Sumário: 1. Introdução. 2. Tributo: norma de rejeição social versus dever fundamental? 3. Base empírica do dever fundamental de pagar o justo tributo. 4. Conclusões.
1. Introdução.
Almeja este breve estudo tecer reflexões sobre o dever fundamental de pagar o justo tributo, tendo como perspectiva, uma visão tridimensional do direito tributário positivo.
2. Tributo: norma de rejeição social versus dever fundamental?
É sobejamente conhecida no mundo jurídico-tributário, esta assertiva de Ives Gandra da Silva Martins: "Tributo é norma de rejeição social. Assim deve ser estudado pela Economia, Finanças Públicas e Direito, ofertando os especialistas dessas áreas o modelo ideal para o político, a fim de que a norma indesejável tenha sua carga de rejeição reduzida à menor expressão possível". (Curso de Direito Tributário. (org). v. 1. 2ª ed. Belém: CEJUP, 1993. p. 18).
Do ponto de vista de uma sociologia ou de uma psicologia do direito tributário, dita afirmação até se justifica, uma vez que tal rejeição trata-se até de uma instintiva reação do contribuinte perante às exigências tributárias. [1] Doutra banda, sob uma visão onde o olhar preponderante seja o jurídico, carece de fundamento atribuir à norma tributária a alcunha de norma de rejeição social.
O direito tributário positivo é ontologicamente tridimensional já o afirmamos [2], i.e, uma implicação normativa (dogmática tributária) de fatos econômicos (sociologia tributária) consoante valores (filosofia tributária). Ditos elementos ou fatores não existem separados uns dos outros, mas coexistem numa unidade que é a realidade histórico cultural. [3] Não se trata de ver a interdisciplinaridade como uma "orgia" das ciências sociais como bem já criticou Evaldo Cabral de Melo [4], porém, ver na interdisciplinaridade o fenômeno da complexidade na linha de Edgar Morin. [5]
Se é certo que o "corte" inicial que demarca o objeto científico se dá no continuum heterogêneo da realidade circundante, para propiciar o descontinuum homogêneno de cada ciência em particular, nas lições de Paulo de Barros Carvalho assoalhado em Rickert [6], tal "corte" metodológico, ao nosso sentir, é um artifício que distingue para depois unir, i.e, não se trata de abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento das totalidades, mas, sim, de conjugar. Conjugar é diferente de sintetizar: na síntese se reduz; na conjugação, distingue-se para unir. Portanto, distingue-se a sociologia tributária, a filosofia tributária e a dogmática tributária, para então conjugá-las no que chamamos direito tributário positivo, ou seja, uma integração normativo-positiva de fatos segundo valores.
Afirmar que o tributo é uma norma de rejeição social é observar apenas uma parte do fenômeno tributário, o que revela uma visão fragmentada do estudo tributário, é vê-lo tão-somente sob a ótica da sociologia tributária. Como bem diz Ricardo Lobo Torres: "Tributo é o dever fundamental, consistente em prestação pecuniária, que, limitado pelas liberdades fundamentais, sob a diretiva dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, do custo/benefício ou da solidariedade do grupo e com a finalidade principal ou acessória de obtenção de receita para as necessidades públicas ou para atividades protegidas pelo Estado, é exigido de quem tenha realizado o fato descrito em lei elaborada de acordo com a competência específica outorgada pela Constituição". (Curso de Direito Financeiro e Tributário. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 320-321.)
3. Base empírica do dever fundamental de pagar o justo tributo.
Adriano Soares da Costa é categórico quando afirma: "Temos chamado a atenção, em nossos textos jurídicos, para a importância de o raciocínio dogmático ser fundado no Direito Positivo em vigor, como condição inarredável de validade do discurso científico" [7]. Com efeito, a base empírica, a plataforma material, o texto normativo como suporte físico das mensagens jurídicas é o dado intersubjetivo por excelência consoante Paulo de Barros Carvalho [8], logo, qualquer construção científica há que revelar como premissa insubstituível, a base normativa de onde provém.
Pois bem. Qual a natureza jurídica do dever fundamental de pagar o justo tributo? O que é um tributo justo? À primeira pergunta, respondemos que a natureza jurídica é de um princípio jurídico. Os princípios constitucionais tributários (objetos jurídicos dinâmicos) são justamente aqueles valores normativos [9] que influenciam a interpretação dos signos inseridos no ordenamento jurídico constitucional, e que dizem respeito à fenomenologia da tributação. O que se afirma é que o princípio jurídico, enquanto objeto jurídico dinâmico, não estará integralmente representado no signo jurídico, mas, sim, enquanto valor jurídico normativo [10] que é influenciará a própria existência e inserção de todos os signos jurídicos do sistema jurídico positivo. [11] À segunda indagação, respondemos que o justo tributo é o tributo que atende aos princípios da capacidade contributiva, liberdade fiscal, cidadania fiscal, transparência fiscal, justiça tributária etc. [12]
O princípio do dever fundamental de pagar o justo tributo possui base empírica no art. 3º, I da Constituição Federal, e mormente nos artigos constitucionais que distribuem competência tributária aos entes da federação, i.e, na medida em que a União tem competência tributária para instituir impostos sobre a importação de produtos estrangeiros (art. 153, I), o contribuinte tem o dever fundamental de pagar o justo imposto sobre a importação, e assim se dá com os outros impostos e demais tributos do sistema tributário nacional: a cada competência tributária corresponde um dever fundamental do cidadão-contribuinte; eis aí uma das vertentes da cidadania fiscal.
Roborando nosso raciocínio, é a lição precisa de Heleno Tôrres [13], "Como é sabido, no Brasil, o dever de pagar tributos deriva da repartição da repartição constitucional de competência tributária, porquanto cabe o dever legislativo de cobrá-los, com o objetivo de cumprir suas funções constitucionais, ao cidadão vige o dever de contribuir ao sustento de tais gastos, em favor da coletividade."
Hodiernamente, não se pensa mais os direitos fundamentais dos cidadãos dissociados dos deveres fundamentais. É uma relação de alteridade indissociável, uma superação do individualismo em favor do coletivo. Uma visão do tributo como norma de rejeição social, sobre ser equivocada do ponto de vista jurídico, é ultrapassada sob uma perspectiva de um sociedade dinâmica que se quer mais justa e solidária, ademais, "O direito é um organismo vivo, peculiar porém, porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneio à realidade. O direito é um dinamismo." Leciona Eros Roberto Grau. [14]
4. Conclusões.
É inegável a escandalosa desproporção entre os indicadores econômicos que nos apontam como sociedade industrial moderna, marcada por enorme dinamismo econômico, e por outro lado, um alto índice de tributação e pífios indicadores sociais através dos quais aparecemos no contexto das nações como sociedade primitiva, com condições de marginalidade urbana, de modo geral, com padrões de pobreza e ignorância comparáveis aos das sociedades mais atrasadas da África e da Ásia. [15]
Entrementes, tal constatação (alto índice de tributação versus pobreza acentuda) não pode ser fonte de um raciocínio jurídico simplista que leve a vislumbrar o tributo como norma de rejeição social. A Constituição Federal não agasalha esta idéia extremamente individualista. Tributo é princípio jurídico, é norma cogente, é dever fundamental cuja base empírica é a Constituição Federal. Aliás, o tratamento constitucional e dogmático dos deveres fundamentais tem sido descurado nas democracias contemporâneas; é visível a ausência de estudos relativos aos deveres fundamentais do cidadão-contribuinte se confrontado com o tratamento dispensado aos direitos fundamentais dos cidadãos. [16]
Dentre os deveres fundamentais do cidadão-contribuinte, o principal deles é pagar o justo tributo. O entendimento adequado desta afirmação rejeita simultaneamente, os extremismos de um liberalismo que só reconhece direitos e esquece a responsabilidade comunitária dos indivíduos [17] e de um comunitarismo que dissolve a liberdade individual numa rede de deveres tributários, para então visualizarmos a necessidade de uma mediania fiscal [18], onde os direitos e deveres fundamentais sejam sopesados em nome de uma verdadeira cidadania fiscal.
Notas
01. Cf. Heleno Tôrres, Direito tributário e direito privado. São Paulo: RT, 2003. p. 174.
02. Cf. nosso Premissas para o estudo do Direito Tributário Atual, disponível em www.tributário.net.
03. Cf. Miguel Reale. Lições preliminares de direito. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 65.
04. Segredos de um Historiador. Rio de Janeiro: O GLOBO, Caderno Prosa & Verso. 20-09-03, p. 3.
05. Os setes saberes necessários à educação do futuro. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 38
06. Apud. Heleno Tôrres, op. cit. p. 7.
07. Instituições de direito eleitoral. 4ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 184, nota de rodapé nº 20.
08. A prova no procedimento administrativo tributário. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo. v. 34. julho-1998. p. 108.
09. Para uma visão ampla dos princípios tributários, ver nosso artigo, Valores jurídico-tributários implícitos na linguagem do texto constitucional. www.tributário.net.
10. Princípio é norma jurídica. Cf. por todos, Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 45.
11. Cf. nosso Fundamentos do Dever Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 74.
12. Para maiores detalhes cf. nosso Valores jurídico-tributários implícitos na linguagem do Texto Constitucional. www. tributário.net.
13. Cf. op. cit. p. 16.
14. Op. cit. p. 55.
15. Cf. Manfredo A. de Oliveira. Ética e racionalidade moderna. São Paulo: Loyola. 1993, p. 42.
16. Cf. José Casalta Nabais. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998. p. 673.
17. Cf. José Casalta Nabais. op. cit. p. 673.
18. Cf. nosso Valores jurídico-tributários implícitos na linguagem do Texto Constitucional. Disponível em www.tributário.net.