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Licitação internacional: normas nacionais X normas estrangeiras.

Uma visão constitucional

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Agenda 04/10/2003 às 00:00

A matéria a ser tratada é de relevância indiscutível, cuja solução interessa a todos os órgãos e entidades da Administração Pública, especialmente àqueles que se beneficiam de recursos oriundos de contratos celebrados com organismos financeiros internacionais dos quais o Brasil participa.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Tratamento constitucional; 3. Ordenamento jurídico; 4. Licitação internacional no ordenamento pátrio; 4.1. Previsão legal; 4.2. Princípios constitucionais; 4.3. Onipotência da Constituição; 4.4. Hierarquia entre normas nacionais e normas internacionais; 5. Prevalência dos princípios nacionais sobre as regras internacionais; 6. Conclusão; 7. Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO

A matéria a ser tratada é de relevância indiscutível, cuja solução interessa a todos os órgãos e entidades da Administração Pública, especialmente àqueles que se beneficiam de recursos oriundos de contratos celebrados com organismos financeiros internacionais dos quais o Brasil participa.

A abordagem ainda tem sido parca pela doutrina nacional, razão pela qual após ser instado a manifestar juridicamente quanto a Edital de Concorrência Internacional com utilização de recursos do BIRD [1][2], continuamos nossa pesquisa dentro de uma formatação acadêmica, com o intuito de trazer à balha discussão de tema que se apresenta tão importante para os dias atuais, afinal parece que a ninguém é possibilitado desconsiderar que vivemos em tempo de globalização que é marcado por crescente integração entre as nações.

Destaca-se grande quantidade de organizações internacionais que congregam elevado número de países, sendo necessária a adoção de medidas a fim de conciliar as normas dessas organizações com os interesses dos Estados que a compõem. Surge então a figura dos Tratados Multilaterais que têm como objetivo a harmonização entre as leis internas dos Estados membros subscritores com as normas dessas organizações.

Buscar-se-á uma visão tendo como premissa o Texto Constitucional, sem deixar à margem a Lei nº 8.666/93, afinal o aparente conflito não se apresenta de fácil deslinde em virtude das indagações que envolvem a natureza dos contratos de empréstimos externos pelos quais são impostas tais regulamentações, os tratados internacionais, as leis nacionais e a Carta Magna.

Aplica-se a Lei 8.666/93 ou as regras do Banco Mundial, que, em muitas situações, exigem procedimentos não previstos pela Lei 8.666/93 ou até mesmo proibidos?


2. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL

Do manancial vocabular do Texto Constitucional de 1988 jorra o substantivo licitação. A palavra marca presença em alguns dispositivos, para o que se pretende, dois emblemáticos merecem ser destacados:

"Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

[...]

XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União dos Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III;" [3] (os destaques não constam no original)

"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

[...]

XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações." [4] (os destaques não constam no original)

O destaque das normas constitucionais referentes a licitação se faz necessário para que se frise que, ao estudá-la, deve-se ultrapassar as fronteiras do simples vocábulo para vê-la como instituto de Direito Constitucional; o que habilita à demarcação de um conteúdo significante para ela – licitação, que se impõe ao próprio legislador ordinário.

O legislador infraconstitucional tem a competência de produzir norma genérica, impessoal e abstrata, no mesmo instante em que aplica o Diploma Fundamental, mas sem poder escapar das delimitações que já se encontram gizadas na obra legislativa do Poder Constituinte, sob pena de resvalar para a zona juridicamente espúria da "descontinuidade ou ruptura constitucional", segundo entendimento canotilhano. [5]

Dos dispositivos trasladados pode-se observar que o art. 22, XXVII da CRFB reza que compete privativamente a União legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, desde que obedecido o disposto no art. 37, XXI, obviamente, que caput (princípios: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência)e inciso (princípios: igualdade e competitividade).

Tem-se assim que as normas gerais de licitação que vierem a ser estatuídas pelo legislador infraconstitucional não poderão ultrapassar os limites normativos, incluindo aqui os principiológicos, trazidos pelo Texto Constitucional, não somente nos dispositivos citados, mas nela como um todo.


3. ORDENAMENTO JURÍDICO

"A noção de ordenamento é complexa. Em princípio, um ordenamento é um conjunto de normas. O ordenamento jurídico brasileiro é o conjunto de todas as suas normas, [...]". [6]

O ordenamento jurídico contém duas espécies de normas: regras e princípios. [7]

As normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si, destacando também que a palavra direito entre seus vários sentidos encerra também o de ordenamento jurídico, ou seja, o direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica nunca se encontra só, mas está ligada a outras normas com as quais formam um sistema normativo. [8]

Urge assim a necessidade de estudo pelo operador do direito a fim de eleger qual norma a ser aplicada, ou seja, submeter um caso particular ao império de uma determinada norma jurídica.

Por vezes o aplicador do direito se depara diante de uma situação onde o(s) dispositivo(s) infraconstitucional(is) não se encontra(m) consonante(s) com os valores constitucionais, sendo necessário lançar mão da interpretação sistemática.

A interpretação sistemática deve ser definida como uma operação que consiste em atribuir a melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias, a partir da conformação teleológica, tendo em vista solucionar os casos concretos. Dito de outra forma, a interpretação sistemática, quando compreendida em profundidade, é aquela que se realiza em consonância com a rede hierarquizada, máxime na Constituição, tecida por princípios, normas e valores considerados dinamicamente e em conjunto. Assim, ao se aplicar uma norma, está-se aplicando o sistema inteiro. [9]

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Interpretar sistematicamente implica, então, excluir qualquer solução interpretativa que resulte logicamente contraditória com alguma norma do sistema.

Fica evidente o papel destacado conferido à Constituição como norma fundante de todo o sistema normativo, e, conseqüentemente, seu principal elemento de unificação. Daí porque de um simples instrumento técnico do método sistemático derivou-se um princípio básico de toda a interpretação jurídica: a interpretação conforme a Constituição. A norma fundamental converte-se sempre por esta via em questão prévia de toda a interpretação, de sorte que nenhuma lei pode ser interpretada isolando-se dela. [10]

Pode-se definir sistema jurídico (cada sistema jurídico) como uma ordem teleológica de princípios gerais de direito. Cada norma é parte de um todo, de modo que não podemos conhecer a norma sem conhecer o sistema, o todo no qual estão ligadas. [11]

Em obediência aos princípios mencionados, "a primeira e mais importante recomendação, nesse caso, é de que, em tese, qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema." [12]

Não há espaço no nosso ordenamento jurídico para as lacunas e antinomias, pois o jurista ao aplicar os preceitos jurídicos, a fim de criar uma norma individual, deverá interpretá-los, integrá-los e corrigi-los, mantendo-se nas balizas estipuladas pelo ordenamento jurídico, principalmente naquelas estipuladas pela norma primeira – a Constituição.


4. LICITAÇÃO INTERNACIONAL NO ORDENAMENTO PÁTRIO

4.1. Previsão legal

Pode-se conceituar licitação como um procedimento administrativo que tem por objetivo a seleção da proposta mais vantajosa para a celebração de contrato com a entidade integrante da Administração Pública ou por ela controlada, mediante um processo efetivamente competitivo. Trata-se, com tal prática, de dar cumprimento ao dever de eficiência financeira inerente ao administrador público, positivado, inclusive, no art. 70 da Carta Federal, sob o nome de princípio da economicidade. [13]

Analisando os dispositivos constitucionais aqui já copiados (art. 22, XXVII e art. 37, XXI), e utilizando de uma interpretação sistemática, chega-se noutro objetivo, que é assegurar a igualdade entre todos os interessados em contratar com a Administração, que, aliás, está sujeita ao princípio da isonomia, contido no art. 5º da CRFB, segundo o qual todos são iguais perante a lei, do qual decorre, para a Administração, o princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CRFB). [14]

Deve-se então, ao visualizar o instituto jurídico da licitação utilizar de uma lente constitucional para que "pincemos diretamente do Magno Texto as regras que dão a licitação uma perfeita identidade jurídica, assim como os princípios que com ela mantêm uma relação de maior pertinência lógica." [15]

Nessa mesma linha de raciocínio o professor CARLOS AYRES assevera que o que enxerga como realmente axial nas normas gerais de licitação é o desdobramento de princípios e regras da própria Constituição que de alguma se encontra contracto. [16]

Observe o que diz o dispositivo que particularmente cuida das licitações realizadas com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte:

"Art. 42. Nas concorrências de âmbito internacional o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes.

[...]

§ 5º. Para a realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas, na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos daquelas entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração, o qual poderá contemplar, além do preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho este ratificado pela autoridade imediatamente superior." [17] (os destaques não constam no original)

Não se pode perder de vista que o que se persegue nesse estudo é saber qual norma é aplicável: as normas nacionais ou as guidelines [18]? Seria possível olvidar todas as normas nacionais em face do que dispõe o art. 42, § 5º do Estatuto das Licitações?

4.2. Princípios constitucionais

Então agora, insta destacar a importância dos princípios vez que é irrealizável fazer ciência desconsiderando-os.

"O cientista, para conhecer o sistema jurídico, precisa identificar quais os princípios que o ordenam. Sem isso, jamais poderá trabalhar com o direito." [19]

Os princípios por vezes são os cânones que não foram ditados, explicitamente, pelo elaborador da norma, mas que estão contidos de forma imanente no ordenamento jurídico. Os princípios não são resgatados fora do ordenamento jurídico, porém descobertos no seu interior, estando aí em estado de latência.

GONZÁLEZ PÉREZ no mesmo sentido firmou: "os princípios jurídicos [...] têm em si valor normativo; constituem a própria realidade jurídica. [...] Existem independentemente de sua formulação; são aplicáveis ainda que a ciência os desconheça." [20]

Não se pode olvidar que os princípios implícitos são tão importantes quanto os explícitos; constituem, como estes, verdadeiras normas jurídicas. Por isso, desconhecê-los é tão grave quanto desconsiderar quaisquer outros princípios. [21]

De acordo com os ensinamentos de ATALIBA, tem-se que:

"Os princípios são as linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos).

Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; têm que ser prestigiados até as últimas conseqüências." [22] (os destaques não constam no original)

BANDEIRA DE MELLO de forma invulgar sintetiza a "origem" dos princípios constitucionais:

"O art. 37, caput, reportou de modo expresso à Administração Pública (direta e indireta) apenas cinco princípios: da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência [...]. Fácil é ver-se, entretanto, que inúmeros outros mereceram igualmente consagração constitucional, uns por constarem expressamente da Lei Maior, conquanto não mencionados no art. 37, caput; outros, por nele estarem abrigados logicamente, isto é, como conseqüências irrefragáveis dos aludidos princípios; outros, finalmente, por serem implicações evidentes do próprio Estado de Direito e, pois, do sistema constitucional como um todo." [23] (os destaques não constam no original)

E continua o professor elencando alguns princípios: supremacia do interesse público, da finalidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da motivação, da segurança jurídica, dentre outros. [24]

Por fim deve-se dizer que o princípio jurídico é norma de hierarquia superior à das regras, pois determina o sentido e o alcance destas, que não podem contrariá-lo, sob pena de pôr em risco a globalidade do ordenamento jurídico, devendo haver coerência entre os princípios e as regras, no sentido que vai daqueles para esta. [25]

Conclui-se então que se uma norma-regra (v.g. Guidelines) ir de encontro a qualquer norma-princípio (v.g.: competitividade, impessoalidade, julgamento objetivo, legalidade) que deva observar a Administração Pública, inclusive nos procedimentos licitatórios, esta prevalecerá sobre aquela. Lembrando-se que ninguém pode aplicar uma regra – tem sempre de aplicar todo o Direito [26], não se podendo trazer à tona o § 5º do art. 42 da Lei nº 8.666/93 de forma isolada.

Cumpre aqui registrar que, por vezes, as guidelines, por si só, não afrontam o ordenamento jurídico nacional, mas sim a "interpretação" que costumeiramente alguns agentes públicos conferem a essas normas, maculando a competitividade do certame, e por consectário lógico atingindo de morte os princípios constitucionais norteadores da Administração Pública.

4.3. Onipotência da Constituição

Esse tópico não poderia ser inaugurado sem mencionar a argumentação do professor CARLOS AYRES, que com a sensibilidade e inteligência peculiar, ao cotejar Deus com a Constituição alinhavou:

"Deus é o poder que tudo pode, menos deixar de ser o poder que tudo pode. Deus nem pode deixar de ser o poder que tudo pode, como não pode permitir que outro poder tudo possa. Lógico, porque a onipotência está condenada à solidão. Onipotência é concomitantemente unipotência ou potência única." [27]

Como sobejamente conhecido as normas constitucionais fundam o ordenamento jurídico, inauguram a ordem jurídica de um dado povo soberano e se põem como suporte de validade de todas as demais regras de direito. São normas originárias, fundamentantes e referentes, enquanto que as demais se posicionam, perante elas, como derivadas, fundamentadas e referidas. Aquelas de hierarquia superior, e estas, logicamente de menor força vinculatória.

Tem-se que a Constituição como norma designa o conjunto de normas jurídicas positivas, apresentando ainda relativamente às outras normas do ordenamento jurídico caráter fundacional e primazia normativa. [28]

A Constituição é uma lei dotada de características especiais, pois tem um brilho autônomo expresso por intermédio da forma, do procedimento de criação e da posição hierárquica das suas normas. Estes elementos permitem distingui-la de outros instrumentos com valor legislativo presentes na ordem jurídica, destacando: autoprimazia normativa, fonte primária de produção jurídica, força heterodeterminante, natureza supra-ordenamental e força normativa. [29]

Serão destacados aqui apenas alguns desses elementos e seus principais traços caracterizadores.

Pode-se asseverar, em síntese, que autoprimazia normativa significa que as normas constitucionais não derivam a sua validade de outras normas com dignidade hierárquica superior, sendo assim um valor normativo formal e material superior, ou seja, nenhuma norma, inclusive internacional (v.g. guidelines), pode influenciar ou afastar uma norma constitucional sob pena de se ferir a soberania nacional.

Força normativa da constituição ou normatividade da constituição são expressões que significam que a constituição é uma lei vinculativa dotada de efetividade e aplicabilidade. A força normativa da constituição visa exprimir, muito simplesmente, que a Constituição, sendo uma lei, como lei deve ser aplicada. [30]

Convém, alfim, transladar as lições de HESSE:

"A constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social." [31] (os destaques não constam no original)

Pode-se então concluir, preliminarmente, que as normas constitucionais devem ser obedecidas ilimitadamente, pois a Constituição é a norma primeira da qual origina todo o ordenamento jurídico, não podendo nenhum outro diploma legal contrariar seus comandos normativos, sob pena de se ver ruir o Estado Constitucional. Dessa forma, também as guidelines, ou suas "interpretações", não podem ir de encontro aos valores constitucionais.

Para aplicar os valores constitucionais é necessário lançar mão da interpretação constitucional que tem seus princípios próprios, sendo que serão tratados aqui aqueles que influenciam na conclusão que almeja esse trabalho.

Pelo princípio da máxima efetividade ou princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva pode considerar que a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. Trata-se de um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais. [32]

Pelo princípio da interpretação das leis conforme a constituição entenda-se que no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e conseqüente retirada do ordenamento jurídico. [33] Sendo assim, se das guidelines podem ser extraídas várias interpretações deve-se optar por aquela que guarde sintonia com os princípios constitucionais, e não aquela que vai restringir, amesquinhar ou frustrar a competição – finalidade primeira de um procedimento licitatório.

Acresce-se ainda a esses princípios algumas regras propostas por JORGE MIRANDA, principalmente a que "deve ser fixada a premissa de que todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade". [34]

Pode-se afirmar, por derradeiro, que a Constituição é a lei suprema do país, contra a sua letra, ou espírito, não prevalecem resoluções, leis, constituições estaduais, decretos ou sentenças federais, nem tratados, ou quaisquer outros atos diplomáticos. [35]

4.4. Hierarquia entre normas nacionais e normas internacionais

Muito embora no direito internacional se defenda a tese de que as normas internacionais possuem hierarquia superior as leis ordinárias constituindo-se leis ordinárias especiais, aqui não se pode querer esposar esse entendimento em virtude de pacificado posicionamento do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

Na doutrina e jurisprudência tupiniquim vigora a teoria monista-constitucionalista em virtude do famoso julgamento RE 80.004 [36] (considerado, até hoje, como o leading case) que entendeu que normas internacionais ratificadas pelo Congresso Nacional tem a mesma hierarquia que as normas internas, resolvendo os casos de antinomias [37] pelo critério cronológico [38] ou da especialidade [39].

A quaestio fica melhor visualizada na seguinte decisão também do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:

"E M E N T A: - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - CONVENÇÃO Nº 158/OIT - PROTEÇÃO DO TRABALHADOR CONTRA A DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA - ARGÜIÇÃO DE ILEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DOS ATOS QUE INCORPORARAM ESSA CONVENÇÃO INTERNACIONAL AO DIREITO POSITIVO INTERNO DO BRASIL (DECRETO LEGISLATIVO Nº 68/92 E DECRETO Nº 1.855/96) - POSSIBILIDADE DE CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE TRATADOS OU CONVENÇÕES INTERNACIONAIS EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – [...] – CONTEÚDO PROGRAMÁTICO DA CONVENÇÃO Nº 158/OIT, CUJA APLICABILIDADE DEPENDE DA AÇÃO NORMATIVA DO LEGISLADOR INTERNO DE CADA PAÍS – [...] – PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR DEFERIDO, EM PARTE, MEDIANTE INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. PROCEDIMENTO CONSTITUCIONAL DE INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS OU CONVENÇÕES INTERNACIONAIS.

É na Constituição da República - e não na controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e dualistas - que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro. O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe - enquanto Chefe de Estado que é - da competência para promulgá-los mediante decreto. O iter procedimental de incorporação dos tratados internacionais - superadas as fases prévias da celebração da convenção internacional, de sua aprovação congressional e da ratificação pelo Chefe de Estado - conclui-se com a expedição, pelo Presidente da República, de decreto, de cuja edição derivam três efeitos básicos que lhe são inerentes: (a) a promulgação do tratado internacional; (b) a publicação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno. Precedentes. SUBORDINAÇÃO NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. - No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em conseqüência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais, que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política. [...]. PARIDADE NORMATIVA ENTRE ATOS INTERNACIONAIS E NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS DE DIREITO INTERNO. - Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes. No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (‘lex posterior derogat priori’) ou, quando cabível, do critério da especialidade. Precedentes. [...]" [40](os destaques não constam no original)

Sobre o autor
Anderson Sant'Ana Pedra

Doutorando em Direito Constitucional pela PUC/SP, Mestre em Direito pela FDC/RJ, Especialista em Direito Público pela Consultime/Cândido Mendes/ES, Chefe da Consultoria Jurídica do TCEES, Professor em graduação e em pós-graduação de Dir. Constitucional e Administrativo, Consultor do DPCC ­ Direito Público Capacitação e Consultoria, Advogado em Vitória/ES

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDRA, Anderson Sant'Ana. Licitação internacional: normas nacionais X normas estrangeiras.: Uma visão constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 93, 4 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4286. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Texto também divulgado nas seguintes publicações: Boletim de licitações e contratos. São Paulo: NDJ. Ano XVI, n. 7, p. 461-472, jul. 2003; Revista de direito e administração pública. Brasília: Consulex. Ano VI, n. 62, p. 36-42, ago. 2003; Fórum de contratação e gestão pública. Belo Horizonte: Editora Fórum. Ano 2, n. 19, p. 2315-2323, jul. 2003; Boletim de direito administrativo. São Paulo: NDJ. Ano XX, n. 5, p. 515-526, mai. 2004.

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