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Ainda sobre obrigação e crédito tributário:

resposta a Tácio Lacerda Gama

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Agenda 20/10/2003 às 00:00

9. A publicidade da norma individual e concreta

Para a teoria carvalhiana, nunca é demais lembrar, o processo de positivação do direito exige sempre a edição de uma norma individual e concreta, é dizer, que haja relato em linguagem competente, escrita e documental. Entre outros exemplos que expus, demonstrando a existência de fatos jurídicos sem revestimento em linguagem escrita, no direito tributário, constava o lançamento por homologação tácita, decorrente da omissão do fisco em se manifestar expressamente, no prazo de cinco anos, sobre a sua concordância, ou não, com o pagamento efetuado pelo contribuinte do tributo, que ele próprio quantificou em sua escrita [61].

Refutando o exemplo dado, assere Tácio Lacerda Gama: "... Existiria aqui o tão procurado fato jurídico sem linguagem? É evidente que não, pois, para o direito, não haverá homologação tácita sem que haja relato em linguagem apropriada" [62]. Noutras palavras, a homologação tácita, para ser jurídica, tem que ser... expressa! A afirmação já destruiria, por si só, o argumento.

Poder-se-ia dizer, tentando salvar essa argumentação fustigada, que a omissão do fisco teria que ser relatada, retrospectivamente, em linguagem competente, pelo menos posteriormente aos cinco anos (§ 4° do art. 150 do CTN), para que viesse a ter relevo para o direito. Ora, na mais absoluta maioria dos casos, vencidos os cinco anos sem que o fisco atue, não há relato posterior em linguagem competente. Nessa hipótese de homologação tácita, não estaríamos diante de um fato jurídico sem linguagem competente? Se a resposta for pela negativa, como afirma Tácio Gama, então a homologação tácita não seria fato jurídico, sendo talvez produto daquela "incidência psicológica" que geraria deveres morais.

Paulo de Barros Carvalho, em nenhum dos seus escritos, sustentou a necessidade de um relato posterior, em linguagem competente, da homologação tácita. Escrevendo sobre o tema, o professor paulista destacou que o prazo fixado pela legislação, para que o fisco exercesse as suas prerrogativas homologatórias, findo o qual o pagamento antecipado seria tido por homologado por força de um comportamento omissivo do titular do direito subjetivo ao tributo, era uma garantia da firmeza e segurança das relações jurídicas. Desse modo, o silêncio do Fisco, durante esse trato de tempo, faz surgir a homologação tácita ou ficta. Razão pela qual, para Paulo de Barros Carvalho, o prazo de cinco anos para o fisco se manifestar, expressa ou tacitamente, não seria nem decadencial nem tampouco prescricional, "... pois entendo existir, para a Fazenda, o direito de exercer tacitamente seus deveres homologatórios, manifestando, quando assim consultar seus interesses, a faculdade de manter-se quieta, omitindo-se" [63]. Noutras palavras, o fisco tem o direito ao silêncio, à omissão, ao manter-se inerte, em razão do próprio permissivo legal. Por isso mesmo, "... o fato jurídico da homologação tácita consubstancia a própria realização do direito de homologar, se bem que por meio de um comportamento omissivo" [64]. Com essa percepção clara do ordenamento jurídico, não exige Paulo de Barros Carvalho o relato em linguagem competente desse comportamento omissivo do fisco, até mesmo porque a sua exigência feriria o quod plerumque accidit.

Se o fato jurídico da homologação tácita é o exercício do direito do fisco ficar quieto, omitir-se, então não resta dúvida da existência de fatos jurídicos sem linguagem escrita e documental. Para obviar a minha crítica, não restou outra saída a Tácio Lacerda Gama que não a sustentação da necessidade de um relato posterior desse fato jurídico omissivo. Nada obstante, não apontou a quem caberia relatar essa omissão em linguagem competente, nem a oportunidade própria para fazê-lo.

Afirma ainda Tácio Gama, que as informações feitas ao fisco (DCTF, GFIP, v.g.) seriam normas individuais e concretas produzidas pelo contribuinte. Pensemos em duas hipóteses simples: (a) o contribuinte não informou o fisco sobre sua escrita fiscal, passando o prazo de cinco anos, contado do exercício seguinte àquele em que ocorreu o fato jurídico tributário, sem que houvesse lançamento de ofício; e (b) o contribuinte informou o fisco, efetuou o pagamento a menor do que os valores que declarou, e passou o prazo de cinco anos sem atuação do fisco [65]. Na primeira hipótese, não houve manifestação do contribuinte nem do fisco, passando em branco o prazo para a realização do lançamento de ofício e lavratura do auto de infração; e, na segunda hipótese, houve a manifestação do contribuinte, tendo efetuado pagamento a menor do que o devido, também restando inerte o fisco no prazo que possuía para lançar de ofício e lavrar o auto de infração. Pergunta-se: qual a diferença, nas duas hipóteses, em relação à inércia do fisco? Resposta: na primeira, houve decadência do direito de lançar; na segunda, houve homologação tácita, iniciando-se, a partir daí o prazo prescricional. Em ambas as hipóteses, o silêncio do fisco gerou efeitos jurídicos. Passados esses outros cinco anos sem propositura da execução fiscal (prazo prescricional), o silêncio e o tempo consumiram a possibilidade do fisco lançar e executar, respectivamente. A linguagem atestando a ocorrência de tais fatos (omissões sucessivas do fisco) é mero acidente de percurso. Raramente ocorre, ao contrário do afirmado por Tácio Gama. Nesses casos, contudo, a teoria carvalhiana afasta a presença de fenômenos jurídicos.

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10. Direito e efetividade.

Um dos aspectos mais intrigantes da teoria carvalhiana está situado na relação existente entre as condutas prescritas nas normas jurídicas e o seu cumprimento, ou não, no plano da realidade. Se tomarmos como pressuposto que os "fatos", no seio dessa teoria, são os conteúdos dos enunciados protocolares e denotativos, a questão é de fácil desate: bastaria que um sujeito competente enunciasse a ocorrência de eventos e, apenas pela própria enunciação, estariam constituídos os fatos jurídicos. Porém, mesmo os fatos jurídicos constituídos através das normas individuais e concretas têm efeitos prescritos (os fatos-efeitos), que também são constituídos pelos enunciados. O puncto saliens seria então saber qual o ponto de contato entre os efeitos prescritos por uma norma individual e concreta e a realidade empírica. Se tomarmos como exemplo uma medida liminar, concedida pelo juiz, em razão da probabilidade de ocorrência de um dano irreparável para o contribuinte, determinando a liberação de um caminhão carregado de peixes, retido pelo fisco, veremos que a ordem expedida se exaure como conteúdo do provimento judicial. Para que a liberação ocorra licitamente, será necessário que a ordem seja reproduzida em um mandado judicial e ele seja entregue, por um oficial de justiça, para que o agente público libere a carga. A liberação da carga de peixes, no plano da realidade, é cumprimento da ordem judicial emitida. A sua desobediência traria graves conseqüências jurídicas para o agente público, inclusive de natureza penal.

Para o cumprimento da norma individual e concreta expedida pelo juiz, no exemplo citado, não basta o agente público tomar conhecimento do seu conteúdo. A ordem expedida determina uma ação concreta: a liberação do caminhão com a carga perecível. Noutras palavras, a proposição mandamental contida no enunciado expedido pelo juiz não se exaure nela mesma, reivindicando a ocorrência de comportamentos no mundo concreto, sem os quais a ordem restará frustrada, desobedecida e, desse modo, ineficaz. Isso nos leva a pensar, ainda que ligeiramente, sobre a pretensão do autor da ação judicial quando vem a juízo requerer um provimento liminar. Sua pretensão é de obter uma ordem judicial ou uma solução concreta e efetiva? A ordem, pela ordem, satisfaria a pretensão do interessado?

Naturalmente que o incumprimento da ordem judicial, ou mesmo o seu cumprimento tardio, trará conseqüências jurídicas, inclusive o nascimento do direito ao ressarcimento dos prejuízos sofridos pela parte interessada e prejudicada. Desse modo, para além da norma individual e concreta expedida pelo juiz, há o problema do seu atendimento ou não, que apenas pode ser aferido no plano dos fatos concretos. Pergunta-se: a observância pelos destinatários da ordem judicial, para além da linguagem escrita e documental, é havida como fato jurídico lícito ou apenas como um fato social, estranho ao direito? Ora, para o advogado prático, que convive com as questões do fórum, ou mesmo para o jurista habituado com as questões processuais, sobretudo relativas às ações executivas e mandamentais (especialmente as ligadas às tutelas de urgência satisfativas ou cautelares), seria desarrazoado excluir do mundo jurídico os efeitos das sentenças ou decisões interlocutórias, havendo-os por matéria afeta à sociologia. Seria transformar os operadores do direito (juiz, advogados, promotores públicos etc.) em sociólogos, ao lado dos processualistas.

Enfrentado o problema, Eurico M. Diniz de Santi e Paulo César Conrado afirmam que "... A medida liminar no mandado de segurança funciona como eixo de calibração entre mundo jurídico e mundo social, entre causalidade jurídica e causalidade natural, buscando aplacar imediatamente, mediante norma-solução provisória, a causalidade natural decorrente da eficácia social do ato de autoridade: o ato jurídico de retenção provoca a eficácia social da retenção que, por sua vez, provoca o efeito da causalidade natural do perecimento (dos peixes apreendidos)" [66]. Ora, se a retenção é vista como eficácia social do ato jurídico de retenção, qual seria o seu efeito jurídico? Um ato jurídico de retenção, que não retém nada, pode ser tudo, menos um ato jurídico de retenção.

Doutra banda, Eurico de Santi e Paulo César Conrado asseveram que a liminar seria, nesse caso analisado, uma norma-solução provisória. Provisória, em que sentido? Em verdade, parece-nos evidente que a liminar, em casos que tais, dada a sua satisfatividade, não se reveste do caráter de provisoriedade, ao menos quanto aos seus efeitos práticos. Imagine-se que o juiz revogasse, dias depois de cumprida, a sua ordem. Haveria como, no mundo dos fatos, ser ela cumprida, tendo em vista que o carregamento de peixe havia sido liberado e vendido para os consumidores finais do supermercado que adquirira a carga? A segunda decisão judicial não poderia ser cumprida, justamente pela perda de objeto, falecendo-lhe o sentido operativo, a viabilidade de realização [67]. Embora a sentença (norma-solução definitiva) viesse a julgar inexistente o direito líquido e certo invocado, a liminar já teria operado efeitos jurídicos definitivos, pela sua satisfatividade, inerentes a provimentos judiciais dessa natureza. A tutela da aparência suplanta, em casos que tais, a tutela da evidência, pela operatividade do direito como processo de adaptação social. Aqui, a linguagem jurídica se rende à faticidade jurídica [68].

Como já demonstramos anteriormente, a teoria carvalhiana toma o dever-ser apenas do ponto de vista sintático, razão pela qual tomará a efetividade da norma também apenas sintaticamente, como problema lógico-formal. Sintática é a concepção de efetividade, do ângulo lingüístico, que toma o termo "eficácia" no sentido de aptidão da norma para produzir efeitos jurídicos, independentemente de sua produção concreta, na realidade: "... prescinde também da relação para com os comportamentos de fato ocorridos e não vê nenhuma influência entre obediência a efetiva da norma e a possibilidade de produção de efeitos" [69]. Já a concepção semântica toma a efetividade como cumprimento e aplicação concreta da norma, exigindo uma relação entre o seu enunciado com o que sucede na realidade por ela referida [70]. Porém, para a concepção pragmática, não basta apenas a possibilidade de produção de efeitos (sintaxe) ou sua observância regular (semântica), mas a junção de ambas, numa relação metacomplementar das condições de aplicabilidade, exigibilidade e executoriedade da norma [71]. Uma visão pragmática da efetividade impõe uma profunda relação entre o relato e o cometimento da norma (entre o seu significado e o resultado prático a que visa); relação essa que se dá na intimidade do discurso, ou seja, na ação lingüística, em que alguém dá a entender alguma coisa a outrem, de maneira que são relevantes não apenas as palavras pronunciadas, "... mas quem pronuncia, quem ouve e as respectivas reações, conforme certas regras" [72]. É dizer, as reações (a observância ou não da norma) são fundamentais para uma concepção pragmática do direito, que alcança não apenas as dimensões locucionária e ilocucionária das proposições prescritivas, mas também a sua dimensão perlocucionária [73].

A supressão dos fatos sociais do centro das preocupações jurídicas, na teoria carvalhiana, a par dos aspectos ideológicos encobertos, não consegue esconder um equívoco teórico grave: o imaginar que todo fato social seria objeto de interesse sociológico, o que o excluiria do campo dos objetos jurídicos. Apenas a norma jurídica, como proposição prescritiva, seria objeto da ciência jurídica; os fatos sociais, ainda que analisados sub specie normae, seriam objetos afetos à sociologia.

Lourival Vilanova demonstrou, de uma vez por todas, o equívoco de uma tal visão reducionista. Partindo do princípio de que os fatos sociais pressupõem inter-relações, poderiam ser elas analisadas a partir do seu conteúdo (ético, jurídico, econômico etc.) ou apenas de sua forma, analisando os múltiplos processos de relação interindividual. Aqui, importa o quantitativo; ali, o qualitativo [74]. Há um espaço neutro onde ambas as dimensões, forma e conteúdo, se encontram, se fundem. Como objeto de estudo, podemos tomar os fatos sociais como objetos reais (forma), observando-os quantitativamente, separando, unindo, catalogando, deixando entre parêntesis o seu sentido, o seu conteúdo. Podemos também nos deter, metodicamente, na análise dos conteúdos, como "puros" conteúdos, suprapositivos, despregados do mundo da vida (ética pura, normativismo puro etc.)

Se tomamos os fatos sociais como objetos reais, sem preocupação com o seu sentido ou com os seus fins, apanhamo-los como objeto da sociologia, porque a sociologia "... trata como objetos reais. Os fatos sociais são objetos reais. A realidade do fato social reside em estar no tempo e no espaço e em esgotar-se na forma de existência, do que a conexão de causalidade é decorrência. A causalidade, como sabemos, implica a modalidade de ser do objeto" [75]. Porém, os fatos sociais, pela sua própria consistência, são um dado de natureza bilateral, formado das duas dimensões: há uma dualidade de constituição do objeto. Por essa razão, o mesmo objeto admite mais de uma forma de aproximação teórica, sem que isso implique dissolver a sua própria complexidade: "A sociologia do direito e do Estado e a teoria geral do direito e do Estado são, simultaneamente, possíveis se nos firmamos no princípio de que o objeto jurídico-estatal é um objeto dualmente estruturado, tendo por subestrutura o fato, e por superestrutura as significações e os valores (as regras do direito são expressões normativas dos valores e significações)" [76]. É justamente na dualidade dos fatos sociais que se encontram e se conjugam ser e dever-ser, faticidade e idealidade: "... A dualidade em questão não exclui que existam objetos, um ‘terceiro reino de objetos’, os objetos culturais, que envolvem, numa síntese, o ser e o dever-ser: assim, o Estado, o direito etc." [77]. Essa dualidade de ser e dever-ser perpassa toda a obra vilanoviana, alcançando seus escritos mais recentes. Em seu estupendo livro sobre as estruturas lógicas do direito positivo, Vilanova volta a afirmar essa dualidade do objeto jurídico: "O ser e o dever-ser são logicamente separáveis, porque irredutíveis. Efetividade e validade (validade lógico-formal e validade jurídica) estão colocadas em dois planos. Mas o ponto de encontro é o homem mesmo e sua projeção comunitária, a sua existência como intersubjetividade. Levanta-se o problema de como ser e dever-ser, efetividade (eficacidade) e validade, fato e norma, idealidade e realidade, sendo diferentes, relacionam-se...". E arremata: "A experiência nos dá o Direito como objeto contendo essa dualidade. É um dado-da-experiência, que se tem de aceitar. Toda teoria redutora (psicologismo, sociologismo, axiologismo, normativismo) tem forçoso ponto-de-partida nesse dado da experiência. Há de se começar fenomenologicamente com a descrição dos componentes do objeto dado. A redução (não em sentido fenomenológico, claro) de fato-de-conduta à norma ou valor, ou de norma à ocorrência factual, ou de validade à consciência subjetiva do valor, representam teorizações em nível de meta-experiência. Mas, sem sair dos limites da experiência, temos espécies de objetos, porém inter-relacionados" [78]. Em resumo, podemos asseverar: o direito é o todo (fato, valor e norma), embora possamos, em nível de metaexperiência, decompor o todo em partes, embora o direito, como objeto mesmo, contenha aquela dualidade de ser e dever-ser, de faticidade e normatividade, sendo um dado da experiência "que se tem de aceitar".

Agora, podemos regressar ao problema da liminar concedida no mandado de segurança, cujo efeito principal foi a expedição de uma ordem para a liberação do caminhão, portando uma carga de peixes. A liberação do caminhão é fato social, com significado jurídico: fato jurídico, portanto. Nele, encontram-se forma e conteúdo, ser e dever-ser em efetividade, faticidade e normatividade.O sentido que impregna o ato de liberação da mercadoria não é social (embora, possa ser também, dada a dualidade do objeto, a conduta humana); é, na verdade, jurídico. Cumprir a ordem judicial de liberação é realizar, no ser, o dever-ser da norma individual e concreta. Com isso, evitamos a afirmação de ser a medida liminar uma "... norma-solução provisória que protege a eficácia social da norma-solução definitiva do mandado de segurança (sentença)... " [79], porque, afinal, se o direito protege a eficácia social da sentença, já a tomou como relevante para a juridicidade, vale dizer, como eficácia jurídica.

Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: asc@adrianosoares.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Ainda sobre obrigação e crédito tributário:: resposta a Tácio Lacerda Gama. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 109, 20 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4406. Acesso em: 23 nov. 2024.

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