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Da Inaplicabilidade dos efeitos materiais da revelia contra o Estado no processo do trabalho

Agenda 08/11/2015 às 16:46

Os processos em todos os âmbitos devem ser tratados de forma sistêmica, não se aplicando os efeitos substanciais da revelia contra o Estado, mesmo no processo trabalhista, tendo em vista a indisponibilidade do interesse público.

Introdução

 

 

            Tendo em vista o princípio da igualdade, disposto no artigo 5º da Constituição da República de 1988, de forma geral, o legislador pátrio não pode estabelecer diferenças desarrazoadas em relação à pessoas físicas e jurídicas. No entanto, haja vista a acepção substancial do preceito da isonomia , a determinados grupos são atribuídos certos direitos, vantagens que, analisadas conforme o contexto global do sistema, não podem ser consideradas verdadeiras discriminações. Nesse viés, destaca-se a famigerada expressão segundo a qual os iguais devem ser tratados de forma igual e os desiguais de forma diferenciada, na medida de sua desigualdade.

            Com efeito, na seara processual, a Fazenda Pública possui prerrogativas que visam justamente abarcar o princípio da igualdade no processo brasileiro. Em síntese, considerando que o Estado, quando atua em juízo, direta ou indiretamente, tutela e defende o patrimônio  da coletividade e tendo em vista que a indisponibilidade do interesse público, é razoável e louvável a estipulação de diferentes faculdades ao Ente Público no bojo das demandas judiciais.

            Exemplo de tais prerrogativas, já consagrado pela doutrina e pela jurisprudência, diz respeito à inaplicabilidade dos efeitos materiais da revelia à Fazenda. Em suma, considerando a presunção de legitimidade dos atos administrativos, a supremacia do interesse público sobre o particular e a indisponibilidade do interesse público, reconhece-se que, mesmo que o Estado, em demanda, deixe de apresentar contestação, não haverá confissão quanto à matéria fática deduzida.

            No entanto, o Tribunal Superior do Trabalho possui entendimento segundo o qual a ausência da pessoa jurídica de direito público na audiência designada, na forma do artigo 844 da CLT, constitui revelia e seus efeitos.

            Nesse sentido, o presente trabalho visa a demonstrar a necessidade de harmonização do tratamento do Estado em Juízo, em processos cíveis e trabalhistas, justamente pela inafastável peculiaridade da indisponibilidade do patrimônio coletivo.

 

Da revelia processual

 

O sistema processual brasileiro, como um todo, deve ser regido de forma harmônica, como as devidas adaptações do direito material tutelável. De fato, deve haver sempre coerência no que tange ao estabelecimento e regimento das normas de processo, sobretudo, tendo em vista princípios constitucionais amplamente consagrados no Brasil, como o devido processo legal e o direito fundamental de segurança jurídica.

Como é cediço, as partes, no bojo de determinado feito, possuem uma série de ônus, prerrogativas e deveres a serem cumpridos, sob pena de submissão a diversas consequências, de índole eminentemente processual e, inclusive, de cunho material (cível, administrativo e, até mesmo, criminal).

A título exemplificativo, ressalta-se o constante dever dos litigantes em observar o preceito da boa-fé, no que tange ao seu aspecto processual. Com efeito, o direito pátrio elevou a norma essencial de estabilidade sócio-jurídica, a famigerada boa-fé objetiva. Nesse sentido, o código civil de 2002, em seu art. 422 possui o seguinte teor:

 

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

 

Sumariamente, o referido dispositivo, assim como outros espalhaos na legislação nacional, consagram norma de caráter cogente, devendo ser aplicado tanto no direito civil, como no direito público (administrativo, por exemplo), penal, constitucional, trabalhista e, como não poderia deixar de ser, no direito processual.

Tanto é assim que, o artigo 14, em seu inciso II consagra o dever dos litigantes atuarem com lealdade e boa-fé.

Logo, é visível a necessidade de intepretação sistemática e harmônica acerca das normas processuais, mormente, no que diz respeito à consagração de valores universais, imanentes à ciência processual.

Especificamente, vale ressaltar o tratamento oferecido ao instituto processual da revelia. Em síntese, a referida instituição consagra, basicamente, a ausência de apresentação de defesa perante determinado processo. Nesse diapasão, vale consignar os ensinamentos de Alexandre Freitas Câmara, segundo o qual:

 

Não se pode falar na contestação sem que algumas considerações sejam feitas acerca da ausência dela, no fenômeno designado por revelia (arts. 319 e 322 do CPC). Essa deve ser conceituada, pois, como ausência de contestação, no prazo e formas legais. Em outras palavras, sendo citado o Réu, e deixando este de oferecer contestação dentro do prazo e com a observância das formalidades legais, será considerado revel, ocorrendo, assim, o fenômeno da revelia.[1]

 

Desse modo, é possível perceber que, classicamente, o fenômeno da revelia ocorre com a simples ausência de apresentação de contestação na lide. Salienta-se que o Réu não será considerado sempre que deixar de apresentar resposta à demanda, mas, tão somente quando deixa de apresentar a principal defesa processual: a contestação.[2]

Insta consignar que, o instituto da revelia sofre algumas divergências no próprio direito processual brasileiro. Sinteticamente, existem certas variações do fenômeno, muitas destas, “herdadas” do processo alemão.

Nesse aspecto, é interessante destacar alguns apontamentos do professor Othmar Jauerning, discorrendo acerca dos liames do direito processual da Alemanha, no que tange à revelia. Em suma, percebe-se que no processo alemão, a revelia se dá quando a parte demandada ausenta-se de qualquer das audiências demarcadas para o fim de realização de debates de cunho oral.[3]

No Brasil, o referido método de sistematização da revelia pode ser observado no procedimento sumário (do artigo 275 do Código de Processo Civil de 1973), além do rito dos Juizados Especial (Lei 9.099 de 1995). Igualmente, o processo trabalhista estabeleceu essa sistemática, sendo isso consagrado pelo teor do artigo 844 da Consolidação de Leis do Trabalho, in verbis:

 

Art. 844 - O não comparecimento do reclamante à audiência importa o arquivamento da reclamação, e o não comparecimento do reclamado importa revelia, além de confissão quanto à matéria de fato.

 

Como é possível perceber, a norma consolidada é expressa ao afirmar que o simples não comparecimento do Reclamado, geralmente empregador, já é capaz de ensejar a revelia da parte litigante.

Vale salientar que, não é possível confundir a revelia com os efeitos que geralmente produz. Em síntese, esse fenômeno constitui, como principal consequência, a confissão da matéria fática alegada pelo contendente adverso. A esse respeito, colaciona-se as lições de Daniel Amorim:

 

 

A ausência jurídica de resistência do réu diante da pretensão do autor faz com que o juiz repute verdadeiros os fatos alegados pelo autor, sendo comum entender que nesse caso a lei permite ao juiz presumir a veracidade dos fatos diante da inércia do réu.[4]

 

Dessarte, a principal decorrência da ausência jurídica de contestação por parte do requerido no Processo é revelada pela presunção relativa de veracidade dos fatos suscitados pelo autor. Esse efeito é doutrinariamente conhecido como confissão ficta. A relatividade dessa presunção decorre do fato de que o magistrado, ao julgar o feito, deve conduzir a demanda levando em consideração todo o direito vertente ao caso.

Assim, os fundamentos jurídicos abordados e aplicáveis ao caso não serão alcançados pelo efeito da revelia (confissão ficta), na medida em que a matéria de direito é intangível, devendo ser previamente conhecida pelo órgão julgador, em homenagem ao preceito do juria novit curia (“o juiz conhece o direito”).

Nesse aspecto, é interessante destacar o ensinamento de Marcos Destefeni:

 

Embora reputados verdadeiros os fatos alegados pelo autor, tal efeito não proporciona, necessariamente, a procedência da ação. Afinal, considerando-se que a atividade jurisdicional deve nortear-se pelo princípio da livre apreciação da prova e da persuasão racional (art. 131), deverá o julgador analisar os fatos expostos pelo autor para concluir se desses fatos decorrerem as conseqüências jurídicas afirmadas. Não se deve esquecer que são reputados verdadeiros os fatos afirmados pelo autor. Não as consequências jurídicas.[5]

 

Em sendo assim, evidencia-se que a chamada confissão ficta nem sempre fará com que a demanda seja julgada de forma favorável ao Autor da ação. A depender do caso concreto, seria possível a extinção do feito sem resolução de mérito ou, até mesmo, a improcedência do pedido formulado.

Finalmente, é preciso consiganr que o código de processo civil estabelece hipóteses onde os efeitos da revelia não irão se desenvolver, mesmo que haja a ausência jurídica de defesa (contestação): se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; se o litígio versar sobre direitos indisponíveis; e se a petição inicial não estiver acompanhada do instrumento público que a lei considere indispensável à prova do ato. Essas exceções são previstas no artigo 320 do CPC, demonstrando que as consequências materiais e processuais da revelia não são absolutas.

Salienta-se que a revelia possui como outras decorrências, como: a desnecessidade de intimação do réu que seja revel, além da possibilidade de julgamento antecipado do processo, conforme a dicção do artigo 3330, II do código de processo civil.

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Das disposições atinentes ao processo do trabalho

 

            O Direito Processual do Trabalho, como ramo integrante e autônomo, por possui um conjunto próprio de regras e princípios aplicáveis, recebeu do legislador infraconstitucional uma sistematização própria, sobretudo por possuir a finalidade primordial de tutelar relações sociais advindas das relações de trabalho, em especial, decorrentes de vínculos de emprego.

            Nesse sentido, o Gustavo Filipe Barbosa Garcia assevera que a autonomia existente no processo do trabalho diz respeito a termos científicos. Ademais, segundo o referido autor, existe corrente doutrinária defendendo a dependência e inafastável ligação do direito processual trabalhista e do direito processual civil.[6] Em outras palavras, segundo essa corrente teoria, o direito processual do trabalho estaria contido no direito processual cível. Contudo, destaca-se, tal concepção é minoritária.

            Não obstante o direito seja único, existindo diversas searas tão somente para fins didático-acadêmicos, há de se reconhecer que o processo deva ser adaptado, com vistas a tutelar da maneira mais eficiente o direito material objeto dos conflitos.

            De efeito, considerando as novas exigências da sociedade, refletidas pela maior complexidade e diversidade dos litígios intersubjetivos, o poder estatal, em especial, o poder judiciário brasileiro, passou a necessitar de uma sistemática de atuação baseada em um conjunto de elementos que proporcionem mais celeridade, racionalidade e praticidade à solução de conflitos, de acordo com o aumento no número de demandas e a especificidades das causa.

            Esse viés é intensificado e indiscutivelmente necessário no bojo do processo trabalhista, eis que, majoritariamente, o objeto da demanda, gira em torno de verbas de natureza alimentícia. Assim, o direito processual do trabalho deve se desenvolver de forma célere e eficaz, com vistas a uma maior tutela do direito material posto.

            Nessa esteira entendimento, afirma-se que, assim como o direito material do trabalho, o processo trabalhista estaria norteado pelo princípio da proteção do trabalhador. Entretanto, esse entendimento deve ser visto com reservas, considerando que, inegavelmente, o direito processual (em todas suas vertentes) possui normas de ordem pública, que não podem deixar de ser observadas. Exemplo disso são os princípios constitucionais do processo, como o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e o preceito do juiz natural.

            Em específico vale destacar a norma estabelecida no artigo 844 da Consolidação de Leis Trabalhistas, atribuindo o efeito da revelia ao reclamado, e caso de ausência à audiência designada. Percebe-se nitidamente certa “vantagem” ao postulante (trabalhador), eis que sua ausência comporta tão somente o arquivamento do feito, com a possibilidade de uma posterior demanda.

            Da mesma forma, o referido dispositivo atribui o principal efeito da revelia contra o reclamado: a presunção de veracidade dos fatos alegados na reclamação trabalhista. Consoante analisado alhures, essa regra constitui inequívoca adaptação da revelia clássica consagrada no processo cível, onde o legislador estipula que a audiência é justamente o marco onde o postulante deve apresentar sua defesa. Logo, ausentando-se a parte demandada, ocorre a revelia. Entretanto, vale salientar que esse fenômeno ocorre mesmo que o reclamado se antecipe, protocolando a contestação antes da audiência. Corroborando essa apotnação, traz-se à baila os ensinamentos de Carlos Henrique Bezerra Leite, tecendo interessante diferença entre a revelia e o insittuto da contumácia:

 

No processo do trabalho, se o réu não comparece à audiência, será revel e contumaz, pois, nos termos do art. 844 da CLT, o não comparecimento do reclamado importa revelia, além de confissão quanto a matéria de fato. Mas, se comparecer e, por algum motivo, não aduzir a sua defesa (oralmente ou por escrito), será apenas revel, mas não contumaz. Tanto o autor quanto o réu poderão ser contumazes, mas somente o réu poderá ser revel.[7]

 

            De antemão, é de extrema relevância consignar que, apesar da certa autonomia que existe entre o direito processual cível e o trabalhista, a própria CLT assevera que o código de processo civil tem aplicação subsidiária no rito trabalhista, consoante o artigo 769 da consolidação das leis do trabalho.

            Dessa forma, é possível concluir que as exceções aos efeitos da revelia (consagradas no artigo 320 do CPC) devem ser também aplicadas ao processo do trabalho. Inclusive, o professor Bezerra Leite corrobora posicionamento já exposto alhures:

 

O principal efeito da revelia incide sobre a prova, uma vez que, se o réu não contestar a ação, serão considerados verdadeiros os fatos alegados pelo autor, dispensando-se a produção de outras provas sobre tais fatos. Se a matéria for de direito, no entanto, não há falar em confissão ficta. A confissão de que trata o art. 844 da CLT é a confissão ficta, também chamada de confissão presumida ou tácita.[8]

 

            Igualmente, é possível considerar que a confissão ficta decorrente da revelia não surgirá no caso de litisconsórcio passivo, onde um dos reclamados contesta matéria comum aos demandados (conforme artigo. 320, I do CPC). Da mesma forma, se a lide tratar de direitos indisponíveis, não é o caso de haver a presunção de veracidade dos fatos alegados na petição inicial.

 

Revelia e Fazenda Pública: inaplicabilidade no processo do trabalho

 

            Consoante consignado em linhas anteriores, percebe-se que, no direito processual civil, os efeitos clássicos da revelia, sobretudo a confissão ficta, não se aplicam quando o objeto principal da contenda diga respeito a direito indisponíveis.

            Juridicamente, no direito, a disponibilidade diz respeito a certas prerrogativas que pessoas com título de domínio/propriedade tem sobre determinados bens, sendo consideradas “donas” de objetos determinados, podendo aliená-los, de forma ampla e ilimitada.

            A Fazenda Pública, sendo uma representação do próprio Estado em juízo, em regra, busca e tutela o interesse da coletividade. Nesse aspecto, vale trazer o conceito de fazenda pública elencado pelo ilustríssimo professor Leonardo Carneiro da Cunha:

 

A expressão Fazenda Pública é utilizada para designar as pessoas jurídicas de direito público que figurarem em ações judiciais, mesmo que a demanda não verse sobre matéria estritamente fiscal ou financeira. Quando a legislação processual utiliza-se do termo Fazenda Pública está a referir-se à União, aos Estados, aos Municípios, ao Distrito Federal e a suas respectivas autarquias e fundações.[9]

 

            Conclui-se, desse modo, que o termo Fazenda Pública diz respeito à Administração Público, à figura do Estado, majoritariamente, quando atua em processos jurisdicionais. Sinteticamente, essa acepção engloba todas as pessoas jurídicas de direito público. Ao revés, não abrange as empresas públicas e sociedades de economia mista, justamente por serem entes de direito privado.

            Retornando à colocação elencada anteriormente, salienta-se que a fazenda pública, como finalidade primordial, atua visando à consecução de interesses coletivos, que digam respeito a todos. Ou seja, o Estado visa majoritariamente o interesse público. Este, por sua vez, possui acepção dicotômica, podendo ser primário e secundário.

            O interesse público primário constitui prerrogativa da coletividade, pertinente à toda a sociedade. Essa concepção abrange, assim, os bens e direitos públicos em geral. Por sua vez,  interesse secundário corresponde ao interesse do estado (e da Administração Pública) como pessoa (s) jurídicas (s), ou seja, é o interesse que atina tão somente ao aparelho estatal, aos entes públicos individualmente considerados (em regra, correspondem a intereses de cunho material, patrimonial).[10]

            Entretanto, não é possível afirmar que os gestores/administradores públicos são os verdadeiros titulares do interesse público, sobretudo o primário. Esses direitos são, em verdade, inapropriáveis, sendo pertencentes a toda a sociedade. Logo, correspondem a inequívocos direitos indisponíveis, por mais que possuam um viés patrimonial.

            Com efeito, é de extrema importância colacionar os ensinamentos do renomado professor Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo o qual:

 

A indisponilidade dos interesses públicos significa que, sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público -, não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis.  O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que incumbe apenas curá-los – o que é também um dever – na estrita conformidade do predispuser a intentio legis.[11]

 

 

            A título exemplificativo, quando o Estado encontra-se em juízo defendendo o erário, o ente soberano não está defendendo apenas um patrimônio particular, privado, ímpar, mas sim, indiretamente, um conjunto de bens e direitos pertencentes a toda a coletividade.

            Dessa forma, surge a concepção do princípio da indisponibilidade do interesse público. De efeito, os administradores públicos possuem, com isso, o poder-dever de fiscalizar, proteger e conservar os interesses e direitos de toda a sociedade. Igualmente, os agentes públicos não podem deixar de exercer as competências que as leis lhe outorgam. Relembre-se que o artigo 37 da Constituição Federal elenca entre os princípios da Administração Pública o famigerado preceito da legalidade.

            Dessarte, o Estado somente atua conforme as disposições legais, podendo fazer tão somente o que a lei permite e expressamente estipula. Ao contrário, os particulares podem atuar de forma livre, bastando que as normas não vedem determinadas condutas.

            Por todas essas colocações, percebe-se que a aplicação dos efeitos materiais da revelia não se mostra adequada, no que diz respeito à Fazenda Pública em juízo. Sinteticamente, por estar vertida à tutela de interesses públicos, o Estado, quando litigante em demanda judicial, sempre estará buscando a chancela de direitos indisponíveis. Mais uma vez, ressalta-se o princípio da indisponibilidade dos interesses públicos.

            No âmbito da legislação infraconstitucional, os artigos 320 e 351 do código de processo civil são expressos ao determinar a impossibilidade de ocorrência de confissão ficta no que tange a direitos indisponíveis. Dessa forma, conclui-se que o Estado, por não ser o titular dos direitos objetos da lide, não poderia “confessar” fatos que prejudicassem tais interesses/direitos. Melhor dizendo, os agentes públicos, no uso de suas atribuições, não poderiam confessar (mesmo que fictamente) e reconhecer matéria fática que prejudicasse direito que não lhe pertencem, eis que os direitos vertentes são de domínio de toda a coletividade.

            Nesse sentido, são de grande relevância para o presente estudo as palavras de Leonardo Carneiro:

 

O que importa deixar assente é que, sendo ré a Fazenda Pública, não se opera, quanto aos fatos alegados pelo autor, a presunção de veracidade decorrente da revelia. Sabe-se que a presunção de veracidade gerada pela revelia é relativa, e não absoluta, admitindo prova em contrário. Uma simples presunção relativa não poderia ter o condão de afastar a presunção de legitimidade dos atos administrativos. Daí a necessidade de haver prova a ser produzida pelo autor, mesmo que a Fazenda Pública ostente a condição de revel.[12]

 

            Consoante as colocações do referido autor, é possível inferir mais um fundamento para a inaplicabilidade dos efeitos materiais da revelia contra o Estado em Juízo, qual seja, a presunção de legitimidade dos atos administrativos. Resumidamente, esta se trata de um atributo essencial dos atos praticados pela administração, em decorrência do regime público aplicável. Sumariamente, há veracidade e legitimidade (legalidade) dos atos administrativos até que se consiga produzir prova em contrário.

            Tendo em vista o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, não seria possível que a mera ausência de contestação (ou comparecimento a audiência, como no processo do trabalho) fosse suficiente para “quebrar” a presunção de legitimidade dos atos praticados pelo Estado, mormente se considerada a importância do preceito da indisponibilidade do interesse público.

            Contudo, o entendimento supramencionado não é corroborado pelo Tribunal Superior do Trabalho, eis que essa corte entende que, no bojo do processo trabalhista, a ausência da Fazenda Pública é capaz, por si só, de gerar a revelia e seus efeitos. Tal entendimento é, inclusive, consolidado por meio da Orientação Jurisprudencial nº 152 da Seção de Dissídios Individuais I do TST, in verbis:

 

152. REVELIA. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. APLICÁVEL. (ART. 844 DA CLT) (inserido dispositivo) - DJ 20.04.2005

Pessoa jurídica de direito público sujeita-se à revelia prevista no artigo 844 da CLT.

 

            No entanto, no âmbito do processo civil, corroborando a tendência doutrinária, a tese da presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor em demandas contra o Estado é rechaçada, conforme posicionamento do próprio Superior Tribunal de Justiça:

 

TRIBUTÁRIO, PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO – FAZENDA PÚBLICA – DIREITOS INDISPONÍVEIS – INAPLICABILIDADE DOS EFEITOS DA REVELIA – ART. 320, INCISO II, DO CPC – IPTU – LANÇAMENTO – ATO ADMINISTRATIVO – PRESUNÇÃO DE VERACIDADE – MODIFICAÇÃO POR LAUDO TÉCNICO UNILATERAL – IMPOSSIBILIDADE – PROVA INEQUÍVOCA.

1. Não se aplicam os efeitos da revelia contra a Fazenda Pública uma vez que indisponíveis os interesses em jogo.

2. O ato administrativo goza da presunção de legalidade que, para ser afastada, requer a produção de prova inequívoca cujo valor probatório não pode ter sido produzido unilateralmente - pelo interessado. Agravo regimental improvido.[13]

 

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. REMESSA EX OFFICIO. EFEITO TRANSLATIVO. INTEMPESTIVIDADE DA CONTESTAÇÃO. PRECLUSÃO. INOCORRÊNCIA. DIREITOS INDISPONÍVEIS DO ENTE ESTATAL. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA O PROVIMENTO.

1. Consoante jurisprudência do STJ, ainda que a contestação apresentada pela Fazenda Pública tenha sido reputada intempestiva, diante de direitos indisponíveis do ente estatal, os fatos da causa não comportam confissão, tampouco estão sujeitos aos efeitos da revelia. A remessa oficial comporta o efeito translativo do recurso. Precedentes.

2. Agravo regimental a que se nega o provimento.[14]

 

            Apesar do entendimento esposado pelo Tribunal Superior do Trabalho, é preciso consignar que o regime de direito público acaba sendo um inafastável óbice para a aplicação dos efeitos da revelia, na forma da OJ 152 da SDI-I do TST e do artigo 844 da CLT. Muito embora o processo do trabalho tenha um regramento específico, sobretudo tendo em vista o fato de que tutela pretensões que dizem respeito à própria manutenção dos trabalhadores, essa peculiaridade não pode sufragar as prerrogativas do Estado, ente responsável pela guarda de direitos coletivos, indisponíveis.

            Vale salientar que as regras atinentes à revelia integram o direito processual, constituintes de um sistema. E, como todo e qualquer sistema de normas, deve ser pautado por uma unidade e coerência.[15]

            Igualmente, insta consignar que não é possível tratar o Estado como a grande maioria de empregadores litigantes na Justiça do Trabalho, sob pena de violação ao princípio da igualdade, em sua acepção material. De fato, todos devem ser tratados de forma igual, na  medida de sua igualdade e, de forma desigual, conforme a divergência de qualificações existentes.

            Ademais, destaca-se que a Fazenda Pública, quando em atuação perante a justiça laboral, dificilmente estaria postulando como principal responsável por verbas trabalhistas. Como é cediço, o artigo 39 estabelece um regime jurídico único aos servidores da administração pública. Com algumas ressalvas, surgidas pelas alterações implantadas pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998 (posteriormente suspensa por cautelar em ADI perante o Supremo Tribunal Federal), o regime de servidores do Estado é estaturário. Da mesma forma, a jurisprudência consagrou o entendimento de que os litígios decorrentes de relações estatutárias entre servidores e o Estado deve ser sanada perante a Justiça Comum e não na Justiça do Trabalho (não obstante as alterações do artigo 114 da Constituição, após a Emenda Constitucional 45 de 2004).

            Sinteticamente, a atuação estatal no processo do trabalho é possível nos casos envolvendo terceirização, consoante a possibilidade elencada pela súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho. Contudo, em tais hipóteses, o Ente público só responde subsidiariamente e, desde que deixe de cumprir com seu dever de fiscalização atinente aos serviços terceirizados.

            Dessa forma, não é razoável igualar a situação do Estado no bojo do processo trabalhista à condição dos demais empregadores (geralmente reclamados), sob pena de subverterem-se os ditames constitucionalmente estabelecidos, como o preceito da isonomia, da indisponibilidade do interesse público, da legalidade e do Estado de Direito.

            Nesse sentido, a própria doutrina jus trabalhista acaba corroborando a tese aqui exposta. O ilustre Carlos Henrique Bezerra Leite coaduna as seguintes colocações:

 

Importante notar que as pessoas jurídicas de direito público também se sujeitam à revelia, como se depreende da OJ n. 152 da SBDI-1 do TST. [...] Quanto à confissão ficta, pensamos que ela não se aplica às pessoas jurídicas de direito público, por serem os bens públicos indisponíveis, impenhoráveis e inalienáveis, razão pela qual deles não pode dispor o administrador público.[16]

 

Em verdade, percebe-se que os efeitos processuais até poderiam ser aplicáveis ao Estado, quando deixasse de oferecer defesa ou de comparecer à audiência trabalhista. Entretanto, o efeito material principal (confissão ficta) é indesejável e desaconselhável, tendo em vista a indisponibilidade do interesse público, como fundamento maior.

Vale reiterar que existe diferença salutar entre o próprio instituto da revelia e seus efeitos. Logo, é possível haver revelia, sem que haja a manifestação de suas consequências jurídicas básicas. Na vertente análise, percebe-se que o efeito da confissão ficta constitui hipótese inaplicável contra o Estado, em caso de ausência à audiência processual do trabalho.

Além disso, os ditames do atual código de processo civil e da própria Constituição Federal de 1988 são suficientes para rechaçar a presunção de veracidade dos fatos alegados em ações contra a Fazenda, seja no processo cível ou no trabalhista. Dessarte, seria fundamental uma mudança de posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho, com vistas a suplantar a aplicação da norma do artigo 844 da Consolidação das leis do trabalho contra o Ente público.

 

Considerações Finais

 

A supremacia do interesse público em relação aos privados impõe a atribuição de uma série de prorrogativas ao Estado, em âmbito judicial e extrajudicial. Longe de serem estipulados verdadeiros privilégios, benefícios odiosos, as prerrogativas estatais servem como vetores de proteção de todo o patrimônio da coletividade, sobretudo, tendo em vista os pilares norteadores de toda a atividade do Ente soberano: a legalidade, a isonomia, a moralidade, eficiência e a indisponibilidade do interesse público.

O Código de Processo Civil de 1973 excepcionado os efeitos materiais da revelia (confissão ficta), dentre outras hipóteses expressas, no que tange a litígios que tenham como objeto direitos indisponíveis. Nesse rol, poderia ser enquadrado os direitos da personalidade (em certo grau), o direito de filiação, direitos de estado das pessoas, direitos da criança e do adolescente. Ademais, a doutrina e a majoritária jurisprudência reconhece que os interesses da Fazenda Pública também encontram-se nessa listagem, justamente por tutelarem bens e interesses de toda a coletividade e que não podem ser afastados por uma simples presunção processual.

Nesse sentido, percebe-se que as razões que norteiam o texto da OJ nº 152 da SDI-1 do TST, dirigem-se às peculiaridades do Processo do Trabalho, norteado pela maior celeridade, oralidade e praticidade. Falava-se até mesmo em um informalismo moderado no bojo processual trabalhista. Entretanto, tais vetores não fundamentam a subtração de essencial prerrogativa do Estado em Juízo, qual seja, a não aplicação dos efeitos da revelia no caso de ausência de apresentação de contestação ou ausência à audiência.

Com efeito,, admitir como verdadeiros fatos alegados contra a Fazenda Pública, simplesmente pela não apresentação da defesa ou pela ausência do representante estatal na audiência significa burlar toda a estruturação constitucional pátria.

Em verdade, a presunção de legitimidade dos atos administrativos, a supremacia do interesse público sobre o particular e a indisponibilidade do interesse público representam valores constitucionalmente inafastáveis, na medida em que o Brasil se pauta no modelo Repúblicano, constituindo um Estado Democrático de Direito. Assim, o patrimônio público não pode ser rechaçado e prejudicado por meio de cognições sumárias e através de presunções.

Conclui-se, assim, que nem mesmo no Processo do Trabalho seria possível aplicar os efeitos substanciais da revelia, confissão ficta, contra o Estado. O artigo 844 da Consolidação das Leis Trabalhistas deve ser interpretado em total sintonia com o sistema processual geral, motivo pelo qual o Tribunal Superior do Trabalho poderia rever o entendimento consolidado na Orientação jurisprudencial nº 152 da sua SDI-1.

 

Referências

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 out. 1988. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 16 out. 2015.

 

BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452 de 1943. Aprova a Consolidação de Leis Trabalhistas. Rio de Janeiro, 1º de maio de 1943. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452compilado.htm>. Acesso em 15 out. 2015.

 

BRASIL. Lei nº 10.406. Institui o Código Civil. Brasília, 10 de janeiro de 2002. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 20 out. 2015.

 

BRASIL. Lei nº 5.869 de 1973. Código de Processo Civil Brasília, 11 de janeiro de 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/Lei/L11107.htm>. Acesso em 15 out. 2015.

 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1137177/SP, Rel. Ministro: HUMBERTO MARTINS, Segunda Turma, julgado em 18/02/2010. DJe 02/03/2010.

 

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[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, v. 1, 2013, p. 369.

[2] GIANESINI, Rita. Da revelia no processo civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p.66.

[3] JAUERNING, Othmar. Trad. Port. De F. Silveira Ramos. Coimbra: Almeidina, 2002, p. 348.

[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015, p. 492.

[5] DESTEFENNI, Marcos. Curso de Processo Civil. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 279.

[6] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito processual do trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 21-22.

[7] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2012. p. 525.

[8] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2012. p. 526.

[9] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 11 ed. São Paulo: Dialética, 2013, p.15.

[10] TEIXEIRA, Bruno César Gonçalves. Fazenda Pública e a revelia do Artigo 844 da Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em < http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,fazenda-publica-e-a-revelia-do-artigo-844-da-consolidacao-das-leis-do-trabalho,47674.html#_ftnref1>. Acesso em 16 out. 2015.

[11] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 64.

[12] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 11 ed. São Paulo: Dialética, 2013. p.111.

[13] Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1137177/SP, Rel. Ministro: HUMBERTO MARTINS, Segunda Turma, julgado em 18/02/2010. DJe 02/03/2010.

[14] Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 817.402/AL, Rel(a). Ministra: JANE SILVA (Desembargadora convocada do TJ/MG), Sexta Turma, julgado em 18/11/2008. DJe 09/12/2008.

[15] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 11 ed. São Paulo: Dialética, 2013. p.113.

[16] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2012. p. 527.

Sobre o autor
Lucas Alves de Morais Ferreira

Procurador da Fazenda Nacional

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