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Nova Lei de Biodiversidade:

é hora de me regularizar?

A Lei do Patrimônio Genético ou Lei da Biodiversidade passará a regular o acesso ao patrimônio genético da biodiversidade brasileira e aos conhecimentos tradicionais a ele associados.

No dia 17 de novembro deste ano, entrará em vigor a Lei 13.123/2015. Também chamada de Lei do Patrimônio Genético ou Lei da Biodiversidade, esse diploma legal substituirá a Medida Provisória 2.186-16/2001 e passará a regular o acesso ao patrimônio genético da biodiversidade brasileira e aos conhecimentos tradicionais a ele associados. A nova lei foi publicada no dia 20 de maio deste ano, mas o legislador optou por estipular um prazo adicional (vacatio legis) de 180 dias para que ela entrasse vigor, permitindo que a sociedade se preparasse para esse momento. Por isso, só em novembro a nova lei passará a surtir todos os seus efeitos.

Apesar da terminologia pouco comum, a ideia de acesso ao patrimônio genético está associada a pesquisa e desenvolvimento com plantas, animais, microrganismos ou quaisquer outros organismos vivos. O acesso não envolve necessariamente alteração genética ou uso de técnicas avançadas de engenharia, como o nome pode sugerir. Na verdade, na maioria dos casos isso não ocorre.  Produtos como medicamentos, sabonetes, sementes, saneantes e muitos outros podem envolver acesso ao patrimônio genético ou a conhecimentos tradicionais a ele associados. Por isso mesmo, a Lei 13.123/2015 não se aplica a um ou outro setor específico, mas a todos aqueles que realizem determinadas pesquisas e desenvolvimentos com biodiversidade, sendo uma de suas características mais marcantes essa transversalidade.

Com a proximidade da entrada em vigor da nova lei, muitas dúvidas têm surgido entre empresas, universidades e pesquisadores sobre a conveniência de iniciar suas pesquisas agora,  quando ainda vige a Medida Provisória 2.186-16/2001, ou aguardar para fazê-lo apenas após 17 de novembro, quando a nova lei entrará em vigor. A mesma dúvida tem afligido aqueles que já desenvolveram atividade de acesso em desacordo com a legislação atual e que precisam se regularizar. O que fazer nesses casos? Aguardar a nova lei ou partir para a regularização de imediato? Quais as vantagens e desvantagens de cada opção? Trata-se de situação incrivelmente comum, tendo em vista que, apesar de estar em vigor há 15 anos, a legislação atual ainda é uma estranha para a maioria das pessoas e entidades.

A resposta a essas questões deve passar pela análise de cada caso e pela avaliação de variáveis como custo de transação, existência de autuações, impactos de eventuais novas autuações, prescrição, setor envolvido e o conceito de acesso. Buscaremos tratar aqui de uma das variáveis a ser considerada nessa análise, talvez a mais importante delas: o regime de repartição de benefícios a ser aplicado em razão da escolha feita pelo usuário. A importância dessa variável se deve ao fato de que ela impacta o custo presente e futuro a ser suportado pelo usuário dos recursos genéticos (empresas, universidades, pesquisadores etc.) com pagamento de repartição de benefícios de acordo com a opção que fizer.

No regime instituído pela legislação que ainda se encontra em vigor (Medida Provisória 2.186-16/2001), a repartição de benefícios a ser paga pela exploração econômica de produtos desenvolvidos a partir do acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado é definida de acordo com a livre negociação entre as partes, que é refletida em um contrato de repartição de benefícios. A única exigência legal é que essa repartição seja justa e equitativa. Na prática, conforme estudo realizado pelo próprio Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), os valores pagos a título de repartição de benefícios, quando essa é monetária, tem girado em torno de 0,28%[1] da receita líquida do produto. Há também inúmeros casos em que essa repartição se dá pela via não monetária, sendo difícil precisar os valores envolvidos, que podem ser menores ou maiores do que esse percentual.  Fora isso, há também os pagamentos de valores fixos, independentemente da receita auferida com os produtos desenvolvidos.

Na nova lei, a repartição de benefícios por acesso a patrimônio genético passará a ser, em regra[2], de 1% da receita líquida dos produtos acabados ou materiais reprodutivos desenvolvidos quando se tratar de repartição na forma monetária e de 0,75%[3] em caso de repartição não monetária. Em se tratando de acesso a conhecimento tradicional identificável, esse valor será de 0,5% da receita líquida, pagos a um Fundo da União, mais o valor que vier a ser livremente negociado com a comunidade provedora e pago a esta. Caso o conhecimento seja classificado como não identificável, a repartição será de 1% da receita líquida, pagos a um Fundo da União. Como se vê, diferentemente do que ocorria no regime anterior, o usuário não poderá mais negociar com o provedor a forma ou o valor de repartição de benefícios que entenda mais adequado. Com exceção da pequena abertura feita para o acesso a conhecimento tradicional identificável, onde parte da repartição de benefícios poderá ser negociada, tudo está previamente definido em lei.

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Na comparação entre esses dois regimes, é fácil perceber que aquele a ser instituído pela Lei 13.123/2015 tende a ser mais oneroso do que o da legislação atual para a maioria dos setores[4], seja pela média histórica dos valores pagos a título de repartição de benefícios, seja porque atualmente não há valor mínimo (nem máximo), sendo livre a negociação. Imagine-se, por exemplo, uma empresa farmacêutica ou de cosméticos que obtenha receita líquida de 100 milhões de reais por ano com produtos com biodiversidade. No regime antigo, caso negociasse repartição de benefícios de 0,2%, poderia pagar 20 mil reais. Poderia, ainda, negociar a execução de um projeto de conservação sem valor definido. No novo regime essa mesma empresa poderá pagar 100 mil reais por ano.

Assim, do ponto de vista estritamente econômico e considerando apenas a variável da repartição de benefícios, que sem dúvida é uma das mais relevantes nessa temática, tende a ser vantajoso dar início ao novo acesso no curso do regime atual. Estamos considerando nessa comparação empresas fabricantes de produtos acabados, uma vez que no novo regime as empresas intermediárias não terão obrigação de repartir benefícios.

Pode-se questionar o que aconteceria se a autorização solicitada com base no regime atual não for obtida até a entrada em vigor da nova Lei de Biodiversidade, o que é possível, tendo em vista que faltam apenas dois meses para que isso ocorra. Em tais situações, é certo que o usuário terá que adequar seu pedido à Lei 13.123/2015, nos termos previstos em seu art. 35 e 36, realizando cadastro ou pedindo autorização de acesso ou remessa, conforme o caso. A interessante questão que se coloca aqui é se o usuário poderá pagar repartição de benefícios com fundamento na legislação atual - e no contrato de repartição de benefícios negociado com fundamento nela - ou terá que aderir integralmente à nova lei e a seu regime mais oneroso de repartição de benefícios.

A Lei 13.123/2015 tratou expressamente desse tema e fixou regra de transição para os casos envolvendo regularização de acessos feitos em desacordo com a legislação atual, situação em que outorgou ao usuário direito de escolher se deseja repartir benefícios com base nas regras atuais ou nas que passarão a vigorar com a nova lei (41, § 4o[5]). Porém, curiosamente, em se tratando de pedido de autorização para acessos ainda não realizados, a lei foi omissa. Apesar disso, entendemos que esse mesmo direito deve ser concedido ao usuário por aplicação analógica da regra prevista para os casos envolvendo regularização de acessos em desacordo com a legislação.

O uso da analogia é expressamente autorizado pelo art. 4o[6] da Lei de Introdução do Direito Brasileiro. Para que essa técnica seja aplicada, devem estar presentes concomitantemente dois requisitos: a i) omissão legislativa, ou seja, a inexistência de lei regendo expressamente determinada situação (fato social); e ii) a similitude entre o fato social não regulado por lei e outro que é regulado. Na situação em análise, a omissão é indiscutível, pois inexiste qualquer dispositivo na Lei 13.123/2015 indicando o regime de repartição de benefícios a ser aplicado nos casos em que o pedido de autorização prévia de acesso estiver em curso quando da entrada em vigor da nova lei. A similitude entre os fatos sociais também salta aos olhos. Em ambos os casos, o que se tem são pedidos de autorização de acesso formulados pelo usuário antes da entrada em vigor da nova lei. A única diferença é que um pedido se deu antes do acesso e o outro depois de sua realização. Porém, nos dois o que se busca é o mesmo ato administrativo (autorização de acesso), sujeito aos mesmos requisitos legais.

A identificação desses casos como, de um lado, “situações de regularização” e, do outro,  “situações de autorização” é meramente didática e serve para auxiliar a Administração na organização de sua rotina e no exercício da atividade fiscalizatória. No entanto, o que se têm nas duas situações são pedidos de uma mesma outorga estatal (autorização de acesso) que valerá apenas a partir do momento em que for concedida. Essa outorga não apaga ou regulariza o que foi feito em desacordo com a lei, como sugere a terminologia utilizada, tanto que, em regra, eventuais autuações aplicadas por essas irregularidades são mantidas. O que há é a concessão de um ato que valerá de agora em diante, para frente, o que reforça a similitude fática dos pedidos de autorização feitos antes da realização do acesso e daqueles formulados depois. Nos dois se pede e se obtém a mesma coisa, preenchendo-se os mesmos requisitos.  Por isso, é necessário que a analogia seja utilizada para suprir a omissão legal e evitar que situações idênticas sejam tratadas de forma diferente.  

Da mesma forma que ocorre com os novos acessos, também em se tratando de regularização o regime de repartição de benefícios da lei atual tende a ser economicamente menos oneroso do que o previsto na nova lei. Isso porque, igualmente aqui, ao optar por se regularizar de imediato, o usuário poderá se valer de um regime de repartição de benefícios no qual pode negociar livremente com o provedor. Por outro lado, se aguardar pela entrada em vigor da Lei 13.123/2015, terá que se regularizar com base em seu regime, que fixa previamente a forma de repartição de benefícios nos termos já delineados acima. 

Como visto, nessa situação (regularização), caso a nova lei entre em vigor quando o pedido do usuário ainda estiver pendente, caberá a ele, a seu critério, repartir os benefícios de acordo com a lei atual ou com a nova lei, conforme determina o art. 41, § 4o, da Lei 13.123/2015. Nessa hipótese, diferentemente do que ocorre com os pedidos de autorização para acessos ainda não realizados, em que a legislação foi omissa, a nova lei outorgou expressamente ao usuário o direito de escolher entre um regime ou outro, inexistindo necessidade de se recorrer à analogia ou a qualquer outro método de integração. 

Por tudo o que foi aqui apresentado, vê-se que, do ponto de vista estritamente econômico, a regularização de um acesso realizado no passado ou a obtenção de uma autorização para um novo acesso tende a se sujeitar a um regime de repartição de benefícios mais benéfico se feito antes da entrada em vigor da nova Lei do Patrimônio Genético por empresas fabricantes de produto acabado da maioria dos setores. Assim, respondendo à pergunta que compõe o titulo desse artigo, é sim hora dos usuários que se enquadrem como fabricantes de produtos acabados se regularizarem ou obterem novas autorizações. Ressalve-se, porém, que outras variáveis importantes devem ser consideradas para que essa decisão seja tomada, o que só pode ser feito com uma cuidadosa análise de cada caso concreto.

Por fim, independentemente da análise sobre a conveniência de uma regularização/autorização imediata, que é o foco do presente artigo, é recomendável que as empresas e entidades de pesquisa passem a considerar algumas questões importantes para que estejam preparadas para a chegada da nova lei. Se fabricantes de produtos intermediários, por exemplo, devem se organizar para realizar o cadastro de suas atividades de acesso. Se fabricantes de produtos acabados, devem preparar-se para realizar o cadastro caso realize acesso, verificar com seus fornecedores se os mesmos realizam acesso e avaliar se a biodiversidade é determinante para a existência das características funcionais de seu produto ou se existe apelo mercadológico sobre a biodiversidade brasileira associada a ele. Devem ainda se preparar para realizar notificação de produto previamente à comercialização e avaliar que modalidade de repartição de benefícios escolherá, sopesando seu impacto para a companhia. Em se tratando de empresa nacional que possui vinculação ou é controlada, coligada, importadora ou representante comercial de empresa estrangeira que realiza desenvolvimento de produtos com biodiversidade brasileira no exterior, deve passar a se proteger contratualmente e monitorar se a estrangeira realiza a repartição de benefícios no Brasil, sob pena de responder solidariamente caso a estrangeira não atenda à legislação nacional e não reparta benefícios.


Notas

[1] Disponível em: < http://www.mma.gov.br/images/arquivo/80043/Apresentacao%20RB%20LARISSA%20SCHMIDT.pdf > . Acesso em: 18 set. 2015.

[2] Fazemos essa ressalva, porque esse valor pode ser reduzido em caso de acordo setorial. Eventual redução também impacta o valor devido a título de repartição de benefícios não monetária ou de acesso a conhecimento tradicional.

[3] Essa exigência não se aplica aos casos de repartição de benefícios realizada por meio de transferência de tecnologia,  disponibilização em domínio público de produto, sem proteção por direito de propriedade intelectual ou restrição tecnológica e licenciamento de produtos livre de ônus, conforme previsto no art. 22 da Lei 13.123/2015

[4] Estamos considerando nessa análise os setores em geral, mas não desconhecemos que anova lei trata de forma especial os setores que desenvolvem atividades agrícolas, entendendo-se como tais a produção, processamento e comercialização de alimentos, bebidas, fibras, energia e florestas plantadas. Nesses casos, o pagamento de repartição de benefícios se dará sobre a receita líquida obtida com o material reprodutivo, valor que tende a ser consideravelmente maior do que a obtida com o produto acabado.

[5] Art. 41o A assinatura do Termo de Compromisso suspenderá, em todos os casos: (...) § 4o O usuário que tiver iniciado o processo de regularização antes da data de entrada em vigor desta Lei poderá, a seu critério, repartir os benefícios de acordo com os termos da Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001.

[6] Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Sobre os autores
João Emmanuel Cordeiro Lima

Advogado, graduado pela UFRN e pós-graduando em Direito Empresarial da PUC/SP

Anita Pissolito Campos

Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, João Emmanuel Cordeiro; CAMPOS, Anita Pissolito. Nova Lei de Biodiversidade: : é hora de me regularizar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4479, 6 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43338. Acesso em: 22 nov. 2024.

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