1. INTRODUÇÃO
O presente artigo visa demonstrar que a Lei n. 10.689, de 13 de junho de 2003, alterou o critério objetivo utilizado para a concessão do chamado benefício assistencial, nominado pela Lei 8.742/1993 de benefício de prestação continuada.
Antes, porém, é feito um breve apanhado da parte legislativa e dos entendimentos jurisprudenciais desde a Constituição Federal de 1988.
2. DISPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL
A Lei Maior de 1988, adjetivada como Carta Cidadã, estabelece como um dos princípios fundamentais da República a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III). Além disso, fixa como objetivos fundamentais, entre outros, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos (art. 3º, incisos III e IV).
No título que trata da ordem social, o Constituinte ressaltou que esta tem por objetivo o bem-estar e a justiça sociais (art. 193).
A Seção que trata da assistência social disciplina no art. 203 que ela "será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: [...] V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei".
Somente em 07 de dezembro de 1993 é que foi promulgada a Lei n. 8.742, denominada Lei Orgânica da Assistência Social. Em seu art. 1º estampa como objetivo prover os mínimos sociais, para garantir o atendimento às necessidades básicas do cidadão. No art. 20, disciplina o benefício de prestação continuada, comumente chamado de benefício assistencial, como sendo devido ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais (atualmente 67 anos ou mais) e ao portador de deficiência, que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família. Cumpre transcrever seus parágrafos:
§ 1º. Para os efeitos do disposto no caput, entende-se como família o conjunto de pessoas elencadas no artigo 16 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, desde que vivam sob o mesmo teto.
§ 2º. Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho.
§ 3º. Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo. (grifei)
Assim, têm direito ao benefício assistencial: a) a pessoa com 67 (sessenta e sete) anos de idade ou mais; a pessoa portadora de deficiência incapacitada para o trabalho (a incapacidade para a vida independente que o INSS verifica com base nas atividades rotineiras do ser humano, conforme acentuou o Superior Tribunal de Justiça, "pelo simples fato da pessoa não necessitar da ajuda de outros para se alimentar, fazer sua higiene ou se vestir, não pode obstar a percepção do benefício, pois, se esta fosse a conceituação de vida independente, o benefício de prestação continuada só seria devido aos portadores de deficiência tal, que suprimisse a capacidade de locomoção do indivíduo - o que não parece ser o intuito do legislador" – REsp. 360202/AL – Rel. Min. GILSON DIPP – DJ 01/07/2002); b) renda familiar per capita inferior a 1/4 do salário mínimo – (atualmente – julho/2003 – menos de R$60,00).
3. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
Inicialmente, atento ao disposto no inciso IV do art. 7º da Constituição, que orienta o que deveria refletir a fixação do salário mínimo ("atendimento às necessidade vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social"), entendeu-se que a concessão do benefício apenas àqueles cuja renda familiar per capita fosse inferior a 1/4 do salário mínimo violava a Carta Magna.
[...] O parágrafo 3º, do art. 20, da Lei nº 8.742/93, que determina a concessão do benefício apenas que auferem renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo, viola a Constituição Federal. A inconstitucionalidade evidencia-se na medida em que o aludido dispositivo legal restringe o comando constitucional (art. 203, V) que, além de ser norma dotada de eficácia plena, lhe é hierarquicamente superior. [...] (TRF 3ª Região – AC 98.03.49009-5/SP – 2ª T. – Rela. SYLVIA STEINER – DJU 09.12.1998 – p. 247)
A inconstitucionalidade (ou não) do referido limite foi objeto da ADIn n. 1.232-1, cujo resultado foi publicado no DJ de 01/06/2001. O Supremo Tribunal Federal acabou por considerá-lo constitucional. A ementa deixou bem clara a posição do Supremo de que a lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado.
Um exemplo simplório demonstra que outra não poderia ter sido a posição do Supremo (hipótese objetiva): uma família composta de marido, mulher e dois filhos menores de 14 (catorze) anos, sendo a única fonte de renda a aposentadoria por invalidez do varão, no valor mínimo (R$240,00), morando num barraco de favela, com parcos móveis (lembre-se que uma cesta básica aqui em Florianópolis custava no mês passado – junho/2003 – R$154,43 – fonte: DIEESE). Caso não se pudesse analisar a situação fática, pelo simples fato de a renda per capita ser R$0,01 (um centavo) superior ao limite, o benefício seria indeferido!
Não custa lembrar que, "se ao Egrégio Supremo Tribunal Federal compete o exame da constitucionalidade das leis, é ao Egrégio Superior Tribunal de Justiça que cabe, em última instância, a tarefa de dar à lei federal sua adequada interpretação" (trecho do voto proferido pelo Desembargador Federal do TRF da 4.ª Região, ANTONIO ALBINO RAMOS DE OLIVEIRA, no AI n. 2001.04.01.058378-0/PR – j. 23/05/2002).
Nessa tarefa de intérprete da lei federal, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça não tem fugido de sua missão, pacificando que o § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93 estabelece um limite objetivo, dentro do qual é presumida a miserabilidade, não impedindo a análise de outros meios de prova em cada caso concreto.
[...] A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça pacificou já entendimento no sentido de que o critério estabelecido no artigo 20, parágrafo 3º, da Lei nº 8.742/93 (comprovação da renda per capita não superior a 1/4 do salário mínimo) não exclui que a condição de miserabilidade, necessária à concessão do benefício assistencial, resulte de outros meios de prova, de acordo com cada caso em concreto. [...] (REsp. 308711-SP – 6ª T. – Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO – DJ 10/03/2003, p. 323)
Na mesma linha de entendimento, se com o desconto dos valores exigidos para debelar eventual mal incapacitante à manutenção do deficiente ou do idoso, tais como: remédios de uso contínuo, planos de saúde, alimentação especial, etc..., chega-se dentro do aludido limite, tem sido deferido o benefício (TRF 4.ª Região – AC 344368-PR – 6.ª T. – Rel. JOÃO SURREAUX CHAGAS – DJU 22/08/2001, p. 1116).
Portanto, havendo prova da condição de miserabilidade da família, mesmo que a renda per capita seja superior ao limite de 1/4 do salário mínimo (R$60,00, ou mais), têm aquelas pessoas mencionadas na alínea "a" do item 2, direito ao benefício assistencial.
4. NOVO LIMITE OBJETIVO DA RENDA PER CAPITA
Antes mesmo de tomar posse, nosso novo Mandatário Supremo, estabeleceu como prioridade do Governo a erradicação da fome. O Partido que o levou a essa posição procura emitir a mensagem de comprometimento com o "social" – da mesma forma o Poder Executivo nesses primeiros meses de governo.
Nesse sentido, no último dia 13 de junho, promulgou-se a Lei n. 10.689, a qual cria o "Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA". Em seu art. 2º, § 2º, estabeleceu: "Os benefícios do PNAA serão concedidos, na forma desta Lei, para unidade familiar com renda mensal per capita inferior a meio salário mínimo". (original sem destaques).
Inegável que esse programa vem integrar a Assistência Social, ao garantir "acesso à alimentação a pessoa humana, todos os dias, em quantidade suficiente e com a qualidade necessária" (art. 1º). Amolda-se, portanto, aos termos do art. 203 da Constituição Federal e da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei n. 8.742/93).
Se para o PNAA é necessitada a unidade familiar cuja renda per capita é inferior a meio salário mínimo, poderia haver critério divergente dentro da Assistência Social? Em outros termos, permanece o limite de 1/4 do salário mínimo para o benefício assistencial? A conclusão é que havendo novo conceito de necessitado inserido na Lei n. 10.689/2003 (renda per capita inferior a meio salário mínimo), o critério da Lei n. 8.742/93 (renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo) sofreu alteração por força de novo regramento incompatível com o anterior.
Relembre-se que a Lei de Introdução ao Código Civil é explícita no § 1º do art. 2º: "A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior". (grifo meu). Claro que houve a derrogação:
[...] para a derrogação basta a inconciliabilidade parcial, embora também absoluta quanto ao ponto em contraste. Portanto, a abolição das disposições anteriores se dará nos limites da incompatibilidade; [...] (CARLOS MAXIMILIANO. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 293)
A lei posterior revoga igualmente a anterior, quando seja com ela incompatível. Isso se dá quando o Poder Público muda sua política legislativa, ordenando um procedimento que se não afaz às regras anteriores. (SÍLVIO RODRIGUES. Direito Civil. vol. 1. Parte Geral. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 21)
Desta forma, novo critério objetivo deve ser levado em consideração para a concessão do benefício assistencial (benefício de prestação continuada), ao invés da renda familiar inferior a 1/4 do salário mínimo, renda familiar inferior a 1/2 salário mínimo.
Mesmo assim, caso a renda familiar per capita supere esse novo limite objetivo, nada impede que sejam utilizados outros critérios para a aferição da miserabilidade da família, nos moldes que já vêm sendo feito por nossos Tribunais, continuando a cumprir a bela lição descrita por CARLOS MAXIMILIANO:
[...] Assim, o magistrado: não procede como insensível e frio aplicador mecânico de dispositivos; porém como órgão de aperfeiçoamento destes, intermediário entre a letra morta dos Códigos e a vida real, apto a plasmar, com a matéria-prima da lei, uma obra de elegância moral e útil à sociedade. [...] (Op. cit. p. 50)
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O benefício assistencial, chamado pela Lei de benefício de prestação continuada, é instrumento da Assistência Social, insculpido expressamente em nossa Carta Magna em favor dos necessitados, sendo garantido um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovarem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Até pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, era tido por inconstitucional o limite de renda familiar per capita inferior a 1/4 do salário mínimo. Com a declaração de constitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93, fixou-se que esse critério era apenas objetivo. O Superior Tribunal de Justiça pacificou que, além desse critério objetivo, outros devem ser analisados caso a caso, a fim de comprovar a miserabilidade. Com a edição da Lei 10.689, de 13 de junho de 2003, houve o aumento do limite objetivo, pois esta Lei estabelece como necessitada a família cuja renda per capita é inferior a meio salário mínimo. Este novo limite objetivo não afasta outros critérios para aferição da miserabilidade. Com isso, inegável que tudo o que foi demonstrado reflete a preocupação do Judiciário e do Legislativo na consecução de um dos princípios fundamentais da República que é a promoção da dignidade da pessoa humana.
Portanto, havendo prova da condição de miserabilidade da família, mesmo que a renda per capita seja superior ao limite de meio salário mínimo (R$120,00, ou mais), têm aquelas pessoas mencionadas na alínea "a" do item 2, direito ao benefício assistencial.