizem o controle de constitucionalidade, como a concepção da democracia como tutela dos direitos fundamentais e, principalmente, o da supremacia da Constituição. Esta é a conclusão de Gustavo Zagrebelsky:
“(...) a rigidità della costituzione, quando non incontri l'opposizione di altri e piú forti principi, tende naturalmente a promuovere lo sviluppo di forme di controllo sugli atti subordinati, normativi e non normativi, anche quando esse non siano espressamente previste in apposite regole costituzionali”[9]
A questão que o autor coloca é o significado que se dá ao princípio da democracia, que, sendo colocado no confronto entre democracia representativa versus supremacia do parlamento, pode ocasionar a deturpação da rigidez constitucional.
A conclusão é que “o que caracteriza a democracia não é, propriamente, a intervenção do povo na feitura das leis — hoje mera ficção – mas, sim, o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, cuja guarda e defesa incumbe ao Poder Judiciário”[10].
Portanto, a supremacia constitucional é um ponto de equilíbrio entre a legitimidade da justiça constitucional e a democracia dentro do contexto de tensão entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo. É o ponto de equilíbrio porquanto a essência da democracia é a própria vontade soberana do povo, materializada no Poder Constituinte, que previu em seu produto, qual seja, a Constituição, fazer valer a força normativa e a sua supremacia, além de proporcionar a abertura da constituição política do Estado à minoria e o acesso aos direitos fundamentais[11].
Sucede que o pressuposto aqui tratado e o anterior não poderiam ser consolidados de forma eficaz sem uma garantia, e esta restou materializada na previsão de um órgão que tutele a Constituição[12]. Este é o ponto a seguir.
2.3 O ÓRGÃO PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO PARA O EXERCÍCIO DO CONTROLE
A previsão de um órgão jurisdicional pela Constituição se constitui um dos pressupostos para o exercício da sua defesa[13]. O órgão previsto pode ser de natureza política ou jurídica[14]. Se de natureza política é alheio à estrutura do Poder Judiciário: é “órgão de natureza essencialmente política”[15].
Um necessário adendo sobre as correntes acerca da natureza do Tribunal Constitucional. De acordo com José Adércio Leite Sampaio existem três correntes sobre tal tema[16].
A primeira preceitua que tais Cortes seriam, diante da repercussão das suas decisões e diante do fato de seu procedimento não estar adstrito às hipóteses de subsunção ao caso concreto, de natureza eminentemente política. Tal visão não deve ser adotada vez que vincula a atividade jurisdicional à subsunção da norma ao caso concreto, o que é, hodiernamente, insuficiente. O juiz, como já pontuado, tem mais uma função criadora, inovadora, do que uma função de mero aplicador da Lei ao caso concreto.
A segunda corrente estabelece que a natureza destes Tribunais é jurisdicional, porém são Tribunais com a competência de dirimir conflitos políticos, haja vista que os conflitos constitucionais seriam sempre conflitos com fundo político. Assim, o Tribunal valer-se-ia de técnicas e métodos jurídicos para a solução dos conflitos políticos.
Por fim, a terceira corrente é capitaneada pela natureza jurisdicional vinculando a função do Tribunal Constitucional a uma função de legislador negativo. Esta corrente tem como principal doutrinador Hans Kelsen.
De acordo com as premissas adotadas, da Constituição como um reflexo político, porém dotada de normas jurídicas, é de se concluir que o Tribunal Constitucional é um órgão jurisdicional,– porquanto aplique métodos e técnicas nitidamente jurídicas, além de ser composto por membros com o exigido notório saber jurídico, porém as repercussões de suas decisões –, autorizado a exercer uma função política, de governo, diante do quanto legitimado pela Constituição. Logo, tem uma natureza jurisdicional, mas com uma eminente (mas não única) função política.
Dentro dessa classificação, o órgão em si pode ter a natureza de Tribunal Constitucional, quando a sua alocação estrutural é posta fora do Poder Judiciário, sendo órgão especial previsto fora da estrutura do Poder Judiciário, previsto somente para o exercício da jurisdição constitucional; ou Alta Corte, quando o órgão é previsto dentro da estrutura do Poder Judiciário, atuando, a um só tempo, tanto no exercício da jurisdição comum[17], como no exercício da jurisdição constitucional[18].
A natureza diferenciada deste órgão deve ser melhor esclarecida.
De início, cabe digressão acerca da conclusão de Francisco Fernández Segado, que fundamenta a diferença entre os órgãos exercentes da jurisdição constitucional e os demais órgãos nas peculiaridades da estrutura (composição, escolha dos membros etc.) e do processo (a objetividade, a defesa do interesse público e o resultado do exercício desta jurisdição) daqueles[19].
O outro fundamento é a relação entre este órgão jurisdicional e o objeto que tutela, ou o seu paradigma. Assim é que, em lição essencialmente poética, e invocando voto proferido na Corte Italiana, aduz que: “el organo titular de la justicia constitucional aparece como una especie de "continuatore dell'opera dell'Assemblea constituinte””.[20]
Por fim, acerca da distinção de fundamentos, ver-se-á que não há, necessariamente, uma exclusão entre a função jurisdicional e a função política, porquanto pode aquela comportar esta. Assim, a sensibilidade política exigida para as decisões em sede de jurisdição constitucional é cabível dentro do controle jurisdicional. É inegável que, por sua própria natureza e pelo objeto em si tutelado, qual seja, a Constituição, a atuação do Tribunal Constitucional (ou Alta Corte) tem um caráter diferenciado, e até político.
3 CONCLUSÃO
Diante do presente estudo restaram apresentados os elementos mínimos necessários para a formação do controle de constitucionalidade. No caso brasileiro, se tem a plena existência desses elementos, fato que permite o exercício do controle de constitucionalidade no Brasil, que vem ganhando corpo e relevância na formatação do ordenamento jurídico brasileiro.
REFERÊNCIAS
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Notas
[1] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade: teoria e prática. Salvador, BA: Juspodivm, 2010, p. 40 et seq. BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O contrôle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1949, p. 09-10. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 23 et seq.
[2] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. Salvador, BA: JusPodivm, 2008, Anotando uma igualdade entre os conceitos, tem-se CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 1995.
[3] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade: teoria e prática. Salvador, BA: Juspodivm, 2010, p. 43 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 1995, p. 29-30. Antonio M. García Cuadrado admite a possibilidade, embora rara, de haver mais de um texto constitucional, em sua concepção, Constituição em sentido formal deve ser entendida como: “texto (o textos, porque en algunas raras ocasiones son más de uno) que recogen la Constitución -con minúscula - material de ese Estado”. CUADRADO, Antonio M. García. Derecho, Estado y Constitución: El estatuto científico y otros temas. San Vicente: Editorial Club Universitario, 2014, p. 241.
[4] “En un sentido estricto se denomina proceso constituyente a los diferentes passos o trámites que sigue el proyecto de un Texto constitucional” Idem, p. 277.
[5] CUNHA JUNIOR, Dirley da., Idem., p. 41
[6] PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade. 2ª Ed., São Paulo: RT, 2001, p. 22.
[7] De acordo com Gustavo Zagrebelsky: "La "rigidità" della costituzione è il pressupposto dell'inzione di un controllo sulla legislazione destinato all'eliminazione delle fonti ad essa subordinate e con essa incompatibili". Zagrebelsky, Gustavo. La giustizia constitucionale. Bologna: Il Mulino, 1977, p. 18.
[8] Conceito adotado com base na obra de Hesse, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 46.
[9] Zagrebelsky, Gustavo. La giustizia constitucionale. Bologna: Il Mulino, 1977, p. 18 et seq.
[10] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade: teoria e prática. Salvador, BA: Juspodivm, 2010, p. 46.
[11] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade: teoria e prática. Salvador, BA: Juspodivm, 2010, p. 60. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 56.
[12] PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade. 2ª Ed., São Paulo: RT, 2001, p. 64-71. CUNHA JUNIOR, Dirley, loc. cit. op. cit., p. 39
[13] Zagrebelsky, Gustavo. La giustizia constitucionale. Bologna: Il Mulino, 1977, p. 19.
[14] CUNHA JUNIOR, Dirley. loc. cit. op. cit., p. 43
[15] CUNHA JUNIOR, Dirley., idem.
[16] Sampaio, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 60.
[17] Seria um órgão de convergência de acordo com a doutrina processualista
[18] CUNHA JUNIOR. op. cit., p. 104
[19] SEGADO, Francisco Fernández. La Evolución de la Justicia Constitucional. Madrid: Editorial Dykinson, p. 1272.
[20] SEGADO, Francisco Fernández. La Evolución de la Justicia Constitucional. Madrid: Editorial Dykinson, p. 1272 et. seq.