O presente texto nasceu ante a mensagem de veto do Governador do Estado da Bahia, publicada no Diário Oficial do Estado de 22/07/03, p. 8, frente ao Projeto de Lei n. 13.103/2003, da lavra do Deputado Estadual Walmir Mota (PPS-BA).
A Procuradoria Geral do Estado, consoante declinado pelo Chefe do Poder Executivo baiano, condenou o PL citado, sob a alegação de que estaria "eivado do vício de inconstitucionalidade" (sic). A título de justificativa, o Governador afirmou, textualmente, que "o projeto pretende estabelecer, em seu art. 1.º, a obrigação de o Governo estadual assegurar, em contratações de empresas para a prestação de serviços de seu interesse, a utilização de mão-de-obra de indivíduos que cumpriram pena no Sistema Penitenciário baiano ou encontram-se em livramento condicional".
Da maneira como foi grafado na mensagem da governadoria, depreende-se que todas as vagas das empresas contratadas para prestarem serviços ao Estado seriam preenchidas pelos ex-presidiários ou pessoas em livramento condicional, fato este que não corresponde ao projeto sob comento, vez que, na realidade, o art. 1.º do PL 13.103/2003 trata de garantir aos egressos dos cárceres baianos ou indivíduos em livramento condicional, pelo menos 1% (um por cento) do total das vagas referenciadas. Originalmente, o projeto pretendia garantir, pelo menos, 10% (dez por cento) das vagas.
O art. 11, inc. IV, da Constituição do Estado da Bahia assinala, in verbis:
"Art. 11. Compete ao Estado, além de todos os poderes que não lhe sejam vedados pela Constituição Federal:
(...)
IV – combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração dos setores desfavorecidos;" (houve grifos).
No art. 70, caput, da Carta Política baiana, foi consagrado como competência do Parlamento estadual legislar sobre todas as matérias de competência do Estado, elencando, na seqüência, um rol exemplificativo.
Considerando que cabe ao Estado promover a integração dos setores desfavorecidos, a fim de combater os fatores de marginalização, nada mais justo que tal entidade federada seja protagonista de ações afirmativas, buscando reinserir na sociedade (ou, no mais das vezes, inserir mesmo) aqueles que estão alijados de oportunidades no seio social.
A alegação de que se estaria invadindo a competência da União, no tocante a legislar sobre Direito do Trabalho, não encontra guarida. A legislação trabalhista, conforme ensinamentos de Orlando Gomes, trata-se de "amplo repositório de leis, regulamentos e normas individuais e coletivas esparsas e fragmentárias, mas convergentes num sentido unívoco que se objetiva na regulamentação do trabalho humano dependente" [1]. Mais adiante, o citado jurista assevera que o corolário dessa seara jurídica é "a exclusiva proteção do trabalhador, do empregado" [2].
Arnaldo Süssekind, um dos integrantes da comissão encarregada pela sistematização da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), observa que "as leis do trabalho visam aos trabalhadores como tais, e não como contratantes" [3], sendo que o Direito Laboral aplica-se aos sujeitos do contrato de trabalho, sejam quais forem as condições em que se realize a prestação.
O direito existe para se realizar; não basta a pretensão normativa. Para que o direito cumpra sua missão, é necessário, outrossim, a efetividade social, que se traduz na sua vigência, na sua aplicação. E a lei que não é, de fato, aplicada por não se ajustar à realidade social sobre a qual pretendia incidir, se converte numa mera folha de papel. Importa numa passagem do abstrato ao concreto, do geral ao particular.
Porquanto, a Constituição Estadual (CE), ao estabelecer que compete ao Estado da Bahia promover a integração dos desfavorecidos (art. 11, inc. IV), não o fez sem motivo, mas por reconhecer a desditosa e aflitiva situação enfrentada por diversos segmentos sociais colocados à margem pela sociedade baiana.
Não há invasão de competência legislativa, conforme alegado pela PGE e pelo Governador desta unidade federada. O PL em tela não versa sobre normas de proteção ao trabalhador, mas sobre política de ação afirmativa, buscando amparar justamente alguns poucos daqueles tantos desprovidos de oportunidades (tal qual os jovens, alvos do Programa Primeiro Emprego, sendo que neste – Programa Primeiro Emprego – a empresa não contrata com o Estado, diferentemente do quanto proposto pelo projeto citado, em que a contratação se daria entre o setor privado e o ente estatal).
Assim sendo, não há afronta ao art. 164 da CE, tampouco ao art. 22, inc. I, da Constituição Federal. Muito embora tenha sido acentuado pelo Governador que "o planejamento governamental tem caráter determinante para o setor público e indicativo para o setor privado, bem como esse planejamento deve servir de incentivo a quem quiser submeter-se aos planos que o compõem", resta evidente que a opção feita pelo dirigente do Poder Executivo baiano não foi pelos marginalizados.
Para aceitação da proposta ora vetada pelo Executivo, analisando-se sob o prisma das empresas que eventualmente firmarão contrato com o Estado, seria melhor deixar a cargo delas a opção de contratar os ex-presidiários ou não. Porém, ocorrendo tal hipótese, o comando legal fatalmente não passará de simples letras ilustrativas, sem efeito prático. Sem olvidar, ainda, que a situação apresentada no parágrafo anterior trata de legislar diretamente para o setor privado, ao passo que o presente projeto de lei objetiva impor ao Poder Público estadual determinada condição (de garantidor de oportunidades), quando da celebração de contrato de prestação de serviços.
À guisa de remate, cumpre salientar que as empresas não estão obrigadas a contratar com o Estado da Bahia; celebrarão contratos se lhes for conveniente, se lhes for rentável. Para o Estado da Bahia (e o Poder Público em geral), todo ato deve ser, primeiramente, em prol dos cidadãos. E as empresas, cientes que nesta entidade federativa a opção teria sido pelo investimento nas pessoas, apostando na cidadania, decidiriam, por livre e espontânea vontade, se desejariam ser companheiras do desenvolvimento ou cúmplices da injustiça social.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS:
01. In Curso de Direito do Trabalho, ed. Forense, p. 24.
02. Ibidem, p. 33.
03. In Instituições de Direito do Trabalho, vol. 1, LTr, p. 180.