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Alguns aspectos sobre a fraude contra credores

Agenda 11/09/2015 às 11:50

O estudo analisa as hipóteses da fraude contra credores. Para tanto, o instituto será aprofundado sob diversos aspectos, enfatizando as questões mais controvertidas, que se revelam nas variadas interpretações formadas na doutrina e na jurisprudência.


Resumo: O presente estudo analisa as hipóteses da fraude contra credores. Para tanto, o instituto será aprofundado sob diversos aspectos, enfatizando as questões mais controvertidas, que se revelam nas variadas interpretações formadas na doutrina e na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, procurando dirimir as dúvidas quanto aos aspectos práticos e teóricos do tema. Cuida-se, em última perspectiva, de mecanismo para garantia da efetividade processual, que encontra limitação frente aos interesses do terceiro.


Palavras-chave: Direito processual civil. Direito civil. Fraude. Ineficácia.


Abstract: This study analyzes the hypotheses of implementation of fraud. To do so, the institute will be examined from various aspects, emphasizing the most controversial issues, which are revealed by different interpretations formed in doctrine and Superior Court of Justice’s jurisprudence, seeking to resolve doubts about theorical and practical aspects. After all, in final perspective, it is a mechanism to guarantee the procedural effectiveness, which is limited by third person’s interests.


Keywords: Civil procedural law. Civil. Law. Fraud. Ineffectiveness.

1 Introdução

O ordenamento jurídico procura reprimir atos do devedor que tenham por finalidade frustrar, total ou parcialmente, a satisfação de suas obrigações perante os credores. Fala-se em “atos fraudulentos do devedor”, que podem caracterizar a “fraude contra credores”, “fraude à execução” ou “disposição de bens constritos judicialmente”.

Como regra, a integralidade do patrimônio do devedor constitui verdadeira garantia para a satisfação dos créditos em geral. Embora a faculdade de disposição dos bens seja inerente à propriedade (artigo 1.228, “caput”, 1ª parte, do Código Civil),i não pode ser exercida de modo a frustrar os créditos de terceiros. Para evitar atos fraudulentos, o sistema jurídico se arma de meios para o controle da livre disponibilidade e administração de bens pelo devedor para, conquanto seja permitida a disposição de coisas e direitos que integram o seu patrimônio, impedir que, com isso, venha a se prejudicar os credores. Preserva-se o direito de disposição da coisa (própria do titular do domínio), desde que isso não atinja a segurança dos créditos de terceiros, isto é, há um limite na disposição dos bens imposto a todo devedor.ii

A despeito de o devedor não perder a faculdade de dispor de seus bens, por ausência de previsão legal neste sentido, não pode agir de modo a dilapidar a garantia patrimonial existente no momento da assunção da dívida.iii Desta maneira, coube ao legislador encontrar meios para tutelar
dois interesses igualmente relevantes – a plena satisfação do direito de crédito e a continuidade da vida do devedor –, criando situações nas quais se presume o prejuízo aos credores com a consequente decretação da ineficácia ou invalidade de certos atos ou negócios jurídicos praticados pelo devedor.iv

Colhe-se dos ensinamentos de Caio Mário da Silva Pereira que é fraude toda e qualquer “manobra engendrada com o fito de prejudicar terceiro”, de indispensável elemento subjetivo consistente no propósito de causar um prejuízo à terceira pessoa.v Yussef Said Cahali, seguindo lição de Clóvis Beviláqua, também sustenta que “a fraude caracteriza-se pela má-fé e pelo ânimo de prejudicar terceiro”.vi

Pontes de Miranda, por outro lado, afirma que fraudar é “apenas violar indiretamente. Qualquer elemento subjetivo que se intrometa provém de confusão com outros elementos do suporte fático das regras jurídicas sobre fraude”.vii
Frederico F. S. Cais identifica uma incorreção na definição dada por Caio Mário, pois o elemento subjetivo (o “fito de prejudicar terceiro”) não é elemento integrante do conceito de fraude, a não ser que o ordenamento jurídico o exija à parte. Tome-se, como exemplo, o casal que decide fraudar a lei, com propósito de anular o seu casamento, ao falso argumento de erro essencial quanto à pessoa (artigo 1556 do Código Civil). Neste caso, a persecução do resultado ilícito ocorre sem a finalidade de prejudicar terceira pessoa.viii

Deste modo, o elemento subjetivo é absolutamente irrelevante para a caracterização da fraude, salvo quando o próprio ordenamento jurídico, à parte, considere-o elemento essencial, conforme observado por Pontes de Miranda.
As fraudes contra o direito de crédito podem se dar antes do início do processo (fraude contra credores) ou durante o seu curso, ou seja, depois de iniciada a relação jurídica processual (fraude de execução e disposição de bens constritos). A primeira delas, exoprocessual, é a mais branda porque não atenta contra o poder estatal, demandando ajuizamento de ação específica (pauliana). Já as duas outras modalidades, endoprocessuais, são mais graves por também atingirem o Estado e, no último caso, a autoridade que determinou a constrição judicial do bem; por isso, admitem o seu reconhecimento nos próprios autos em que verificadas.ix

2 Linhas gerais da fraude contra credores
 

O Código Civil de 1916, cujo projeto é do final do século XIX, não diferenciava negócio de ato jurídico.x Somente com maiores aprofundamentos por parte da doutrina alemã que se chegou à conceituação daquele.xi Para Orlando Gomes, representa toda e qualquer “declaração de vontade destinada à produção de efeitos jurídicos correspondentes ao intento prático do declarante, se reconhecido e garantido por lei”.xii

A fraude contra credores, modalidade de defeito dos negócios jurídicos, é instituto de direito material disciplinado pelos artigos 158 a 165 do Código Civil. Consiste na prática de atos praticados pelo devedor que o conduzem ao estado de insolvência, ou, ainda, ao agravamento deste, com intuito de prejudicar credores.xiii Nada obstante representar afronta direta à lei, não ofende diretamente o Estado-juiz, pois não exige um processo pendente (conduta exoprocessual).xiv Não se trata de um vício de consentimento porque não há desconformidade entre a vontade interna do agente e a vontade declarada, mas pelo contrário, elas coincidem; é espécie de vício social.xv

O patrimônio do devedor passou a ter relevância para o credor quando a execução deixou de recair sobre a pessoa daquele. Igual importância ganhou o estudo das fraudes, pois atos de disposição patrimonial podem frustrar a cobrança de dívidas. Da necessidade crescente de se proteger o credor surgiu o “interdictum fraudatorium” (voltado contra o terceiro adquirente para obrigá-lo a restituir os bens que recebeu do devedor) e a “actio in factum” (para outros, a “restitutio in integrum”).xvi

Os dois remédios se fundiram e deram origem à ação pauliana (“actio pauliana”), cuja criação se atribui ao pretor Paulus.xvii Inicialmente, tinha natureza criminal e era dirigida contra o terceiro que servira aos propósitos fraudulentos do devedor.xviii Tempos depois, a disposição patrimonial passou a ser considerada ineficaz perante o credor, porque não se poderia anular um ato que, intrinsecamente, não possuía nenhum vício. Nessa época surgiram os requisitos para a caracterização da fraude contra credores, quais sejam, “consilium fraudis”, “eventos damni” e “scientia fraudis”.xix
Sendo assim, para combater os efeitos dos atos ou negócios fraudulentos e recompor o patrimônio do devedor, a fim de que o crédito possa ser satisfeito, os credores quirografários (sem garantias) dispõem da ação pauliana, ainda chamada de revocatória ou rescisória por parcela da doutrina.xx

2.1 Requisitos da fraude contra credores
 

A pauliana é o meio específico para resguardar o direito dos credores quirografários, consoante artigo 158, parágrafo 2º, do Código Civil: “só os credores, que já o eram ao tempo daqueles atos, podem pleitear a anulação deles”. Logo, natural que a anterioridade do crédito sem garantia seja requisito da ação. Pouco importa a dívida ser líquida ou ilíquida, exigível ou não, certa ou incerta; é suficiente que o vínculo obrigacional tenha nascido (germinado) antes da disposição patrimonial fraudulenta.xxi

O alargamento da concepção de “anterioridade do crédito” se deu por conta da proliferação dos atos fraudulentos contra credores potenciais. Aliás, para Orlando Gomes, não há razão para essa limitação, “porque o ato de alienação praticado anteriormente pode ser dolosamente preordenado para o fim de prejudicar a satisfação do futuro credor”.xxii Com efeito, é possível a diminuição maliciosa do patrimônio do devedor que anteveja, em um futuro próximo, o surgimento de dívidas.

Precedente do Superior Tribunal de Justiça relativo ao artigo 106, parágrafo único, do Código Civil de 1916, idêntico ao atual artigo 158, parágrafo 2º, cujo voto condutor é da lavra da Ministra Nancy Andrighi, consignou que tal regra deve ser aplicada com temperamento, embora a anterioridade do crédito seja, via de regra, pressuposto de procedência da ação pauliana. Quando for verificada a fraude predeterminada para atingir credores futuros (comportamento malicioso de dilapidar o patrimônio na iminência de se contrair débitos frente ao credor), a ação pauliana deve ser julgada procedente.xxiii

O “eventus damni” (elemento objetivo) reflete o prejuízo sofrido pelos credores em razão da insolvência ou do seu agravamento provocado pelo ato ou negócio fraudulento. A simples diminuição patrimonial não gera a fraude, que só tem vez quando demonstrado um comprometimento tal do patrimônio do devedor que impeça a satisfação do crédito.xxiv O dano também pode resultar de pagamento feito a um credor em detrimento de outros ou da efetivação de garantia específica em proveito de um só.xxv

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Para Cahali, a falta da prova sobre os prejuízos causados à justa expectativa do pagamento do crédito acarreta a carência da ação revocatória pela ausência de interesse processual (artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil).xxvi Essa conclusão reflete a adoção, pelo jurista, da teoria eclética do direito de ação, criada por Liebman e aplicada por Buzaid no Código de Processo Civil de 1973 (artigo 3º), segundo a qual, para a existência e o regular exercício do direito de ação, devem estar preenchidas todas as condições da ação (legitimidade das partes, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido). Sem a presença de alguma delas, estar-se-á diante de causa para a extinção do processo sem resolução do mérito. No entanto, para a teoria da asserção, também de criação italiana, o magistrado deve verificar a presença das condições da ação segundo as afirmações constantes da petição inicial, em abstrato. Caso haja dilação probatória, ou melhor, caso constatada a falta de alguma condição da ação após o início da fase probatória, é forçoso reconhecer que se adentrou ao mérito da causa, sendo inadmissível sentença meramente terminativa.xxvii

A comprovação da insolvência do devedor é feita com enfoque nos bens passíveis de penhora, pois os demais sempre estiveram excluídos da responsabilidade patrimonial do devedor.xxviii Além do “eventus damni” e da anterioridade do crédito quirografário, exige-se um terceiro indispensável requisito da fraude, o “consilium fraudis” (elemento subjetivo), que se decompõe na intenção de lesar (“fraudis”) somada à sua ciência (concordância, cumplicidade) por parte do terceiro (“consilium”).xxix É necessário, pois, que o adquirente conheça e participe da fraude engendrada pelo devedor, agindo assim de má-fé.xxx

Neste particular, ganha importância a classificação dos negócios jurídicos em gratuitos ou onerosos. Nos primeiros, há um acréscimo patrimonial sem contraprestação (v.g., doação, comodato, mútuo, remissão de dívidas etc.); nos demais, há uma compensação pela outra parte (v.g., compra e venda, permuta, dação em pagamento etc.).xxxi
Nos atos gratuitos, é suficiente que os credores demonstrem o prejuízo deles resultantes para a configuração da fraude. Em outras palavras, o ato poderá ser “impugnado sem necessidade do requisito da má-fé do devedor, bastando que se prove a sua insolvabilidade consequente do ato”,xxxii ou seu agravamento, nos termos do artigo 158, “caput” e parágrafo 1º, do Código Civil.xxxiii Dispensa-se a perquirição sobre o “consilium fraudis”; demanda-se unicamente a prova do prejuízo (“eventus damni”). Portanto, no conflito entre os interesses do donatário (que nada perdeu) e do credor frustrado, o legislador acolheu a pretensão de quem busca evitar um prejuízo, porque tal solução se lhe afigura mais justa.xxxiv Desse modo, somente para os negócios onerosos se faz necessário perquirir o “consilium fraudis”.

Para Cahali, representa o intuito malicioso de prejudicar o credor, na má-fé do devedor, isoladamente (v.g., renúncia da herança) ou em conjunto com o terceiro (v.g., venda onerosa). Ou, ainda, na mera consciência que o credor e o terceiro tenham ou deveriam ter sobre os danos resultantes da prática do ato, consoante artigo 159 do Código Civil: “Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante”.xxxv

Sendo notória a insolvência do alienante ou havendo algum motivo para ser conhecida do outro contraente, dispensa-se a prova do conhecimento do estado de insolvência devedor (a intenção de fraudar é presumida). Insolvência notória é a insolvência pública, conhecida por todos, manifesta, de conhecimento geral, mercê de protestos, publicações pela imprensa ou cobranças contra o devedor. Por motivos pessoais para ser conhecida, tem-se o parentesco ou amizade próxima entre os contratantes, convivência frequente entre as partes, quem tenha protestado títulos de responsabilidade do devedor anteriormente. Essa notoriedade precisa ser provada pelo credor na ação.xxxvi Nesses casos, desnecessário que o terceiro tenha consciência do prejuízo a ser causado ao credor, pois está implícita no próprio conceito de insolvência. Em suma, há presunção absoluta do “consilium fraudis”.xxxvii

O entendimento predominante dispensa o “animus nocendi” (propósito deliberado de prejudicar os credores) para a caracterização da fraude; configura-se a fraude com o mero “consilium fraudis” (ciência, pelo devedor, que seu ato prejudica o credor).xxxviii

3 Questões processuais
 

A doutrina e a jurisprudência se inclinaram para considerar a pauliana uma ação fundada em direito pessoal, isto é, no direito de crédito.xxxix Consequentemente, deve ser proposta no juízo do domicílio do réu, mesmo que a alienação fraudulenta seja de imóvel (artigo 94, do atual CPC; artigo 46, “ caput”, do novo Código).xl

Há discussão relativa ao valor da causa na ação pauliana, se deve equivaler ao prejuízo sofrido pelo credor (o valor do crédito), ou ainda corresponder ao valor do ato fraudulento (dos bens objetos da disposição), não resolvida em sede jurisprudencial.xli

Quanto ao ônus probatório, como regra, a demonstração da anterioridade do crédito e do “consilium fraudis” recai sobre o credor, parte autora na ação pauliana, por força do artigo 333, inciso I, do atual Código de Processo Civil (artigo 373, inciso I, do novo CPC). Na transmissão onerosa, também cabe a ele demonstrar que o terceiro adquirente tinha conhecimento do estado de insolvência por ela ser notória ou por não se poder ignorá-la (artigo 159 do Código Civil); sendo gratuita, o “consilium fraudis” é presumido (presunção absoluta).xlii

No que tange ao “eventus damni”, inclina-se pela inversão do ônus da prova, pois quase impossível ao credor se desincumbir dessa prova (prova diabólica).xliii Dinamarco, por sua vez, entende que o “onus probandi” pertence ao credor.xliv

A legitimidade ativa é dos credores quirografários que já o eram no momento do ato fraudulento, a teor do artigo 158, “caput”, do Código Civil. Não tem legitimidade os que vieram a ser credores após a ocorrência do ato de disposição patrimonial. O direito ao ajuizamento da ação pauliana é conferido a cada um dos credores prejudicados, individualmente ou em litisconsórcio.xlv

São credores quirografários aqueles que não gozam de qualquer espécie de privilégio ou preferência. Os credores com garantia real também tem direito de ajuizar a pauliana, que, no caso, restringe-se à parcela do crédito não garantida, nos termos do artigo 158, parágrafo 1º, do Código Civil: “Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente”.xlvi

No tocante à legitimidade passiva, o artigo 161 do Código Civil prevê que a ação “poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé”. Assim, o devedor e o terceiro formariam um litisconsórcio passivo necessário.

Todavia, Dinamarco sustenta que o resultado da pauliana em nada pode acrescer ao patrimônio do devedor; como o reconhecimento da fraude não tem por consequência a anulação do ato e a reconstituição do “status quo ante”, a esfera jurídica do devedor não sofre mudança alguma, de sorte que não se mostra plausível a sua legitimidade passiva na ação, muito menos como litisconsorte necessário.xlvii

Yussef Cahali, por sua vez, aduz que o devedor deve figurar no polo passivo porque fez parte do negócio impugnado, tendo interesse na manutenção plena da sua eficácia. Ademais, sua inclusão se justifica pelo fato de eventual procedência da pauliana implicar na possibilidade de o devedor ser compelido a responder regressivamente, agora perante o adquirente, pela evicção que este venha a sofrer ao final. Por fim, a procedência do pedido exige a perquirição da situação patrimonial do devedor (artigo 158, “caput”, do Código Civil); a contraprova da sua insolvência só poderá ser realizada se o devedor integrar a relação jurídica processual.xlviii

Frederico Cais dá razão à Dinamarco, sob o argumento de que se o terceiro adquirente vislumbrar eventual direito de regresso contra o alienante (causador do prejuízo), deve obrigatoriamente requerer a denunciação da lide (artigo 70, III, do CPC). Outrossim, o devedor, se quiser e demonstrar interesse, pode intervir no processo como assistente simples do adquirente (artigo 50). No mais, o artigo 161, do Código Civil, dispõe que a pauliana “poderá ser intentada” contra tais e quais pessoas, não se extraindo do dispositivo uma imposição legal para a formação de litisconsórcio necessário.xlix

Na jurisprudência, prevalece o entendimento que o artigo 161 do Código Civil estatui o litisconsórcio passivo entre o devedor insolvente, o terceiro adquirente e eventuais subadquirentes, sob pena de ineficácia do processo.l

4 Natureza da ação pauliana e efeitos da procedência do pedido

Os artigos 165, “caput”li e 171, “caput” e inciso II,lii do Código Civil, estipulam que os atos ou negócios praticados em fraude contra credores são anuláveis. Pontes de Miranda foi o maior expoente, sob a égide da codificação anterior, da tese da anulabilidade (anulação) do ato em fraude contra credores. Seguiram nessa mesma linha, Washington de Barros Monteiro,liii Sílvio de Salvo Venosa,liv Vicente Greco Filho,lv Moacyr Amaral Santos,lvi José Frederico Marques,lvii Luiz Fux,lviii Maria Helena Diniz,lix Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart.lx Para esses, a sentença pauliana tem natureza constitutiva negativa ou desconstitutiva do ato anulável.lxi

Todavia, parcela da doutrina critica a colocação da fraude contra credores no mesmo capítulo dos vícios de consentimento, imputando-lhes a mesma sanção de anulação. Pela tese da ineficácia do ato fraudulento advogam Liebman,lxii Cahalilxiii e Dinamarco.lxiv

A fraude contra credores não representa um vício de consentimento porque não representa uma desconformidade entre a vontade interna do agente e a vontade declarada; pelo contrário, elas coincidem. Na procedência da ação pauliana, os seus efeitos consistem em permitir que a execução recaia nos bens alienados em fraude, no que for necessário para evitar prejuízo aos credores, apesar de se encontrarem no patrimônio do terceiro adquirente.lxv Assim, todo e qualquer ato ou negócio fraudulento, embora seja perfeito intrinsecamente (válido), não terá a eficácia de impedir que o bem venha a ser utilizado para a satisfação do direito de crédito. Todos os atos fraudulentos, inclusive os praticados em fraude contra credores, não são oponíveis ao credor.lxvi

Dinamarco leciona que embora o Código Civil fale em “anulação”, o caso é de ineficácia parcial e relativa, tal como ocorre na fraude de execução. Isto porque, além de não existir motivo para anular um negócio jurídico intrinsecamente válido, a anulação significaria devolver as partes e o bem ao “status quo ante” e o registro imobiliário se cancelaria e eventual saldo em execução pertenceria ao devedor fraudulento. Em caso de embargos à execução, se bem sucedidos, o comprador estaria desnecessariamente privado do bem. Se ele eventualmente quisesse pagar e remir a execução, isso de nada valeria após já anulada a transmissão de domínio e cancelado o registro imobiliário.lxvii
Nessa última corrente não há consenso quanto à natureza da sentença pauliana. De um lado, afirma-se que ela é constitutiva (ou desconstitutiva da eficácia do ato);lxviii para outros, é declaratória – declara-se a ineficácia relativa do ato ou negócio fraudulento.lxix

A discussão relativa aos efeitos da sentença pauliana também é controvertida no âmbito do STJ, que por vezes reconhece a anulabilidade (anulação) do ato ou negócio fraudulento, enquanto em outras declara expressamente a sua ineficácia em relação ao credor.lxx

Quanto ao meio para a decretação da fraude, está sumulado a necessidade do ajuizamento de ação pauliana, vedada a declaração de fraude contra credores por meio de embargos de terceiros.lxxi Deve ser proposta no prazo decadencial de 4 (quatro) anos do dia no qual se realizou o ato, consoante artigo 178, “caput” e inciso II, do Código Civil.
Caso adotada a tese da ineficácia ulterior, parcial e relativa dos atos praticados em fraude contra credores, a sentença pauliana não culmina na reintegração do bem no patrimônio do devedor (não há cancelamento do registro imobiliário); em razão da manutenção da validade do negócio, a sentença não tem o condão de autorizar a imissão do credor na posse do bem alienado; o adquirente pode aliená-lo, só sendo ineficaz o negócio em relação ao credor. Para os adeptos da anulação, importa no cancelamento do registro imobiliário; autoriza a imissão do credor na posse do bem alienado; impede-se a transmissão do bem, pois anulado o ato originário e todos os subsequentes.

Seja qual for a posição adotada, eventual saldo que vier a existir em virtude de uma venda judicial pertencerá ao terceiro adquirente, pois ele que sofrerá os efeitos da execução.lxxii

5 Conclusão
 

1) Encontra guarida no Superior Tribunal de Justiça a tese de que todas as fraudes, inclusiva a contra credores, ensejam a ineficácia relativa do ato ou do negócio perante o credor.

2) A fraude contra credores exige, para ser reconhecida, a propositura de ação específica (ação pauliana ou revocatória), na qual se precisa demonstrar: ser o autor credor de dívida preexistente sem garantia real; o “eventus damni” consistente no estado de insolvência agravado ou criado por ato de disposição patrimonial do devedor; o “consilium fraudis” entre o devedor e o terceiro.

3) O Superior Tribunal de Justiça já relativizou o requisito da anterioridade do crédito, máxime quando prevista a constituição da dívida pelo devedor, que passa a se desfazer de bens deliberadamente.

4) Veda-se o reconhecimento da fraude contra credores em embargos de terceiro. O ajuizamento de ação pauliana é imprescindível e deve observar o prazo decadencial de 4 (quatro) anos do dia no qual se realizou o ato.

5) A perquirição sobre o elemento subjetivo só é necessária nos negócios onerosos.

6) Caso o autor da pauliana se desincumba do ônus probatório relativo à notoriedade da insolência do devedor ou ao dever de conhecimento, pelo terceiro, do estado de insolvência, há presunção absoluta do “consilium fraudis”.

7) Há intenso debate doutrinário e jurisprudencial relativo aos efeitos do reconhecimento da fraude contra credores: anulação do negócio ou ineficácia relativa em relação ao credor. Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça tende a acolher a segunda corrente, aproximando o instituto da fraude de execução.

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i Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
ii CAHALI, op. cit, p. 35.
iii THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo código civil: dos defeitos do negócio jurídico ao final do Livro III: arts 138 a 184. Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 3, tomo 1, p. 250.
iv MARINONI, Luiz; ARENHART, Sérgio Cruz. Execução. 5. ed. São Paulo: RT, 2013, v. 3, p. 264-265.
v PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil; teoria geral do direito civil. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 449, v. 1.
vi CAHALI, op. cit., p. 41.
vii MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral (validade, nulidade, anulabilidade). São Paulo: RT, 2013, v. 4, p. 549.
viii CAIS, Frederico F. S. Fraude de execução. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 53.
ix CAIS, op. cit., p. 64-68.
x ALVES, José Carlos Moreira. A parte geral do projeto de código civil brasileiro, com análise do texto aprovado pela Câmara dos Deputados. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 96-97.
xi PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil; teoria geral do direito civil. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 449, v. 1, 398.
xii GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 19. ed. atual. Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 245.
xiii VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 459.
xiv DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. Malheiros: São Paulo, 2009, v. 4, p. 423.
xv VENOSA, op. cit.,, p. 460.
xvi MOREIRA, José Carlos Barbosa. Direito Romano. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, v. 1, p. 249.
xvii DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 277, nota 58.
xviii PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil; teoria geral do direito civil. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 449, v. 1, p. 451.
xix VENOSA, op. cit., p. 459.
xx CAHALI, op. cit., p. 96-97.
xxi VENOSA, op. cit., p. 462.
xxii GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. atual. Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 277.
xxiii STJ, REsp nº 1.092.134/SP, rel. Min. Ministra Nancy Andrighi, j. 05/08/2010.
xxiv CAIS, Frederico F. S. Fraude de execução. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 72.
xxv GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. atual. Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 277.
xxvi CAHALI, op. cit., p. 133-134.
xxvii Um panorama das duas teorias pode ser encontrado em: CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 23. ed. São Paulo, Atlas, 2012, v. 1, p. 154-155.
xxviii DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. Malheiros: São Paulo, 2009, v. 4, p. 432.
xxix CAIS, op. cit., p. 73.
xxx GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. atual. Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 277.
xxxi VENOSA, op. cit., p. 459.
xxxii CAHALI, op. cit., p. 172.
xxxiii Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.
§ 1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.
xxxiv LIMA, Alcides de Mendonça. Comentários ao Código de Processo Civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, v. 6, p. 470.
xxxv CAHALI, op. cit., p. 163-164; 169.
xxxvi VENOSA, op. cit., p. 462-464.
xxxvii GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. atual. Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 277.
xxxviii THEODORO JÚNIOR, Humberto. Fraude contra credores – a natureza da ação pauliana. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 139.
xxxix LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 169-170.
xl CAIS, op. cit., p. 76.
xli TJSP, AI nº 2063125-83.2015.8.26.0000, rel. Des. Silvério da Silva, j. 13/05/2015; TJSP, AI nº 2004691-04.2015.8.26.0000, rel. Des. Mary Grün, j. 24/03/2015; TJSP, AI nº 0132283-70.2012.8.26.0000, rel. Des. Manoel Mattos, j. 19/03/2013.
xlii CAIS, op. cit., p. 77-78.
xliii THEODORO JÚNIOR, Humberto. Fraude contra credores – a natureza da ação pauliana. Belo Horizonte:
Del Rey, 1997, p. 156.
xliv DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 278-279, nota 63.
xlv CAIS, op. cit., 2005, p. 80.
xlvi VENOSA, op. cit., p. 459.
xlvii DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 287-288.
xlviii CAHALI, op. cit., p. 358-359.
xlix CAIS, op. cit., p. 81-82.
l TJSP, Apelação nº 0002537-41.2007.8.26.0028, rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. 07/02/2012.
li Art. 165. Anulados os negócios fraudulentos, a vantagem resultante reverterá em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores.
lii Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: II - por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.
liii MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: parte geral. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 268-269.
liv VENOSA, op. cit., p. 459;
lv GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 3, p. 41.
lvi SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 25. ed. atual. Maria Beatriz Amaral Santos Kohnen. São Paulo: Saraiva, 2011, v. 3, p. 303
lvii MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. Campinas: Millenium, 2000, v. 4, p. 90-91.
lviii FUX, Luiz. O novo processo de execução. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 95.
lix DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 579.
lx MARINONI, Luiz; ARENHART, Sérgio Cruz. Execução. 5. ed. São Paulo: RT, 2013, v. 3, p. 265.
lxi DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 280.
lxii LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 170-171.
lxiii CAHALI, op. cit., p. 299.
lxiv DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 279.
lxv LIEBMAN, op. cit., p. 170.
lxvi DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. Malheiros: São Paulo, 2009, v. 4, p. 422.
lxvii DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 255-257.
lxviii DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 278.
lxix THEODORO JÚNIOR, Humberto. Fraude contra credores – a natureza da sentença pauliana. Belo Hozizonte: Del Rey, 1997, p. 201.
lxx STJ, REsp nº 1.145.542/RS, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 11/03/2014; STJ, REsp nº 506.312/MS, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 15/08/2006.
lxxi Súmula nº 195 do STJ: “Em embargos de terceiros, não se anula ato jurídico, por fraude contra credores”.
lxxii CAIS, op. cit., p. 90-92.

Sobre o autor
Pedro Pierobon Costa do Prado

Mestrando em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado em São Paulo.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo publicado originalmente na Revista Sapere Aude - Ano 4, Volume 2, Setembro 2015

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