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A inconstitucionalidade da indenização devida pelos oficiais militares que são aprovados em concurso público civil

Agenda 14/09/2015 às 09:17

Este artigo defende a inconstitucionalidade da Lei nº 9.297, de 1996, que instituiu a possibilidade de as forças armadas cobrarem indenizações por cursos de formação de oficiais militares que são aprovados em concurso público civil.

O Estatuto dos Militares (Lei 6.880/1980) prevê, desde sua promulgação, que a demissão a pedido dos oficiais militares só será concedida mediante requerimento do interessado. Nesse sentido, o artigo 116 da norma estabelece duas possibilidades: sem e com indenização aos cofres públicos. Se o militar contar mais de cinco anos de oficialato, regra geral, não será devida qualquer indenização aos cofres públicos; se o prazo for menor que cinco anos, deverá indenizar as despesas feitas pela União com a sua preparação e formação.

Diz-se “regra geral” porque, mesmo contando com mais de cinco anos de oficialato, o oficial pode ser compelido a ressarcir os cofres públicos na hipótese em que realizar curso ou estágio, no país ou no exterior, e não tiver decorrido os seguintes prazos, todos definidos no § 1º do art. 116 da Lei 6.880/1980:

a) 2 (dois) anos, para curso ou estágio de duração igual ou superior a 2 (dois) meses e inferior a 6 (seis) meses;

b) 3 (três) anos, para curso ou estágio de duração igual ou superior a 6 (seis) meses e igual ou inferior a 18 (dezoito) meses;

c) 5 (cinco) anos, para curso ou estágio de duração superior a 18 (dezoito) meses.

Nesse sentido, se o militar tiver menos de 5 anos de exercício e realizar curso ou estágio nos prazos anteriormente delimitados, ele deverá indenizar as despesas feitas pela União com a sua preparação e formação, além da quantia despendida com a capacitação realizada.

Todas essas hipóteses tratam da demissão a pedido, isto é, aquela em que o militar de livre e espontânea vontade pede desligamento dos quadros funcionais a que pertence. Posteriormente, a Lei nº 9.297/1996 inovou no mundo jurídico e estendeu as consequências da demissão a pedido para as hipóteses de desligamento ex-officio, como é o caso em que o oficial da ativa passa a exercer cargo ou emprego público permanente, estranho à sua carreira. Dito de outro modo, a partir do ano de 1996, os oficiais que forem aprovados em concurso público civil também estarão sujeitos ao dever de indenizar os cofres públicos.

Pretende-se demonstrar neste artigo que se trata de uma inovação legislativa inconstitucional. Alguns argumentos, como o do ensino gratuito, também podem ser aproveitados nas hipóteses de demissão a pedido. Todavia, o foco deste trabalho será analisar a hipótese de demissão ex-officio.

Da inconstitucionalidade do art. 117 da Lei 8.660/1980 (Acrescentado pela Lei nº 9.297/1996)

Como já afirmado, a demissão ex-officio, conforme orientação do art. 117 do Estatuto dos Militares, acontece quando o oficial passa a exercer cargo ou emprego público permanente, estranho a sua carreira. Entretanto, deve-se destacar a existência de vício formal insanável na inovação trazida pela Lei nº 9.297/1996.

Na época em que foi editada a Lei nº 9.297/1996, o art. 42, § 3º, da Constituição Federal tinha a seguinte redação:

Art. 42. São servidores militares federais os integrantes das Forças Armadas e servidores militares dos Estados, Territórios e Distrito Federal os integrantes de suas polícias militares e de seus corpos de bombeiros militares:

(...)

§ 3º. O militar em atividade que aceitar cargo público civil permanente será transferido para a reserva.

(Grifou-se)

É preciso destacar algumas consequências do mencionado dispositivo constitucional. Primeiro, bastava a aceitação do cargo civil permanente para que o militar fosse transferido para a reserva. Ou seja, o poder constituinte originário não impôs qualquer requisito adicional para que a transferência se operasse. Nem foi delegada a tarefa ao legislador originário para que viesse a estabelecer novos requisitos, como a exigência de indenização aos cofres públicos federais. Trata-se, portanto, de norma constitucional de eficácia plena.

Por se tratar de norma constitucional, eventuais alterações no procedimento de demissão ex-officio do militar só podem ser feitas via emenda constitucional, não por meio da Lei nº 9.297/1996. Trata-se de espécies normativas distintas que possuem diferentes procedimentos legislativos para aprovação. Ademais, como é cediço, as emendas constitucionais necessitam de quórum qualificado para aprovação e, por isso, são consideradas de maior estabilidade.

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Portanto, a inclusão de um requisito (indenização) por meio de lei ordinária fere a hierarquia normativa estabelecida na tradicional pirâmide de Hans Kelsen, razão pela qual se reputa inconstitucional mencionada norma.

Por sinal, em 1998, ou seja, dois anos após a edição da Lei nº 9.297/1996, sobreveio a Emenda Constitucional 18/1998. A reforma deu nova redação ao artigo 42 da Constituição Federal de 1988, suprimindo o § 3º. Por outro lado, a matéria suprimida foi inserida no art. 142 da Carta Magna, mas com a seguinte composição:

§ 3º. Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições:

(...)

II - o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente será transferido para a reserva, nos termos da lei;

(Grifou-se)

Percebe-se que a referida emenda constitucional passou a permitir que a lei regulamentasse a transferência para a reserva do militar que tomasse posse em cargo ou emprego civil. Todavia, posterior alteração constitucional não pode ser utilizada para convalidar lei inconstitucional, eis que o vício foi constatado na origem. Dito de outro modo, a norma legal é nula desde sua promulgação, sobretudo porque o nosso ordenamento jurídico não admite a tese da constitucionalidade superveniente.

O Egrégio Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar sobre a matéria, tendo vazado decisão nos seguintes termos:

CONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE - ARTIGO 3º, § 1º, DA LEI Nº 9.718, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1998 - EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20, DE 15 DE DEZEMBRO DE 1998. O sistema jurídico brasileiro não contempla a figura da constitucionalidade superveniente. TRIBUTÁRIO - INSTITUTOS - EXPRESSÕES E VOCÁBULOS - SENTIDO. A norma pedagógica do artigo 110 do Código Tributário Nacional ressalta a impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance de consagrados institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados expressa ou implicitamente. Sobrepõe-se ao aspecto formal o princípio da realidade, considerados os elementos tributários. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL - PIS - RECEITA BRUTA - NOÇÃO - INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ARTIGO 3º DA LEI Nº 9.718/98. A jurisprudência do Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à Emenda Constitucional nº 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. É inconstitucional o § 1º do artigo 3º da Lei nº 9.718/98, no que ampliou o conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da classificação contábil adotada.(RE 346084, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/11/2005, DJ 01-09-2006 PP-00019 EMENT VOL-02245-06 PP-01170)

Nessa decisão, destaca-se trecho do Voto proferido pelo E. Relator, Ministro Sepúlveda Pertence:

“Na ADIn 2, defendi, exaustivamente neste Tribunal, o conceito de inconstitucionalidade superveniente, fundado, sobretudo, na novação que uma Constituição superveniente traz ao fundamento de validade das leis pré-constitucionais. Mas, a recíproca não é verdadeira: norma constitucional superveniente não pode constitucionalizar lei anterior, inconstitucional ao tempo de sua edição, ao menos enquanto vigorar o nosso conceito arraigado de inconstitucionalidade – nulidade”. (grifo e negrito nosso)

Da gratuidade do ensino em instituições públicas oficiais

A formação de oficiais nas escolas militares não deixa de ser uma espécie de ensino. Não sem razão, após a conclusão dos cursos, os certificados conferidos aos oficiais militares gozam status de diploma de nível superior, sendo inclusive reconhecidos pelo Ministério da Educação e Cultura.

A Constituição de 1988 destinou um capítulo específico para a educação, a cultura e o desporto. Nele, estabeleceu princípios que devem ser observados não apenas pelo legislador ordinário, mas também pelos governantes e demais administradores públicos do Poder Executivo Federal. Cita-se, com destaque, para o disposto no art. 206, inciso IV, segundo o qual prevê a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais.

Ao prever a indenização dos cursos nas forças armadas, sem dúvida o legislador ordinário ignorou frontalmente o preceito constitucional. Por certo, como defende Ronald Dworkin, os princípios constituem mandados de otimização que, a depender do caso concreto, incidem em menor ou maior grau. Todavia, não se vislumbram razões legítimas para cobrar pelo valor dos cursos de formação, sobretudo diante da gratuidade do ensino prestado em instituições oficiais, como é o caso das forças armadas.

A persistir o entendimento de que é devida a indenização, viola-se, também, o princípio da igualdade – direito fundamental previsto no art. 5º da Constituição de 1988. Ora, se um aluno de uma universidade pública, seja federal ou estadual, não restitui aos cofres públicos os custos devidos em razão de sua habilitação profissional, por que razão o militar deveria indenizar as despesas que as forças armadas tiveram com a formação dele?

A indenização se torna ainda mais inconstitucional quando se percebe que o militar desligado continua prestando serviços ao poder público, agora em razão da posse em cargo ou emprego público civil. Não sem razão, ao tratar de servidores que continuam prestando serviço ao mesmo poder (União), o Parecer nº GQ – 142/98 da lavra do então Advogado-Geral da União, publicado no Diário Oficial de União de 20 de março de 1998, fez as seguintes considerações:

“(...)Assinale, por oportuno, que a situação do servidor da Administração Pública (lato sensu) é, modernamente, a de um profissional. Não constitui, pois, elemento susceptível de causar espécie o fato de um técnico deixar de prestar serviços a uma entidade (ou órgão) para servir a outra, desde que ambas pertençam à estrutura organizacional da União. Dessa forma, a concepção restrita de que determinado servidor público, favorecido por uma bolsa de estudo (ou por outro curso realizado no país), forçosamente, terá que retornar à origem para aplicar seus conhecimentos adquiridos e, ao contrário, por conveniências ou circunstâncias outras, resolve aplicá-los em outra entidade (ou órgão) não é correta, porquanto são servidores públicos todos quantos estejam relacionados com o Estado, em suma, com a Administração Pública, esta tomada em sua generalidade (...)

O que, porém, de verdade deve interessar à Administração Pública Federal é que foi mantido seu vínculo funcional com a União, sendo despiciendo dizer que a ele não se aplicam as disposições ínsitas nos arts. 46 e 47 da Lei 8.112/90, uma vez que a indenização neles prevista somente se aplicaria se o servidor em tela houvesse se desligado definitivamente do serviço público para prestar serviço, por exemplo, à iniciativa privada.

Ai se afirma, então, uma realidade: os órgãos e entidades públicos coexistem, se adjutoram mutuamente, sendo impossível distinguir as fronteiras entre suas necessidades e carências, mesmo porque todos se valem da União (mater generale) para socorrê-los nas fases agônicas, como por exemplo, nas de insolvências ou de definhamento financeiro.(...)”

Tal Parecer foi aprovado pelo Presidente da República, o que, nos termos dos artigos 40 e 41 da Lei Complementar nº 73/93, vincula a Administração Federal e todos os seus órgãos e entidades, conforme expresso nos artigos 39, 40 e 41 da Lei Complementar nº 73/93:

“Art. 39. É privativo do Presidente da República submeter assuntos ao exame do Advogado-Geral da União, inclusive para seu parecer.

Art. 40. Os pareceres do Advogado-Geral da União são por este submetidos à aprovação do Presidente da República.

§ 1o O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento. (Grifou-se.)

(...)

Art. 41. Consideram-se, igualmente, pareceres do Advogado-Geral da União, para os efeitos do artigo anterior, aqueles que, emitidos pela Consultoria-Geral da União, sejam por ele aprovados e submetidos ao Presidente da República.”


Conclusão

Tendo em vista os argumentos expendidos neste trabalho, resta patente a inconstitucionalidade da Lei nº 9.297/1996, que deu nova redação ao artigo 117 da Lei nº 6.880/1980. Por meio dessa alteração legislativa, passou-se a exigir indenização dos oficiais militares que tomassem posse em cargo ou emprego público civil não acumulável, quando incidisse nas hipóteses do art. 116 da Lei 8.660/1980. Isso porque as inovações agregadas pela Lei nº 9.297/96 carregam vício insanável por ofensa ao artigo 42, § 3º, da Constituição Federal. Ademais, a doutrina e a jurisprudência brasileira não admitem a figura da constitucionalidade superveniente.

A inconstitucionalidade não se limita a isso. Como visto, a cobrança da indenização pela formação militar viola o postulado da gratuidade do ensino em instituições públicas oficiais (art. 206, inciso IV, da Constituição), bem como o princípio da isonomia/igualdade.


Bibliografia

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Constitucional. Recurso Extraordinário RE 346084. Relator Ministro Ilmar Galvão, Relator para Acórdão: Ministro Marco Aurélio. Tribunal Pleno. Brasília, DF, 9 de novembro de 2005.  Acesso em: 17 de junho de 2015.

BRASIL. Advocacia-Geral da União. Parecer nº GQ – 142/98. Consultor L. A. Paranhso Sampaio. Brasília, DF, 30 de outubro de 1998. Acesso em 17 de junho de 2015. 

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2005.            _______. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3.ED.,. São Paulo: Malheiros, 1998.

Sobre o autor
Daniel Miranda Barros Moreira

Engenheiro de Infraestrutura Aeronáutica formado no Instituto de Tecnologia da Aeronáutica e Advogado formado na Universidade de Brasília

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Daniel Miranda Barros. A inconstitucionalidade da indenização devida pelos oficiais militares que são aprovados em concurso público civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4457, 14 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42207. Acesso em: 27 dez. 2024.

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