A submissão de trabalhadores a exames toxicológicos para fins de contratação pode sugerir, em princípio, abuso do poder diretivo por parte do empregador, em especial por não respeitar os direitos fundamentais à intimidade e à vida privada, os quais incidem nas relações privadas (eficácia horizontal direta e imediata), condicionando-o.
Destaca-se, outrossim, possível caráter discriminatório na medida, já que eleito critério que, a priori, deveria ser tratado como doença, não sendo lícito, neste sentido, para justificar eventual distinção, consoante dispõem as Convenções nº100 e 111 da Organização Internacional do Trabalho, a Declaração Sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998, além do enunciado pelos artigos 3,IV; 5º,I; 7º, XXX a XXXII, todos da CF/88 e na Lei nº9029/95.
Contudo, importa reconhecer que os trabalhadores aquaviários, sobretudo os marítimos, estão sujeitos a condições peculiares de trabalho, díspares da dos trabalhadores urbanos e rurais em terra firme, em especial por permanecerem tempo demasiado privados do contato com a família e amigos, laborando em regime de permanente prontidão, além de desafiar meio ambiente de trabalho hostil, sujeito às dificuldades do meio externo, tais como intempéries e imprevistos propiciados pela vida no mar.
Augusto Grieco Sant´Anna Meirinho, sobre os aquaviários, leciona que[i]:
Pode-se afirmar que o ambiente de trabalho da maior parte dos aquaviários é atípico. Existe a confusão da residência do trabalhador
com o seu local de trabalho. Ao final da jornada de trabalho, o aquaviário que trabalha embarcado por algum tempo não retorna para a sua casa, como ocorre com os demais trabalhadores, permanecendo a bordo da embarcação. O aquaviário não se desconecta do seu trabalho ao final da jornada laboral. Permanecendo a bordo da embarcação, continua submetido a uma rotina diferenciada, mesmo que não esteja desempenhando as suas funções laborais. Isto ocorre, principalmente, no caso dos marítimos, fluviários e pescadores de alto-mar.
Especificamente, sobre os marítimos, o mesmo autor enfatiza que[ii]:
Os longos períodos a bordo da embarcação contribuem para o aparecimento de uma série de doenças psicológicas. Solidão, sentimento de inadequação na sociedade, estranhamento por parte da própria família na volta ao lar, falta de reconhecimento pelo trabalho são alguns motivos que levam as tripulações a estados de fadiga e depressão.
Nesse passo, frise-se que, de acordo com a Lei nº9537/97(LESTA) e seu Regulamento (Decreto nº2596/98), os marítimos laboram em embarcações destinadas à navegação em mar aberto, apoio portuário, para a navegação interior nos canais, lagoas, baías, angras, enseadas e áreas marítimas consideradas abrigadas, ou seja, sujeitos a regime de trabalho que exige atenção permanente, treinamento, preparação física e psicológica para que, caso imprevistos aconteçam, possam estar aptos para bem desempenhar suas funções, assumindo seus postos e garantindo a segurança, vida, saúde e meio ambiente hígido para todos.
Válido destacar, ademais, que intimidade, vida privada, segurança, saúde, vida, meio ambiente, são todos direitos fundamentais enunciados para salvaguarda da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, nos termos do inciso III do artigo 1º da CF/88, a orientar o caráter insubstituível do homem, sendo atributo intrínseco do ser humano, que o justifica como fim em si mesmo e não meio para obtenção de qualquer outro objetivo.
Ressalta-se, nesse passo, que os direitos fundamentais, consoante o pós-positivismo, são enunciados como princípios, os quais, junto às regras, são espécie de normas, cuja diferença entre elas é qualitativa, sobretudo pelo enunciado mais aberto dos princípios, o que propicia que irradiem sobre diversas hipóteses fáticas.
Nessa esteira, enquanto as regras são aplicadas sob o regime do “tudo-ou-nada”, incidindo ou não incidindo no caso concreto, os princípios são verdadeiros mandamentos de otimização, os quais devem ser aplicados na maior medida do possível, dentre as possibilidades fáticas e jurídicas existentes.
Luís Roberto Barroso, nesse viés, assevera que[iii]:
O reconhecimento de normatividade aos princípios e sua distinção qualitativa em relação às regras é um dos símbolos do pós-positivismo (...) Princípios não são, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas específicas, mas sim normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios. A definição do conteúdo de cláusulas como dignidade da pessoa humana, razoabilidade, solidariedade e eficiência também transfere para o intérprete uma dose importante de discricionariedade. Como se percebe claramente, a menor densidade jurídica de tais normas impede que delas se extraia, no seu relato abstrato, a solução completa das questões sobre as quais incidem.
Destaca-se, ademais, que os conflitos entre regras são resolvidos por metanormas civilistas clássicas(critérios de especialidade, hierarquia e cronológica), sendo os conflitos entre princípios, por seu turno, resolvidos por meio da ponderação ou sopesamento entre eles, pois inexiste qualquer hierarquia entre os mesmos, cuja validade do resultado deve ser aferida pelo teste de proporcionalidade(adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).
O mesmo Luís Roberto Barroso adverte que[iv]:
A existência de colisões de normas constitucionais leva à necessidade de ponderação. A subsunção, por óbvio, não é capaz de resolver o problema, por não ser possível enquadrar o mesmo fato em normas antagônicas. Tampouco podem ser úteis os critérios tradicionais de solução de conflitos normativos – hierárquico, cronológico e da especialização – quando a colisão se dá entre disposições da Constituição originária. Neste cenário, a ponderação de normas, bens ou valores (...) é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele (i) fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa ou, no limite, (ii) procederá à escolha do direito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional. Conceito-chave na matéria é o princípio instrumental da razoabilidade.
Nessa esteira, o núcleo fundamental dos princípios colidentes deve ser preservado na resolução da antinomia, sendo o resultado da ponderação, por sua vez, uma norma de direito fundamental atribuída para o caso concreto, o que evidenciará uma relação de precedência condicionada, já que alteradas as condições fáticas e jurídicas existente, o resultado poderá ser diverso.
O caso concreto, aliás, bem reproduz esta última assertiva, visto que, embora, como ressaltado inicialmente, o resultado mais esperado para conflitos que sugerem preservação do direito de propriedade do empregador na contratação e o direito à intimidade e vida privada dos trabalhadores seja pela preservação destes últimos, o resultado, no caso dos marítimos, deve ser diverso.
É que, na hipótese específica, não se trata somente da proteção do direito à propriedade do empregador/armador, a garantia da livre iniciativa ou o poder diretivo do empregador, mas, também, da saúde, da segurança, da vida e da preservação do meio ambiente hígido em favor dos demais tripulantes e, atém mesmo, da população como um todo, da fauna e da flora, pois eventual desastre marítimo poderá violá-los.
Nessa senda, a submissão de pretensos candidatos a ocuparem postos de marítimos em embarcações a exames toxicológicos é legítima, ultrapassando o teste de proporcionalidade.
Nesse passo, a medida é adequada par aos fins pretendidos, qual seja a preservação da saúde, vida, meio ambiente e segurança dos demais, direitos que podem ser afetados pela impossibilidade de determinado trabalhador exercer suas funções por fatores ligados à dependência química, tais como os efeitos do uso ou mesmo da abstenção.
Outrossim, a medida é necessária, já que as peculiaridades do trabalho embarcado não parecem oferecer opção menos gravosa e restritiva aos direitos à intimidade e à vida privada dos trabalhadores para que seja assegurado o bem de todos.
Ademais, a medida, nada obstante relativizar o direito à intimidade, gera mais benefícios, em especial a garantia da segurança de todos, do que prejuízos, o que a caracteriza como lícita e legítima.
Não se revela, outrossim, qualquer caráter discriminatório ilícito na exigência, pois o critério eleito possui fundamentação legítima e correlação lógica com os fins pretendidos, preservando, ademais, os vetores eleitos na Carta Magna de 1988, não podendo ser descrito, portanto, como infundado.
Não se alegue, ainda, qualquer violação ao inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, para o qual qualquer restrição ao trabalho, ofício ou profissão deveria advir de lei em sentido formal.
É que a norma descrita também não é absoluta, enquadrando-se no contexto do conflito de direitos fundamentais supramencionado, a possibilitar, ao nosso sentir, a aplicação da “ponderação de segundo grau”.
Nesse sentido, leciona André de Carvalho Ramos que em determinadas hipóteses, a despeito do Constituinte já ter estabelecido a solução de uma colisão entre direitos fundamentais, esta não dispensaria uma nova ponderação a depender dos interesses contrapostos[v]:
Por outro lado, a Constituição e os tratados de direitos humanos possuem alguns direitos que são redigidos de forma determinada, levando em consideração a interação com outros direitos, fixando-se limites. Em relação a tais direitos que já se apresentam redigidos de forma mais precisa, com limites estabelecidos, a dúvida é a seguinte: é possível aplicar o critério de proporcionalidade e ponderar de novo também esse direito, mesmo diante do fato de que sua redação originária na Constituição Federal de 1988 já possui regras claras solucionando colisões?
Dois exemplos clarificam o problema: 1) a existência de várias decisões judiciais proibindo a divulgação de notícias, circulação de livros ou vídeos, bem como a realização de peças artísticas diversas por ofensa à intimidade e vida privada, apesar de a Constituição ter
proibido expressamente a censura de qualquer tipo; e 2) a autorização judicial de invasão policial noturna de domicílio, em que pese a Constituição ter estabelecido, entre outras condições, para a superação da inviolabilidade domiciliar, que essa seja feita “durante o dia”.
Destarte, clarifica o renomado autor que, no caso da superação da inviolabilidade domiciliar, o Supremo Tribunal Federal[vi]:
(...) utilizou-se a proporcionalidade e a concordância prática para justificar uma “ponderação de segundo grau”, ou seja, apesar de a regra de colisão já ter sido estabelecida pela Constituição (e o constituinte ter ponderado a limitação do direito à justiça e à verdade em face do direito à inviolabilidade domiciliar) o STF decidiu submeter essa regra (“durante o dia”) a uma nova ponderação e, tendo em vista o caso concreto, autorizou a invasão noturna do domicílio, uma vez que o escritório de advocacia estaria a serviço dos criminosos – justamente aproveitando do seu direito à inviolabilidade domiciliar – e a colocação da escuta ambiental seria inviável durante o dia.
O mesmo raciocínio, a nosso ver, justifica a relativização excepcional da reserva legal no caso específico de exames toxicológicos em face dos marítimos, o que decorre, como demonstrado, da ponderação entre os interesses contrapostos envoltos no caso concreto, sem menosprezar a validade e a eficácia do direito fundamental exposto no artigo 5º, XIII, da CF/88 em abstrato, o qual visa preservar a liberdade de trabalho, salvo previsão legal a impor exigências limitadoras fundadas no interesse público.
Nesse sentido, talvez por outros fundamentos, não é outra a conclusão exposta na Orientação nº19 da CONATPA/MPT:
19) CONTRATAÇÃO DE MARÍTIMOS. EXAMES TOXICOLÓGICOS. É razoável e legítima a exigência de realização de exames toxicológicos como pressuposto para contratação de trabalhadores marítimos que desempenharão suas funções em ambiente confinado, embarcados por períodos consideráveis. Medida que visa resguardar a segurança da embarcação, preservando a saúde e a vida da coletividade de trabalhadores à bordo.
Portanto, a solução descrita é compartilhada pela Coordenadoria Nacional do Trabalho Portuário e Aquaviário do Ministério Público do Trabalho, que está atenta às peculiaridades do trabalho dos marítimos, possuindo como um de seus misteres a preservação da higidez do meio ambiente do trabalho embarcado e a segurança de tripulantes e não-tripulantes.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil) Disponível em: < http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/neoconstitucionalismo_e_constitucionalizacao_do_direito_pt.pdf >. Acesso em: 21. 10. 2015.
MEIRINHO, Augusto Grieco Sant´Anna. Trabalho aquaviário. Noções introdutórias. Revista do Ministério Público do Trabalho, v. 45, p. 191-217, 2013.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
NOTAS
[i] MEIRINHO, Augusto Grieco Sant´Anna. Trabalho aquaviário. Noções introdutórias. Revista do Ministério Público do Trabalho, v. 45, 2013, p.211.
[ii] Ibid., p. 212.
[iii] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil) Disponível em: < http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/neoconstitucionalismo_e_constitucionalizacao_do_direito_pt.pdf >. Acesso em: 21. 10. 2015, p.13.
[iv] Ibid., p.14.
[v] RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.113.
[vi] Ibid., p.15.