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Da impossibilidade de registro da sentença que reconhece a usucapião alegada em defesa

Agenda 09/11/2003 às 00:00

1. Da natureza declaratória da sentença de usucapião

A usucapião é modalidade pela qual se adquire a propriedade imóvel, ao lado da transcrição do título e da acessão.

A ação de usucapião de bens imóveis vem disciplinada nos artigos 941 a 945, do Livro IV (procedimentos especiais), do Código de Processo Civil. O procedimento da usucapião pro labore tem tratamento especializado previsto na Lei 6.969/81, o mesmo ocorrendo com a usucapião especial de imóveis urbanos, regulamentada pela Lei 10.257 de julho de 2001.

Da simples leitura do art. 941 já se verifica que a natureza jurídica da tutela jurisdicional pleiteada na ação de usucapião é declaratória. In verbis:

"Compete a ação de usucapião ao possuidor para que se declare, nos termos da lei, o domínio do imóvel ou a servidão predial."

A ação de usucapião não tem como finalidade constituir um direito para o autor. Na verdade, adquire-se o domínio do bem pela usucapião, uma vez preenchidos os requisitos legais ligados à posse ad usucapionem e transcorrido o lapso temporal exigido pela lei. A sentença proferida na ação de usucapião apenas reconhece, com força de coisa julgada, o domínio preexistente do autor sobre o bem objeto da prescrição aquisitiva.

A transcrição da sentença de usucapião no registro de imóveis, portanto, não transfere a propriedade ao usucapiente, como ocorre na transcrição de título decorrente de negócio jurídico inter vivos; ela apenas dá publicidade ao ato judicial declaratório. [1]


2. Da Usucapião alegada em defesa

A ação de usucapião é o meio ordinário de se declarar por sentença (e com força de coisa julgada) o domínio daquele que preencheu os requisitos exigidos pela lei para a usucapião ordinária, extraordinária e especial.

Todavia, admite-se a alegação da usucapião em defesa em uma gama de ações, v.g., ação reivindicatória, divisória, demarcatória, imissão de posse e até nas ações possessórias, quando nestas a exceptio dominii é permitida. [2][3]

A alegação da usucapião em defesa deverá ser feita no prazo da contestação, pois não haverá outro momento processual para tanto, operando fatalmente a preclusão. Inobstante o artigo 1.244 do atual Código Civil determinar a aplicação ao usucapião das regras sobre as causas obstativas, suspensivas e interruptivas da prescrição, não é aplicável à prescrição aquisitiva a regra do art. 193 do mesmo estatuto; o que impede a possibilidade de argüição da usucapião a qualquer momento no processo, ou mesmo que seja declarada de ofício pelo magistrado.


3. Da impossibilidade de registro da sentença que reconhece a usucapião alegada em defesa

A possibilidade de se alegar a usucapião em defesa é decorrência do próprio sistema que autoriza o demandado, na contestação, argüir toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito, com que impugna o pedido do autor (art. 300, CPC).

Não há dúvida que o réu possa se utilizar da exceptio dominii decorrente da usucapião para afastar a pretensão do autor em uma ação reivindicatória, por exemplo.

Se o domínio decorrente da usucapião independe de sentença para a sua constituição, sendo a ação de usucapião meramente declaratória, surge a seguinte indagação: Pode a sentença que reconhecer a usucapião alegada em contestação ser levada a registro no Cartório de Registro de Imóveis, produzindo o mesmo efeito que a ação declaratória de usucapião ?

BENEDITO SILVÉRIO RIBEIRO [4] utiliza a expressão sentença recognitiva de usucapião em defesa, para definir a sentença que reconhece a usucapião alegada em defesa como seu fundamento. Para o ilustre civilista, a impossibilidade de registro dessa sentença decorre da ausência de uma série de providências que devem ser observadas no processo de usucapião, sem o que a sentença proferida não transita em julgado contra todas as pessoas a serem convocadas pessoalmente ou mediante edital (proprietário titulado, os confinantes, a Fazenda Pública Federal, Estadual e Municipal, e os ausentes, incertos e desconhecidos).

NÉLSON LUIZ PINTO [5] entende, também, não ser possível o registro da sentença que reconhece a usucapião argüida em defesa. No entanto, faz uso de outros fundamentos não menos convincentes:

"Importante notar, entretanto, que somente pela ação de usucapião, com todas as formalidades exigidas pela lei processual, conseguirá o usucapiente a declaração de seu domínio, com força de coisa julgada material, para posterior registro no competente Cartório de Registro de Imóveis. Com a exceção de usucapião, poderá o usucapiente, apenas, afastar a pretensão do proprietário de reaver o imóvel, sem que isto se constitua em reconhecimento judicial definitivo de domínio. Apenas a ação reivindicatória será julgada improcedente, tendo o usucapião sido usado pelo magistrado como causa de decidir, como fundamentação de sua decisão que, como se sabe, não fica revestida da autoridade de coisa julgada, nos termos do art. 469 do CPC."

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Diante da peremptória negativa de se levar a registro sentença que reconhece a usucapião alegada em sede de contestação, pelas razões subtraídas de respeitáveis juristas, dúvidas poderiam surgir no sentido de se admitir a alegação da prescrição aquisitiva em pedido reconvencional, mesmo porque, o procedimento previsto no Código de Processo Civil para a ação declaratória de usucapião é essencialmente o ordinário.

Todavia, da mesma forma, é inadmissível a alegação da usucapião em reconvenção nas ações petitórias e possessórias, em virtude do litisconsórcio obrigatório exigido para a ação de usucapião (citação pessoal dos confinantes e terceiros interessados via edital), bem como das intimações obrigatórias às Fazendas Públicas e intervenção do Ministério Público. São essas providências peculiares exigidas pela Lei que justificam a inserção da ação declaratória de usucapião no Livro dos procedimentos especiais, e que impediriam a apresentação de reconvenção naquelas ações; do contrário estar-se-ia admitindo a ampliação subjetiva da demanda com o pedido reconvencional, o que seria incompatível com o disposto no art. 315 e segs. do Código de Processo Civil.

Em relação à usucapião especial rural, a Lei 6.969/81 prevê o rito sumaríssimo (lê-se sumário). Igualmente faz a Lei 10.257/2001, em seu art. 14, que trata da usucapião especial de imóvel urbano. Portanto, a possibilidade de reconvenção nestas ações fica afastada.


4. Exceção à regra da impossibilidade de registro

Regra geral, a sentença que reconhece a usucapião alegada em defesa não pode ser levada a registro na circunscrição imobiliária competente, pelas razões expostas no item anterior.

No entanto, não é a regra que prevalece quando se trata da usucapião especial.

A Lei 6.969/81, que regulamenta a usucapião especial rural, em seu art. 7º, assim dispõe:

"A usucapião especial poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para transcrição no Registro de Imóveis."

O dispositivo foi repetido pela Lei 10.257/2001, que, em sua seção V, cuida da usucapião especial de imóvel urbano.

Do referido artigo de lei devemos fazer duas importantes observações:

Primeiramente, o legislador quis estender a sua aplicabilidade a quase totalidade das ações que versam sobre domínio, ou mesmo as de caráter possessório. Se a intenção do elaborador da lei fosse apenas aplicar o artigo nas ações de usucapião especial, não haveria necessidade de sua previsão, já que o procedimento previsto na lei é o sumário, sendo admitido o pedido contraposto nos termos do art. 278, §1º, do Código de Processo Civil.

Dessa primeira observação decorre a segunda mais importante. Por exemplo, ao se admitir a invocação da usucapião especial como matéria defesa em uma ação reivindicatória, sendo a sentença que a reconhecer registrável na circunscrição imobiliária competente, deve-se atentar às providências exigidas pelo art. 5º e parágrafos da Lei 6.969/81, semelhantes às previstas nos artigos 942 e 944 do Código de Processo Civil. Do contrário, estar-se-ia declarando, com força de coisa julgada material, a usucapião especial, sem a observância das peculiaridades procedimentais determinadas pela Lei. [6]

BENEDITO SILVÉRIO RIBEIRO [7] entende que não há óbice à exceção usucapional prevista no art. 7º, inclusive atribuindo à sentença validade erga omnes, contudo exclui dos efeitos da coisa julgada material os direitos de terceiros não participantes no processo (confinantes, ausentes, incertos ou desconhecidos e as Fazendas Públicas).

O problema é maior, se a exceção de usucapião especial for oposta em ação possessória, pois a aplicação do art. 7º, sem a observância do disposto no art. 5º e parágrafosda Lei 6.969/81, atingiria o direito do titular do registro imobiliário, que sequer foi parte na demanda.

Assim, é forçoso concluir que as providências previstas no referido art. 5º devem ser observadas em toda gama de ações que versem sobre domínio ou posse, onde for oposta a exceção de usucapião especial, seja de imóvel rural ou mesmo urbano, pois, do contrário, não se poderá dar à sentença o efeito "erga omnes" almejado.


Conclusão

Vimos que a natureza da sentença de usucapião é meramente declaratória, pois o domínio é adquirido independente de provimento jurisdicional, desde que preenchidos os requisitos legais concernentes à posse ad usucapionem. Por essa razão, a usucapião pode ser alegada como matéria de defesa, independentemente de prévio reconhecimento judicial. Via de regra, a sentença que reconhece a usucapião alegada em defesa não pode servir de título registrável no Registro de Imóveis competente. Excepcionalmente as Leis 6.969/81 e 10.257/2001, que regulamentam a usucapião especial rural e urbana, respectivamente, prevêem o registro da sentença que reconhece a usucapião especial argüida em defesa, todavia, deverão ser observadas as providências procedimentais do art. 5º e parágrafos da Lei 6.969/81.


NOTAS

01. PINTO, Nelson Luiz. Ação de Usucapião. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p.144.

02. RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 1293-1327.

03. Súmula 237 do STF : " O usucapião pode ser argüido em defesa"

04. Tratado de Usucapião. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 1297. v.2.

05. Ação de Usucapião. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 151.

06. PINTO, Nelson Luiz. Ação de Usucapião. p. 152.

06. Tratado de Usucapião. v.2. p. 1298.


BIBLIOGRAFIA

DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, v.3.

PINTO, Nelson Luiz. Ação de Usucapião. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.

PINTO, Nelson Luiz; PINTO, Tereza Arruda Alvim. Repertório de Jurisprudência e Doutrina sobre Usucapião. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.

RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. São Paulo: Saraiva, 1992. v.1 e v.2.

Sobre o autor
Rodrigo Gazebayoukian

advogado em São Paulo (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAZEBAYOUKIAN, Rodrigo. Da impossibilidade de registro da sentença que reconhece a usucapião alegada em defesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 126, 9 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4359. Acesso em: 23 nov. 2024.

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