"Façamos a Revolução, antes que o povo a faça".
(Antônio Carlos [1], político mineiro).
1.INTRÓITO
A Constituição da República Federativa Brasileira, promulgada a cinco de Outubro de 1988, foi uma das maiores contribuições no campo dos diplomas legais, em âmbito nacional. Não obstante tal importância na história legislativa brasileira, no que se refere ao real papel assumido pela Carta de 1988 na órbita jurídica, ainda existem alguns pontos a serem discutidos, mormente algumas características tradicionalmente atribuídas como a ela inerentes.
Conquanto represente um avanço sem precedentes, a Lei Maior brasileira deixou a desejar no tocante à competência constituinte originária que se tentou atribuir a ela. A maioria das Constituições representa, ainda que em domínio formal, uma ruptura de uma ordem jurídica anterior, em favor de uma nova ordem. No entanto, a sociedade brasileira do final da década de 80 não conseguiu exercer com êxito esta tarefa, tanto no âmbito legal como no social.
2.VINCULAÇÃO NORMATIVA
A Emenda Constitucional de número 26 à Constituição Brasileira de 1967, promulgada em 27 de Novembro de 1985, assevera, em seus primeiros artigos:
Art. 1º. Os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional.
Art. 2º. O Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembléia Constituinte e dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente.
Art. 3º. A Constituição será promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assembléia Nacional Constituinte. (grifos acrescidos).
Analisemos alguns desses dispositivos, frente à temática proposta. Estamos diante de uma produção legislativa de um órgão de competência constitucional derivada, no que concerne à Carta Magna de 1967. Representa, portanto, uma ordem jurídica de exceção, fundada no primeiro ato institucional, marco inaugurador do período ditatorial brasileiro no âmbito legal.
Contudo, apesar de tais representações, o texto legal supracitado regula a formação e funcionamento primeiros de um órgão de competência constitucional originária, qual seja, a Assembléia Constituinte de 1987-88, promulgadora do texto promotor da ruptura entre as duas ordens jurídicas, tão diferentes como água e vinho, principalmente no que concerne aos direitos fundamentais e às garantias que lhe asseguram ¾ em tese ¾ a realização. Desta forma, ao prever tais procedimentos a serem seguidos pelo órgão de competência constitucional originária, a experiência constituinte brasileira põe abaixo um dos maiores corolários atribuídos à competência constitucional primeira: a sua não vinculação a qualquer competência constituída.
Ainda, nas considerações doutrinárias acerca do tema, as duas competências constitucionais são tidas, na atualidade, como competências, ou poderes [2], inconfundíveis, conforme lição de Alexandre de Moraes: "(...). É, pois, esse Poder Constituinte, distinto, anterior e fonte da autoridade dos poderes constituídos, com eles não se confundindo".(MORAES, 2002, pg. 55).
É de se convir, portanto, que a doutrina constitucionalista contemporânea é um sucedâneo da realidade vivida pela experiência constitucional de 1988. Outrossim, são de grande monta as explanações do corifeu da Escola constitucionalista portuguesa, José Canotilho3, para corroborar ainda mais com a tese que prega a existência do conflito aqui suscitado:
O poder constituinte, na teoria de Sieyès, seria um poder inicial, autônomo e omnipotente. É inicial porque não existe, antes dele, nem de facto nem de direito, qualquer outro poder. É nele que se situa, por excelência, a vontade do soberano (instância jurídico-política dotada de autoridade suprema). É um poder autónomo: a ele e só a ele compete decidir se, como e quando, deve "dar-se" uma constituição à Nação. É um poder omnipotente, incondicionado: o poder constituinte não está subordinado a qualquer regra de forma ou de fundo. (CANOTILHO, J. J.; apud MORAES, 2002, pg. 56).
Torna-se, desta forma, óbvio o conflito extremado entre as considerações doutrinárias e o processo de formação da Carta Magna de 88. Muito embora constatada tal falha no decurso do pensamento doutrinária, tal teoria ¾ a da separação das competências constituídas e constituintes, derivadas e originárias, como corolário constitucional ¾ tem fundamento nas mudanças vividas, nos dois últimos séculos, pelo Direito Constitucional. Do Século XIX ao Século XX, assistimos a mudanças que acabariam por corroborar tal tese, já que se passou de um "Constitucionalismo fraco", nos dizeres de Pedro de Vega García [3], a uma teoria das Constituições assentada no princípio da supremacia constitucional sobre todos os poderes constituídos, como forma de expressão da doutrina liberal-democrática que ressurgiu das cinzas da Revolução Francesa e foi vitoriosa nas Revoluções burguesas da Europa do Século XIX. Atacava, tal doutrina, exaustivamente, a transformação da vontade do Estado na vontade do grupo dominante, qual seja, a nobreza, e pregava a supremacia constitucional como uma das formas de expressão do princípio da legalidade, assegurador da soberania da "vontade popular verdadeira", em detrimento do "governo dos nobres". Transmite, com transparência, o momento histórico do Século das revoluções burguesas para o Constitucionalismo, o catedrático espanhol, nas palavras de Guizot:
O governo constitucional é a soberania social organizada... Estejam tranqüilos, senhores, nós, os três poderes constitucionais, somos os únicos órgãos legítimos da soberania nacional. Além de nós não há mais do que usurpação ou revolução. (GUIZOT, apud, GARCÍA, 1999, pp. 17-18)
Não obstante, é impossível sustentar, apesar do arcabouço adquirido por tal teoria, que a Constituição Brasileira tenha sido promotora da ruptura da ordem jurídica como um todo, a considerar a ordem social de exceção pós-1964. Ainda, considerando o corolário de não-vinculação da competência constituinte originária a qualquer direito a ela anterior, é imprescindível ressaltar que tal experiência legal brasileira não condiz com a doutrina constitucional contemporânea.
3.VINCULAÇÃO SOCIAL
A história do constitucionalismo mundial ressalta a importância assumida pela distinção entre competência constituinte e constituída, como bem demonstra o arbítrio pretendido pelos magistrados à época de Guizot no trecho supracitado. Tal arbítrio encontra obstáculo instransponível na supremacia da Constituição sobre todos os poderes constituídos
No tocante à possibilidade de ser reformada (votação bicameral, com maioria qualificada de 2/3 dos membros de cada casa) ¾ apesar de tornar-se excepcionalmente flexível quando da aplicação do artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias [4]¾ , a Constituição da República Federativa Brasileira é classificada como rígida, já que prevê procedimento legislativo muito mais rigoroso para sua reforma do que o de uma lei ordinária qualquer, ou até mesmo de lei complementar. Em qualquer caso, seja na reforma constitucional através da promulgação de emendas, ou da revisão constitucional transitória por si mesma, há uma usurpação da competência constituinte, mesmo que derivada, pelo Congresso Nacional. Ora, ainda do ponto de vista sociológico pode-se enxergar claramente a unificação de competências, quais sejam, a legislativa ¾ que é, por natureza, constituída ¾ e a constituinte num único órgão, o Congresso Nacional. Remonta, assim, a democracia brasileira, aos tempos em que a supremacia do povo calcava os pés de magistrados como Guizot.
4.A CONTRIBUIÇÃO DO DIREITO COMPARADO
A história Constitucional Argentina em muito difere da nossa, nesse sentido. Apesar de repleta de revoluções e conseguintes reformas constitucionais, a Argentina sempre mostrou nítida a sua preocupação em conferir a competência constituinte originária a uma verdadeira Assembléia Constituinte. Isso é bem refletido pelo fato de que a mesma Constituição Argentina vigente hoje nunca foi reformada, senão por um órgão especialmente instituído para tal, com eleições pontuais. Estas deixavam transparecer seu caráter fundamental, tanto que algumas foram bastante disputadas, e até levavam a alguns conflitos, como o que aconteceu no período entre 1853 e 1859, durante o qual a província de Buenos Aires manteve-se fora da Confederação Argentina ¾ como então era denominado o país. Assim, todas as reformas, desde 1860 até 1994, inclusive as que não lograram êxito (como as das revoluções de 1943 ¾ esta, de caráter social, vigeu por tempo relativamente diminuto ¾ e 1955), tiveram um traço marcante: a convocação de uma Assembléia Constituinte própria, independente de qualquer dos poderes estatais, com representantes de cada província argentina.
Do exemplo argentino, e adentrando um pouco mais no estudo comparado deste momento máximo do constitucionalismo, que é a formação de uma constituinte, pode-se analisar de forma mais ampla o momento histórico que concebeu o "Congresso Constituinte". Nunca, desde 1823 e a Constituinte fictícia ¾ assim denominada pelo caráter de outorgada assumido pela Constituição imperial ¾ , uma instituição exerceu o papel duplo de órgão encarregado da produção legiferante ordinária e da formação de uma nova Constituição.
O Brasil deixara para trás uma ordem social de exceção, que submetia os direitos fundamentais da pessoa humana aos desmandos da consciência militar, acompanhada de perto sempre pela classe dominante, procurando, exaustivamente, manter seu poder de dominação, ainda que pela prática corriqueira do clientelismo político [5].
5.O CONTEXTO SOCIAL À ÉPOCA DA CONSTITUINTE DE 87-88
Desta feita, não é preciso um raciocínio muito apurado para constatar que a transição do modelo de exceção para uma democracia indireta seria, na medida do possível, de conformidade com a política do clientelismo político. A simples detenção, por parte da classe dominante, com presença marcante no Congresso Nacional, da competência constituinte originária, e as possibilidades que esta acarretaria com relação ao futuro do país asseguravam tal predisposição, conforme relato dado por Maria Victoria Benevides, em debate realizado em fins de 1985:
Quando participei de um debate em Brasília com a comissão mista do Congresso Nacional, isso foi lembrado por vários deles: o que vocês estão defendendo [a criação de uma Assembléia Constituinte, desvinculada e voltada para seu fim principal] é muito bonito, é uma proposta é muito generosa, mas a tradição é muito forte no Brasil, então nós temos de manter o Senado como ele é, não podemos mexer na composição proporcional da Câmara dos Deputados, na propriedade da terra, etc. (BENEVIDES; COMPARATO et al, 1986, pg. 86). (colchetes acrescidos).
A narrativa acima demonstra muito bem o quão vinculado estava o "Congresso Constituinte" de 1987. É importante lembrar que a proposta para tal desenrolar histórico da formação da Constituição de 1988 é de autoria de José Sarney, Presidente da República até então, e principal expoente do partido que dava base à ditadura militar no Congresso.
Vê-se, então, que a Lei Maior brasileira de 1988 nasceu extremamente vinculada à antiga ordem, não estritamente jurídica, mas também socialmente, já que não representou, como se esperava, um marco revolucionário, capaz de justificar os momentos a ela posteriores como integrantes de uma "Nova República". Atendeu, em grande parte, a interesses superiores quando da usurpação da competência constituinte originária pelo Congresso Nacional, eleito para funções legislativas:
"Essas mesmas pessoas consideram, no entanto, que nossa proposta de Constituinte livre e soberana, portanto, convocada exclusivamente para essa finalidade, é uma proposta radical, inviolável, formalista e até mesmo autoritária." (BENEVIDES; COMPARATO,1986, p. 83)
Não obstante não haver sido consagrado o ideal das Assembléias Constituintes, originárias e voltadas para sua finalidade única, com real participação popular ¾ referendos voltados para a solução de questões controversas quando da elaboração de seus enunciados normativos e posterior ratificação do texto integral ¾ , alguns valores, talvez impostos pela sociedade global contemporânea, que clama pelos ditames de justiça social em seus textos constitucionais, houveram por remanescer nesse entremeado de interesses. A própria propriedade privada, dogma maior da sociedade capitalista de dominação de classes, ganhou ares sociais, a família recebeu guarita especial, além dos direitos fundamentais presentes na Carta Magna, entre os quais a moradia, a saúde e a educação. Tais ditames claramente não se encontram plenos em eficácia jurídica, no entanto, são contribuições axiológicas importantíssimas trazidas ao texto constitucional de 1987-88.
Por outro lado, resquícios da "tradição [6]" invocada por alguns parlamentares no precioso relato da ilustre socióloga acima comentado ainda estão presentes no mais acurado diploma político-legal brasileiro. Vestígios de interesses dominantes que, em um momento importante da história brasileira, usurparam, do ponto de vista sócio-legal, a legitimidade constitucional, que emana do povo. Marcelo Cerqueira cita, inclusive, um exemplo de tais resquícios, que é a manutenção, no texto constitucional, do instituto das "medidas provisórias", mesmo com a mal lograda tentativa de instauração de um sistema parlamentar de governo, e o faz corroborando a tese aqui já exposta:
Embora funcione como um parlamento, uma Assembléia Constituinte dele se diferencia porque é um poder acima dos poderes (über alles); deve ser um momento de ruptura em que um modelo se esgota completamente e um modelo novo luta por se afirmar. Já um Congresso Constituinte, limitado por sua própria natureza, mal se diferenciava dos demais poderes, que funcionavam (e influenciavam) normalmente (Executivo, Legislativo e Judiciário). (CERQUEIRA et al, 2001, p. 122)
6.QUESTÕES CONTROVERTIDAS POSTAS À MARGEM DO ÚLTIMO MOMENTO CONSTITUINTE BRASILEIRO
Ainda, com relação a tais resquícios, podemos enxergar alguns dispositivos constitucionais de uma maneira diversa da que estamos acostumados, dado o processo constituinte anômalo que os concebeu. Alguns institutos, até hoje vigentes, eram contestados já em meados da década de 80, e ainda são suscetíveis de reforma.
Como se infere do comentário primeiro de Maria Victoria Benevides [7], o sistema bicameral brasileiro tornar-se-ia, imutável, quando da convocação de um "Congresso Constituinte". É óbvia tal constatação, haja vista os mesmos deputados e senadores que o integravam seriam os futuros constituintes ¾ as diretrizes normativas de toda a Nova República, inclusive as dos seus três poderes, "independentes e harmônicos entre si", estariam vinculados ao arbítrio do poder Legislativo ¾ , uma conseqüência, no mínimo ilógica, tanto do ponto de vista social como do valorativo. O Senado atual, como instituição parlamentar republicana, representativa dos estados federados, foi uma criação norte-americana, que já nasceu viciada ¾ foi fruto da influência econômica dos pequenos estados americanos, agro-escravocratas, que temiam perder seu poderio diante do sistema representativo popular ¾ , foi introduzido no Brasil à época do Império, e representa um dos poucos vestígios da administração monárquica brasileira, reformado ¾ em parte [8] ¾ pela Constituição de 1891. Desta forma, há de se convir que seria natural que uma nova democracia brasileira, que rompesse com os institutos oligárquicos e "tradicionais" das velhas repúblicas, ao menos indagasse da contribuição do sistema bicameral para a nação, se o mesmo é imprescindível ou não para a manutenção da ordem democrática de Direito.
Outrossim, no que tange à organização e manutenção do Poder Judiciário, pode-se observar um exemplo correlato ao do bicameralismo na Constituição de 88. A manutenção de um Justiça Federal sempre foi uma forma de centralizar a ação do Poder Judiciário, subjugando-o aos interesses do governo federal, utilizada à época República dos Coronéis, durante a qual a mesma era instrumento precioso na luta contra as oligarquias estaduais, e retomada pela ditadura militar. Não obstante, e apesar da tendência descentralizadora a ser tomada pela Nova República, a Justiça Federal foi mantida e até ampliada, ganhando ainda mais importância. Contempla a nossa tese Reis Friede, em comentário marcante:
"Curioso notar que, muito embora a Justiça Federal tenha sido recriada em 1966 [...] por força do movimento político de 1964, ¾ que procurou, desta feita, esvaziar a competência jurisdicional da justiça local ¾ , a Carta de 1988, ao contrário do que se poderia esperar, não só manteve a estrutura básica dessa justiça nacional (não obstante alguns projetos legislativos que preconizavam a sua simples extinção), como ainda a fortaleceu, ampliando sobremaneira a sua anterior estrutura (com a criação, por exemplo, dos cinco Tribunais Regionais Federais para o exercício jurisdicional da anterior competência outorgada ao extinto Tribunal Federal de Recursos), e chegando até mesmo a impor um processo de federalização, ainda que parcial, da própria justiça local (estadual e distrital) com o advento do STJ, na qualidade de inconteste tribunal federal e, neste aspecto, órgão de cúpula da Justiça Federal, mas também da Justiça Estadual (e distrital). (FRIEDE, 2002, p. 255; sublinhados acrescidos).
Outro ponto importante da Carta Magna de 1988 a ser analisado por um ângulo diferente é a dependência continuada do Poder Judiciário, através da nomeação presidencial dos ministros de tribunais superiores ¾ na sua totalidade, caso do Supremo Tribunal Federal, ou parcialmente, como os demais tribunais superiores. Assim como o instituto do bicameralismo, a nomeação presidencial dos chefes do Poder Judiciário também é uma herança do presidencialismo norte-americano, que, no entanto, foi implantado em um contexto bastante diverso do daquele. No contexto social brasileiro da época da Constituinte se buscava uma maior independência dos poderes, principalmente da experiência vivida pelo executivo durante o regime ditatorial-militar.
É notória a gradação estabelecida pela Constituinte de 87, e neste ponto podemos configurá-la: quanto maior a influência na Constituinte, maior a delegação de poderes constituídos àquela classe administrativa. Assim, elaborou a mesma uma Constituição "rígida", mas estabelecida por Congressistas e por eles reformada no prazo de cinco anos, além de uma dependência de regulamentação legal de tamanha monta de seus dispositivos que praticamente os inutilizou; implantou um sistema presidencialista, com o instituto das medidas provisórias, e segundo o qual a cúpula judiciária é nomeada pelo Presidente da República. A partir desse esboço, temos as vantagens adquiridas pelos poderes Executivo e Legislativo frente ao Judiciário, absolutamente dependente, face a tais disposições. Restou aos magistrados, do jogo político gradual da Constituinte de 87, os seus vencimentos irredutíveis, além de outras garantias. Como diria Sieyès, foi feita a Constituinte dos "duzentos mil", e não a dos "vinte milhões" (SIEYÈS, Emmanuel J.; apud GRAU, 1985)".
Por fim, ressalte-se a influência exercida pelo momento histórico brasileiro do "Congresso Constituinte" na doutrina constitucionalista, mormente na questão das normas programáticas. A classificação de algumas normas, de grande importância para a implantação do Estado Social de Direito ¾ um dos fins principais atribuídos pela Lei Maior à República Federativa do Brasil, conforme artigo 1º, incisos III e IV e artigo 3º, incisos I e IV, todos do texto constitucional ¾ , como normas programáticas, confere a estas, no dizer de Eros Roberto Grau, o caráter de "direitos que não são juridicamente garantidos" (GRAU, 1985, pg. 44). Contudo, tal classificação não é aceita pela totalidade da doutrina constitucionalista atual, a qual assumiu grande importância no sentido de reverter tal posicionamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em verdade, a superioridade da dimensão axiológica do texto constitucional vigente estranha à primeira vista, por ser totalmente desconexa com a realidade da qual emanou. Desta forma é que o aspecto valorativo, em destaque no que se refere aos princípios estabelecidos nos primeiros artigos do texto constitucional, superou o atraso social e jurídico que representou aquela Constituinte.
A evolução hermenêutica que se deu no campo constitucional mostra o grau de importância assumido pelo valor no Direito, que, no caso brasileiro, serviu como instrumento, mormente em relação aos princípios, para iniciar a transformação de uma Constituição vinculada a interesses de uma classe dominante minoritária em base jurídica para a instauração de um Estado Social de Direito.
NOTAS
01. Principal articulador em Minas Gerais do golpe que colocou Getúlio Vargas no poder, Antônio Carlos foi o líder da Aliança Liberal ¾ que tinha como candidatos o gaúcho Getúlio Vargas para presidente e o paraibano João Pessoa, para vice ¾ , derrotada nas eleições de 1929 pelo partido republicano de Júlio Prestes, o que provocou a ruptura da famosa política do "café-com-leite" da Velha República. (SILVA, 1997, p. 240).
02. Preferimos a posição tomada por José Afonso, no que se refere a esse conflito de denominações assumido pela doutrina. (SILVA, 1998, p. 67).
03. Cf. GARCIA. 1999, p.14.
04. Art. 3º, ADCT, CRFB: "A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral."
05. Cf. MARTINS, 1999.
06. Aqui é oportuna a lição dada por Karl Marx, em O 18 Brumário: "A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, (...), conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de se apresentarem nessa linguagem emprestada." (MARX, Karl; apud CERQUEIRA et al, 2001, p. 130)
07. Cf. citação à página 5.
08. Aliás, tal aspecto é do feitio das "revoluções" brasileiras (vide citação em epígrafe), como demonstra a excelente obra de José Martins de Souza.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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BRASIL. Constituição (2002). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988: atualizada até a Emenda Constitucional nº 35, de 20-12-2001. Brasília: Senado Federal, 2002.
CERQUEIRA, Marcello et al. Debate sobre a Constituição de 1988. Org. Demian Fiocca e Eros Roberto Grau. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
COMPARATO, Fábio; BENEVIDES, Maria Victoria et al. Constituinte, economia e política da Nova República. Org. Paulo Sandroni. São Paulo: Cortez: EDUC, 1986.
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FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Constituinte: assembléia, processo, poder. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.
FRIEDE, Reis. Curso Analítico de Direito Constitucional e de Teoria Geral do Estado. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
GARCÍA, Pedro de Vega. Prólogo. In: Constitución Española. 4 ed. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1999.
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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2002.
SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil: Colônia, Império, República. São Paulo: Moderna, 1997.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15 ed. rev. São Paulo: Malheiros editores, 1998.