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A nova Lei de tóxicos e o princípio da indisponibilidade da ação penal

15/09/2003 às 00:00
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A Lei 10.409, de 11 de janeiro de 2002, prevê em seu artigo 37, IV, a possibilidade de deixar de propor a Ação Penal contra os agentes ou partícipes de delitos. Dessa possibilidade, uma importante questão vem sendo sucitada: Tal dispositivo não fere o princípio da indisponibilidade da ação penal?

Antes de adentrar para a questão propriamente dita, entendo importante transcrever o texto da lei a que se refere a indagação, para, então, com amparo neste, emitir o meu ponto de vista a respeito do questionamento.

Diz o artigo 37:

Art. 37. Recebidos os autos do inquérito policial em juízo, dar-se-á vista ao Ministério Público para, no prazo de 10 (dez) dias, adotar uma das seguintes providências:

I – requerer o arquivamento;

II – requisitar as diligências que entender necessárias;

III – oferecer denúncia, arrolar até 5 (cinco) testemunhas e requerer as demais provas que entender pertinentes;

IV – deixar, justificadamente, de propor ação penal contra os agentes ou partícipes de delitos.

Ao meu ver, o inciso IV enseja dúvidas não só quanto ao princípio da indisponibilidade da ação penal, como da indivisibilidade, pois refere-se não só ao agente, como ao partícipe. No entanto, com a devida vênia dos entendimentos divergentes, mesmo porque, em pesquisa, não encontrei nenhuma doutrina defendendo um ou outro posicionamento, entendo que, embora possa ensejar o entendimento de que tal dispositivo, de fato, fere o princípio da indisponibilidade e indivisibilidade da ação penal pública, analiso ampla e modernamente o princípio da indisponibilidade, no intuito de demonstrar que tal agressão não é absoluta.

Partamos da máxima de que a atuação do Ministério Público no processo penal é dúplice — como dominus litis e, simultaneamente, como custos legis. Por tal razão, além de ser órgão acusador, o membro do MP tem legitimidade e, se for o caso, o dever de recorrer em favor do réu, requerer-lhe benefícios etc. Por isso, o MP não se enquadra como "parte" no processo penal, constituindo-se apenas como órgão constitucional encarregado de expor fatos criminais e representar o interesse social na sua apuração e, se cabível, na responsabilização penal do seu autor.

Por um lado, dispõe o Código de Processo penal que o Ministério Público não poderá desistir da ação penal (art. 42) e, por outro, estabelece o mesmo diploma legal que o Ministério Público promoverá e fiscalizará a execução da lei (art. 257). Mister se faz enxergar que não se trata de desistência, posto ainda não ter recebido a denúncia, quanto ao mérito do crime, o que lhe é vedado, mas quanto à viabilidade acusatória e, ainda assim, o não recebimento da denúncia deverá ser justificado, como diz o dispositivo. Ao meu ver, trata-se de um verdadeiro juízo de admissibilidade da denúncia onde são examinadas as condições da ação e a definição do quadro probatório.

Sendo assim, uma vez constatado fato material ou processual a justificar o abortamento da ação penal que motivou, o Ministério Público não se poderá quedar inerte. Se a lei lhe atribuiu a incumbência de custos legis, certamente lhe deve também atribuir instrumentos para o seu exercício. Daí se pergunta — verificando que não há justa causa para o prosseguimento da ação penal, como deve atuar o promotor ou procurador?

Em face da aparente contradição entre a conduta do membro do MP que, como autor, não pode desistir da ação penal e, ao mesmo tempo, como fiscal da lei, não pode concordar com o prosseguimento de uma ação inviável juridicamente, a única intelecção que entendo ser cabível quanto ao princípio da obrigatoriedade da ação penal é a de que o Ministério Público não poderá desistir da ação penal se reconhecer que ela é viável, ou seja, se houver justa causa para a sua promoção.

Ocorrendo o inverso, isto é, reconhecendo o promotor que a ação é injusta, tem o dever de requerer a sua não instauração, a meu ver, com aplicação subsidiária do art. 267, VI e VIII, do Código de Processo Civil, sob pena de estar aquiescendo com a existência de uma ação penal injusta e de estar promovendo o desperdício dos esforços e serviços do Judiciário.

Não obstante tratar-se da nova lei de tóxicos, o que me faz entender a sua importância e periculosidade procedimental, principalmente no que se refere à disponibilidade da instauração da ação penal, não poderia fazer olhos mortos à doutrina moderna que já encabeça a flexibilização dos princípios, com o intuito de diminuir a rigidez e aprimorar a aplicação das leis e do direito, em busca de uma justiça mais célere e eficaz.

De todo o exposto, e com base nos argumentos ora analisados, creio que tal dispositivo não fere o princípio da indisponibilidade da ação penal.

Dentro deste mesmo prisma, outra indagação que vem se problematizando, uma vez que esta lei é vista tão "permissiva" ao MP, se por isso não estaria admitindo a possibilidade de o Ministério Público barganhar com o traficante.

Ora, sempre que falarmos de uma pessoa natural representando uma instituição, estaremos propícios à falibilidade e corrupção humana. No entanto, se generalizarmos tal concepção, não teremos segurança não só no Promotor, mas no Juiz, no Desembargador, no Ministro, enfim, na aplicação da justiça.

A indagação quanto à possibilidade de o MP barganhar com o traficante surge com o advento dessa Lei que flexibiliza um princípio, até então, rígido – o princípio da indisponibilidade da ação penal pública -. Porém, não podemos esquecer, que, mesmo antes da possibilidade de o MP não propor a ação penal, já havia a possibilidade dele pleitear o arquivamento do inquérito. Se o temor está na possibilidade de barganha junto ao traficante, não poderia ele também barganhar para pleitear pelo arquivamento do inquérito?

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É certo e lógico que o artigo 28 do Código Penal diz que se o Promotor, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ao Procurador-Geral e este oferecerá a denúncia, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então, o juiz estará obrigado a ceder.

Mas, vejamos, o inciso IV da Lei 10.409/00, não diz que o Promotor poderá a seu bel prazer deixar de propor a ação penal, mas que esta recusa deverá ser justificada,

Outrossim, relativamente ao inquérito, se ainda houver o questionamento de que o juiz o enviará ao Procurador-Geral para que este ofereça a denúncia, não podemos esquecer de que este também poderá insistir no pedido de arquivamento e o juiz então, estará obrigado a atender. Logo, se o Ministério Público tiver o intuito de barganhar, poderá faze-lo, independente da nova lei.

É certo, não posso negar, que com a mobilidade que a lei proporciona ao MP, à primeira vista, podemos sentir que a barganha está facilitada, mas estou certa que não é o advento dessa que vai aventar tal possibilidade, pois, como já sustentei, a recusa do MP não será um ato discricionário e livre do dever de motivação.

O que precisamos é acreditar na seriedade e compromisso que o Ministério Público tem para com a sociedade e o bem comum, partindo do princípio de que, como fiscal da lei, não será ele quem vai burla-la.

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Sobre a autora
Luciane Mara da Silva

servidora pública em Cuiabá (MT), bacharela em Direito pela Universidade de Cuiabá (UNIC), especializanda em Direito Processual Civil Avançado pela Escola Superior de Direito de Mato Grosso (ESUD)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luciane Mara. A nova Lei de tóxicos e o princípio da indisponibilidade da ação penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 74, 15 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4220. Acesso em: 24 nov. 2024.

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