A Lei 10.409, de 11 de janeiro de 2002, prevê em seu artigo 37, IV, a possibilidade de deixar de propor a Ação Penal contra os agentes ou partícipes de delitos. Dessa possibilidade, uma importante questão vem sendo sucitada: Tal dispositivo não fere o princípio da indisponibilidade da ação penal?
Antes de adentrar para a questão propriamente dita, entendo importante transcrever o texto da lei a que se refere a indagação, para, então, com amparo neste, emitir o meu ponto de vista a respeito do questionamento.
Diz o artigo 37:
Art. 37. Recebidos os autos do inquérito policial em juízo, dar-se-á vista ao Ministério Público para, no prazo de 10 (dez) dias, adotar uma das seguintes providências:
I – requerer o arquivamento;
II – requisitar as diligências que entender necessárias;
III – oferecer denúncia, arrolar até 5 (cinco) testemunhas e requerer as demais provas que entender pertinentes;
IV – deixar, justificadamente, de propor ação penal contra os agentes ou partícipes de delitos.
Ao meu ver, o inciso IV enseja dúvidas não só quanto ao princípio da indisponibilidade da ação penal, como da indivisibilidade, pois refere-se não só ao agente, como ao partícipe. No entanto, com a devida vênia dos entendimentos divergentes, mesmo porque, em pesquisa, não encontrei nenhuma doutrina defendendo um ou outro posicionamento, entendo que, embora possa ensejar o entendimento de que tal dispositivo, de fato, fere o princípio da indisponibilidade e indivisibilidade da ação penal pública, analiso ampla e modernamente o princípio da indisponibilidade, no intuito de demonstrar que tal agressão não é absoluta.
Partamos da máxima de que a atuação do Ministério Público no processo penal é dúplice — como dominus litis e, simultaneamente, como custos legis. Por tal razão, além de ser órgão acusador, o membro do MP tem legitimidade e, se for o caso, o dever de recorrer em favor do réu, requerer-lhe benefícios etc. Por isso, o MP não se enquadra como "parte" no processo penal, constituindo-se apenas como órgão constitucional encarregado de expor fatos criminais e representar o interesse social na sua apuração e, se cabível, na responsabilização penal do seu autor.
Por um lado, dispõe o Código de Processo penal que o Ministério Público não poderá desistir da ação penal (art. 42) e, por outro, estabelece o mesmo diploma legal que o Ministério Público promoverá e fiscalizará a execução da lei (art. 257). Mister se faz enxergar que não se trata de desistência, posto ainda não ter recebido a denúncia, quanto ao mérito do crime, o que lhe é vedado, mas quanto à viabilidade acusatória e, ainda assim, o não recebimento da denúncia deverá ser justificado, como diz o dispositivo. Ao meu ver, trata-se de um verdadeiro juízo de admissibilidade da denúncia onde são examinadas as condições da ação e a definição do quadro probatório.
Sendo assim, uma vez constatado fato material ou processual a justificar o abortamento da ação penal que motivou, o Ministério Público não se poderá quedar inerte. Se a lei lhe atribuiu a incumbência de custos legis, certamente lhe deve também atribuir instrumentos para o seu exercício. Daí se pergunta — verificando que não há justa causa para o prosseguimento da ação penal, como deve atuar o promotor ou procurador?
Em face da aparente contradição entre a conduta do membro do MP que, como autor, não pode desistir da ação penal e, ao mesmo tempo, como fiscal da lei, não pode concordar com o prosseguimento de uma ação inviável juridicamente, a única intelecção que entendo ser cabível quanto ao princípio da obrigatoriedade da ação penal é a de que o Ministério Público não poderá desistir da ação penal se reconhecer que ela é viável, ou seja, se houver justa causa para a sua promoção.
Ocorrendo o inverso, isto é, reconhecendo o promotor que a ação é injusta, tem o dever de requerer a sua não instauração, a meu ver, com aplicação subsidiária do art. 267, VI e VIII, do Código de Processo Civil, sob pena de estar aquiescendo com a existência de uma ação penal injusta e de estar promovendo o desperdício dos esforços e serviços do Judiciário.
Não obstante tratar-se da nova lei de tóxicos, o que me faz entender a sua importância e periculosidade procedimental, principalmente no que se refere à disponibilidade da instauração da ação penal, não poderia fazer olhos mortos à doutrina moderna que já encabeça a flexibilização dos princípios, com o intuito de diminuir a rigidez e aprimorar a aplicação das leis e do direito, em busca de uma justiça mais célere e eficaz.
De todo o exposto, e com base nos argumentos ora analisados, creio que tal dispositivo não fere o princípio da indisponibilidade da ação penal.
Dentro deste mesmo prisma, outra indagação que vem se problematizando, uma vez que esta lei é vista tão "permissiva" ao MP, se por isso não estaria admitindo a possibilidade de o Ministério Público barganhar com o traficante.
Ora, sempre que falarmos de uma pessoa natural representando uma instituição, estaremos propícios à falibilidade e corrupção humana. No entanto, se generalizarmos tal concepção, não teremos segurança não só no Promotor, mas no Juiz, no Desembargador, no Ministro, enfim, na aplicação da justiça.
A indagação quanto à possibilidade de o MP barganhar com o traficante surge com o advento dessa Lei que flexibiliza um princípio, até então, rígido – o princípio da indisponibilidade da ação penal pública -. Porém, não podemos esquecer, que, mesmo antes da possibilidade de o MP não propor a ação penal, já havia a possibilidade dele pleitear o arquivamento do inquérito. Se o temor está na possibilidade de barganha junto ao traficante, não poderia ele também barganhar para pleitear pelo arquivamento do inquérito?
É certo e lógico que o artigo 28 do Código Penal diz que se o Promotor, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ao Procurador-Geral e este oferecerá a denúncia, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então, o juiz estará obrigado a ceder.
Mas, vejamos, o inciso IV da Lei 10.409/00, não diz que o Promotor poderá a seu bel prazer deixar de propor a ação penal, mas que esta recusa deverá ser justificada,
Outrossim, relativamente ao inquérito, se ainda houver o questionamento de que o juiz o enviará ao Procurador-Geral para que este ofereça a denúncia, não podemos esquecer de que este também poderá insistir no pedido de arquivamento e o juiz então, estará obrigado a atender. Logo, se o Ministério Público tiver o intuito de barganhar, poderá faze-lo, independente da nova lei.
É certo, não posso negar, que com a mobilidade que a lei proporciona ao MP, à primeira vista, podemos sentir que a barganha está facilitada, mas estou certa que não é o advento dessa que vai aventar tal possibilidade, pois, como já sustentei, a recusa do MP não será um ato discricionário e livre do dever de motivação.
O que precisamos é acreditar na seriedade e compromisso que o Ministério Público tem para com a sociedade e o bem comum, partindo do princípio de que, como fiscal da lei, não será ele quem vai burla-la.