Obtusa a atual compreensão que se faz do direito de ampla defesa, ora restringindo de forma inconstitucional seu alcance, ora confundindo-o com outros princípios, tais como contraditório, paridade das armas etc., resultando em distorções de seu real conteúdo, em franco detrimento de seus horizontes.
Vê-se claramente que a análise do tema escolhido tem supina importância, principalmente tendo-se em vista a escassa literatura jurídica que explore profundamente as potencialidades do conteúdo jurídico do direito de defesa no processo penal brasileiro.
É sobremodo relevante o presente estudo, à medida que objetiva consubstanciar um verdadeiro avanço no que pertine à interpretação do direito à ampla defesa, e ao final, promover a necessária contribuição para a tutela das liberdades públicas.
Constitucionalmente, o direito de defesa da pessoa humana sob o jugo do ius persequendi do Estado-administração, tem guarida no elenco dos direitos fundamentais individuais (art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal) 1, o que, bem por isto, lhe dá a tônica de princípio pétreo, inquebrantável à reforma constitucional alguma.
É, basicamente, direito fundamental de primeira geração puro, exemplo emblemático de liberdade pública.2 (BONAVIDES, p. 1999, p. 516-518) Aliás, o processo penal não deve ser visto como um mecânico (e frio) instrumento de aplicação do Direito Penal material – compreensão severamente míope e letárgica.
Do contrário: a índole do processo penal é a garantia da liberdade jurídica da pessoa humana, consoante sagaz proposição de Tucci (1993, p. 22), para quem:
Esse, sem dúvida, é o motivo do destaque dado ao processo penal como instrumento de preservação da liberdade jurídica do acusado: consubstancia-se ele, com efeito, num ‘precípuo direito, não do Autor, mas do Réu, interessado, que este é, em defender sua ‘liberdade jurídica’, mediante a jurisdição, que testa a legalidade’ da ação do acusador.3 Neste sentido é que se deve compreender, a ratio essendi do processo penal e, via de conseqüência, do seu maior pressuposto de existência e legitimação: o direito de defesa.
Assim sendo, o direito de defender-se, tal como forjado nas suas fontes normativas (Constituição Federal, Tratados Internacionais sobre direitos humanos, Código de Processo Penal) 4 revela um conteúdo jurídico demasiado amplo e complexo, eis que predisposto a ser o principal instrumento concedido à pessoa humana para o resguardo de sua liberdade.
É dizer: “Para o desenvolvimento e estrutura do processo penal, a garantia mais importante e ao redor da qual todo o processo gravita é a da ampla defesa, com os recursos a ela inerentes, sobre a qual convém insistir e ampliar.” (GRECO FILHO, 2006, p. 56)
Com efeito, o direito de defesa pode se manifestar sob dois aspectos: a defesa técnica e a autodefesa. (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2009, p. 71) A defesa técnica caracteriza-se pela imposição legal de o acusado estar devidamente representado por técnico nas letras jurídicas – o advogado. Daí porque, “é sem dúvida indisponível, na medida em que, mais do que garantia do acusado, é condição da paridade das armas, imprescindível à concreta atuação do contraditório e, conseqüentemente, à própria imparcialidade do juiz.”5 (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2009, p. 71)
A justificação da defesa técnica está na presunção de hipossuficiência do sujeito passivo, de que ele não tem conhecimentos necessários e suficientes para resistir à pretensão estatal, em igualdade de condições técnicas com o acusador. Essa hipossuficiência leva o imputado a uma situação de inferioridade ante o poder da autoridade estatal encarnada pelo promotor, policial ou mesmo juiz (nos sistemas de instrução preliminar judicial).
Pode existir uma dificuldade de compreender o resultado da atividade desenvolvida na investigação preliminar, gerando uma absoluta intranquilidade e descontrole. Ademais, havendo um prisão cautelar, existirá uma impossibilidade física de atuar de forma efetiva. (LOPES JR., 2001, p. 306) 6.
A outra lâmina, a autodefesa, apesar de ser pelo acusado renunciável, deve ser criteriosamente observada no processo, de sorte a assegurar ao sujeito passivo do ius persequendi os direitos de audiência, de presença, e de postular pessoalmente7, consoante averbam GRINOVER, GOMES FILHO e FERNANDES (2009, p. 73), segundo os quais:
Com relação à autodefesa, cumpre salientar que se compõe ela de dois aspectos, a serem escrupulosamente observados: o direito de audiência e o direito de presença. O primeiro traduz-se na possibilidade de o acusado influir sobre a formação do convencimento do juiz mediante o interrogatório. O segundo manifesta-se pela oportunidade de tomar ele posição, a todo momento, perante as alegações e as provas produzidas, pela imediação com o juiz, as razões e as provas.
Importa destacar que, em razão do amplo conteúdo do direito de defesa, ao sujeito passivo é cometida capacidade postulatória autônoma (BRASILEIRO, 2011, p. 37), como instrumento apto a tornar efetível a autodefesa: Quanto ao terceiro desdobramento da autodefesa, entende-se que, em alguns momentos específicos do processo penal, defere-se ao acusado capacidade postulatória autônoma, independentemente da presença de seu advogado.
E por isso que, no processo penal, o acusado pode interpor recursos (CPP, art. 577, caput), impetrar habeas corpus (CPP, art. 654, caput), ajuizar revisão criminal (CPP, art. 623), assim como formular pedidos relativos à execução da pena (LEP, art. 195, caput). [...] Essas manifestações do acusado não violam o disposto no art. 133 da Constituição Federal, que prevê a advocacia como função essencial à administração da justiça. Deve se entender que, no processo penal, essas manifestações defensivas formuladas diretamente pelo acusado não prejudicam a defesa, apenas criando uma possibilidade a mais de seu exercício. (BRASILEIRO, 2011, p. 37)
Lopes Jr. (2001, p. 314), dá outro enfoque à autodefesa, dado que a classifica em autodefesa ativa e negativa, a saber:
Classificamos a autodefesa, a partir de seu caráter exterior, como um atividade positiva ou negativa. O interrogatório é o momento em que o sujeito passivo tem a oportunidade de atuar de forma efetiva – comissão –, expressando os motivos e as justificativas ou negativas de autoria ou de materialidade do fato que se lhe imputa. Ao lado deste atuar que supõe o interrogatório, também é possível uma completa omissão, um atuar negativo, através do qual o imputado nega-se a declarar. Não só pode negar-se a declarar, como também pode negar-se a dar a mais mínima contribuição para a atividade probatória realizada pelos órgãos estatais de investigação, como ocorre nas intervenções corporais, reconstituição do fato, fornecer material escrito para realização do exame grafotécnico etc.
Hodiernamente, restringe-se o conteúdo do direito de defesa a simples poder de reação à acusação, com os meios e recursos inerentes. Relega-se a ampla defesa, a posição secundária em relação a princípios como os do devido processo legal, do contraditório, da paridade das armas, dentre outros. Não se lhe outorga o verdadeiro respaldo jurídico que é dado pela Constituição Federal, pelos tratados internacionais sobre direitos humanos que o Brasil é signatário, e pelo próprio Código de Processo Penal. No entanto, algumas faíscas de avanço se logram vislumbrar neste nebuloso túnel.
À exemplo, cite-se Greco Filho (2006, p. 56-57), que encarece a posição do direito de defesa dentro do sistema de garantias fundamentais da pessoa no processo penal. O citado autor, averba que:
A ampla defesa se traduz em algumas soluções técnicas dentro do processo, as quais, na verdade, tornam efetiva a garantia. Entre elas podemos citar: a adoção do sistema acusatório, a apresentação formal da acusação, a citação regular, o contraditório, o princípio da verdade real e o exercício da defesa técnica. (GRECO FILHO, 2006, p. 56).
Tucci (1993, p. 205-206), a seu turno, dá valiosas contribuições ao estudo deste importante direito:
A concepção moderna do denominado rechtliches Gehör (garantia da ampla defesa), reclama, induvidosamente, para sua verificação, seja qual for o objeto do processo, a conjugação de três realidade procedimentais, a saber: a) o direito à informação (Nemo inauditus damnari potest); b) a bilateralidade da audiência (contraditoriedade); e c) o direito à prova legitimamente obtida ou produzida (comprovação da inculpabilidade).9
Em sede jurisprudencial, eloquente avanço foi dado pelo Supremo Tribunal Federal, a vislumbrar no direito de defesa uma eficácia jurídica mais ampla a que se lhe tem tradicionalmente dado:
[...] Assinalo, por outro lado, que há muito vem a doutrina constitucional enfatizando que o direito de defesa não se resume a simples direito de manifestação no processo. Efetivamente, o que o constituinte pretende assegurar - como bem anota Pontes de Miranda - é uma pretensão à tutela jurídica (Comentário à Constituição de 1967/69, tomo V, p. 234). Daí se afirmar, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º LV, da Constituição, contém os seguintes direitos: 1) direito de informação, que obriga o órgão julgador informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; 2) direito de manifestação, que assegura ao acusado a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; 3) direito de ver seus argumentos considerados, que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo para contemplar as razões apresentadas. (BRASIL, 2011, p. 94-95)
De tudo exposto, porém, o direito de defesa na ordem jurídica brasileira, requer óptica mais aberta e menos tímida, que, em vez de lhe empecer amarras, lhe dê a devida propulsão à sua eficácia jurídica, em consonância com seu propósito de ser mandatária do princípio da dignidade da pessoa humana no processo penal.
Notas
1 “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;” (BRASIL, 2012, p. 30)
2 “Os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.” (BONAVIDES, 1999, p. 517)
3 “Assim também, noutra angulação, indispensável torna-se o processo penal de conhecimento de caráter declaratório, ou constitutivo, para a afirmação do direito de liberdade do indivíduo, quando venha a sofrer, ou esteja ameaçado de sofrer, indevida constrição decorrente de ato de autoridade, ou até, em determinadas circunstâncias, de particular.” (TUCCI, 1993, p. 25)
4 “No Brasil, a ampla defesa está consagrada no art. 5º, LV, da Constituição, no art. 8.2 da CADH e também no CPP, que dedica o Capítulo III do Título VIII do Livro I, ademais de diversos dispositivos ao longo de todo o código.” (LOPES JR, 2001, p. 304)
5 Segundo Marques (2003, p. 67): “A assistência técnica e profissional de advogado, para a defesa do réu, durante o processo e julgamento da acusação contra ele articulada, é assim um injunção legal, como o diz a Exposição de Motivos (retro, nº 206); e, desatendido esse imperativo da lei, ocorre nulidade, nos termos do que preceitua o art. 564, nº III, letra c, do Código de Processo Penal.”
6 Para Tucci (1993, p. 110-111): “Realmente – tivemos já oportunidade de asseverar – ‘para ser assegurada a liberdade e, sobretudo, a igualdade das partes faz-se imprescindível que, durante todo o transcorrer do processo, sejam assistidas e/ou representadas por um defensor, dotado de conhecimento técnico especializado, e que, com sua inteligência e domínio dos mecanismos procedimentais, lhe propicie a tutela de seu interesse ou determine o estabelecimento ou o restabelecimento do equilíbrio do contraditório.’ Trata-se, por certo, de garantia que, assecuratória de efetiva paridade de armas entre as partes, adquire maior transcendência e importância no âmbito do processo penal, sendo objeto, inclusive, de caráter universal, inseridas nos textos internacionais sobre direitos humanos, e infraconstitucionais.”
7 8 “Ao estabelecer o princípio da proteção judiciária, dispondo que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV, da CF), a Constituição eleva a nível constitucional os direitos de ação e de defesa, face e verso da mesma medalha. E mais: dá conteúdo a esses direitos, pois não se limita a permitir o acesso aos tribunais, mas assegura também, ao longo de todo o iter procedimental, aquele conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, tutelam as partes quanto ao exercício de suas faculdades e poderes processuais e, do outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição: trata-se das garantias do ‘devido processo legal’ (art. 5º, LIV, da CF).” (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2009, p. 69)
9 “Independentemente do nome que se dê ao ato (interrogatório judicial, declarações policiais etc.), o que é inafastável é que ao sujeito passivo devem ser garantidos os direitos de saber em que qualidade presta as declarações, de estar acompanhado de advogado e, ainda, de reservar-se o direito de só declarar em juízo, sem qualquer prejuízo.” (LOPES JR., 2001, p. 314).
REFERÊNCIAS:
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 8ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, 793 p.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 96975-DF. Relator Ministro Gilmar Mendes. DJe-151 DIV. 05-08-2011 P. 08-08-2011 EMENT VOL-02561-01 PP-00088, p. 88/97.
______. Constituição (05.10.1988). Código Penal, Código de Processo Penal, Constituição Federal, Legislação Penal e Processual Penal. 14ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, 1438 p.
BRASILEIRO, Renato. Manual de processo penal: volume 1. Niteróri: Impetus, 2011, 1550 p.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, n. 30, ano 30, 1998, 163-168 p.
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LOPES JR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, 347 p.
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