2. A PENALIZAÇÃO DA MULHER AUTORA DO CRIME DE ESTUPRO: POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DAS CAUSAS DE AUMENTO DE PENA E A (IM)POSSIBILIDADE DO ABORTO SENTIMENTAL
Neste capítulo será estudado a penalização da mulher autora do crime de estupro, a possibilidade de aplicação das causas de aumento de pena e será retratada a (im)possibilidade da mulher autora do crime de estupro fazer uso do permissivo legal elencado no artigo 128, inciso II do Código Penal, no caso de engravidar do homem-vítima, bem como a (im)possibilidade de imposição à mulher autora do estupro da prática do aborto sentimental. Neste capítulo também será exposto casos que servirão de exemplo para o referido tema, fazendo-se um comparativo da situação com a legislação pátria e dando resposta ao problema.
2.1 – A penalização da mulher autora do crime de estupro
Após a explanação inicial acerca da nova possibilidade de figuração no polo ativo do crime de estupro, parece inquestionável a possibilidade da mulher figurar como autora do referido crime, seja através da prática da conjunção carnal forçada, mediante violência ou grave ameaça, seja pela prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal (coito anal, sexo oral, etc.).
Foi justamente por esse motivo que a Lei 12015 alterou o texto legal previsto no CP, pois, à luz do princípio constitucional da isonomia48, não era cabível que houvesse a distinção legal até então existente, deixando de resguardar a liberdade e a dignidade sexual do homem.
Feito isso, é necessário debater acerca da penalização da mulher que comete este tipo de crime, visto que antes da entrada em vigor da Lei nº 1.2015/09, não era possível ter uma mulher figurando como autora em um crime de estupro.
A referida lei realizou modificação no Código Penal também no que tange as penas impostas aos autores do crime de estupro, além de inserir duas causas de aumento de pena, sendo que uma diz respeito a gravidez resultante do estupro e a outra diz respeito a transmissão de doença sexualmente transmissível que sabe ou deveria saber ser portador, conforme será tratado mais à frente. E nesse ponto, surge o principal aspecto a ser estudado neste trabalho, o que será feito mais adiante.
A anterior redação do Código Penal previa as seguintes penas para o homem que cometesse os crimes elencados no rol dos crimes contra os costumes:
1) Art. 213: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos;
2) Art. 214: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos49.
Além das citadas penas, o Código Penal elencava no art. 223 quais eram as formas consideradas qualificadas e as suas respectivas penas:
pena de reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos se da violência resultasse lesão corporal de natureza grave;
pena de reclusão, de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos, se do fato resultasse a morte.
Ademais, previa a incidência de causas de aumento de pena, em seu artigo 226, incisos I e II, nos seguintes parâmetros:
da quarta parte, se o crime fosse cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas;
da metade, se o agente fosse ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela50.
Com o advento da Lei nº 12.015, o crime de estupro teve somado ao seu texto as elementares caracterizadoras do crime de atentado violento ao pudor51, ou seja, houve uma unificação conceitual do crime de estupro e do crime de atentado violento ao pudor.
Enfim, o atual crime de estupro compreende, além do estupro propriamente dito, o antigo atentado violento ao pudor, razão pela qual é evidente que o art. 214 acabou por ser revogado, expressamente (...). É que o legislador fundiu, num só tipo, os antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor. Apesar de revogado o art. 214, não houve abolição do crime de atentado violento ao pudor, que agora passa a fazer parte do crime de estupro. Não há cuidar, pois, de abolitio criminis, mas de simples mudança do nomen juris da infração, como convinha, aliás, visto que realmente não fazia sentido a velha distinção entre estupro e atentado violento ao pudor52.
As penas anteriormente previstas continuaram as mesmas, tanto para o estupro cometido com a incidência da conjunção carnal, como para o estupro cometido sob a utilização dos chamados atos libidinosos.
Dessa forma, ainda que exista a incidência das duas elementares do tipo, ou seja, o estupro tenha sido cometido mediante a conjunção carnal e ainda, mediante outros atos libidinosos, entende a doutrina majoritária que, para benefício do réu, este comete um único delito, devendo o juiz levar em conta este fato no momento da cominação da pena, porém não mais será considerado como concurso de crimes.
Hoje, após a referida modificação, nessa hipótese, a lei veio a beneficiar o agente, razão pela qual se, durante a prática violenta do ato sexual, o agente, além da penetração vaginal, vier a também fazer sexo anal com a vítima, os fatos deverão ser entendidos como crime único, haja vista que os comportamentos se encontram previstos na mesma figura típica, devendo ser entendida a infração penal como de ação múltipla (tipo misto alternativo), aplicando-se somente a pena cominada no art. 213 do Código Penal, por uma única vez, afastando, dessa forma, o concurso de crimes53.
Vale salientar nesse momento que, antes da entrada em vigor da Lei 12.015/09, o homem que cometesse o crime de estupro e também praticasse com a mesma vítima outro ato libidinoso, diverso da conjunção carnal, responderia pelos dois crimes em concurso material. Consequentemente, teria as penas calculadas e somadas ao final, obtendo a pena total.
Com o advento da referida lei, ocorreu a revogação do artigo 214 do Código Penal e o crime de atentado violento ao pudor foi incorporado ao crime de estupro, havendo, assim, uma verdadeira fusão jurídica. Com isso, o crime de estupro passou a ser um crime que pode ser realizado com mais de uma conduta do agente.
Há entendimento no sentido de que as condutas, quando distintas, implicam a configuração de diversas condutas criminosas, sendo conceituado o crime de estupro como um tipo penal misto acumulado, conforme prelecionou a 5ª turma do Superior tribunal de Justiça em julgado de HC:
[...] a realização de diversos atos de penetração distintos da conjunção carnal implica o reconhecimento de diversas condutas delitivas, não havendo que se falar na existência de crime único, haja vista que cada ato - seja conjunção carnal ou outra forma de penetração - esgota, de per se, a forma mais reprovável da incriminação54.
Porém, existem situações em que, mesmo com o cometimento da conjunção carnal e de atos libidinosos, o crime será considerado único, não havendo que se falar em concurso de crimes. Nesses casos, a pena do crime será somente a referente ao estupro, visto da sua unificação com o atentado violento ao pudor, sendo que a sua pena, por óbvio deve ser maior, em relação as condutas diversas praticadas, configurando assim, um tipo penal misto alternativo. Nesse mesmo sentido menciona o doutrinador Guilherme de Souza Nucci:
Se o agente constranger a vítima a com ele manter conjunção carnal e cópula anal comete um único delito de estupro, pois a figura típica passa a ser mista alternativa. Somente se cuidará de crime continuado se o agente cometer, novamente, em outro cenário, ainda que contra a mesma vítima, outro estupro. Naturalmente, deve o juiz ponderar, na fixação da pena, o número de atos sexuais violentos cometidos pelo agente contra a vítima. No caso supramencionado merece pena superior ao mínimo aquele que obriga a pessoa ofendida a manter conjunção carnal e cópula anal55.
Assim também entendeu a 6ª turma do mesmo STJ, quando julgou HC em favor de uma pessoa que cometeu o crime de estupro e atentado violento ao pudor (cometido na forma de coito anal). O crime aconteceu em meados 1999 e o réu foi sentenciado e condenado a pena de 8 (oito) anos e 8 (oito) meses de reclusão devendo ser cumprida inicialmente em regime fechado. Cada crime rendeu cominação de pena de forma isolada no montante de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses, porém com causa de diminuição da pena somada graças a semi-imputabilidade do agente.
Sobreveio recurso de Apelação no sentido de descaracterizar o concurso material, porém o Tribunal de Justiça do Distrito Federal negou provimento ao mesmo por maioria de votos, entendendo pela autonomia dos crimes e da configuração de consumação através de conduta diversas, quais fossem, cópula vagínica e coito anal. A parte recorreu através de embargos infringentes, porém, igualmente acabou por não obter o sucesso pretendido. O Habeas Corpus da parte foi direcionado ao Superior Tribunal de Justiça sendo distribuído à 6ª Turma do STJ. No mérito, a turma entendeu que deve ser aplicável ao caso concreto a lei penal mais benéfica, no sentido de descaracterizar o concurso de crimes, respondendo o autor pela prática de uma única figurava delitiva apenas e, consequentemente, tendo a sua pena diminuída por conta da alteração proporcionada pela Lei n.º 12.015 de 200956.
Embora exista divergência, tanto entre os doutrinadores, bem como entre a 5ª turma do STJ e a 6ª turma do mesmo STJ, a doutrina majoritária entende que se trata de tipo penal misto alternativo e consequentemente trata-se de lei penal benéfica. Mesmo praticado através de mais de uma conduta dentre as descritas no texto legal, configuram um único crime praticado pelo agente. Assim,
[...] quem pratica coito vaginal e coito anal, ambos descritos no mesmo tipo penal (art. 213 do CP), no mesmo contexto fático, contra a mesma vítima, afetando o mesmo bem jurídico, pratica crime único (não uma pluralidade de crimes) . Quem desfere vários golpes contra a mesma vítima, no mesmo contexto fático, comete um único crime de lesão corporal. A repetição dos atos será levada em consideração no momento da pena. Errou a Quinta Turma do STJ, com a devida vênia. Acertaram a Sexta Turma e o STF. A teoria do tipo misto cumulativo é muito mais complexa do que parece. Ela não serve de guarda-chuva para soluções formalistas ou inferências rápidas (e desproporcionais)57.
Esse também é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, demonstrado no julgamento de Recurso Extraordinário do ano de 2010, beneficiando o agente que cometeu estupro e atentado violento ao pudor dentro das mesmas circunstâncias de tempo, modo e local, entendendo pela possibilidade da continuidade delitiva58 e afastando de vez a hipótese de concurso material de crimes. Portanto, resta claro que o crime de estupro é considerado tipo penal misto alternativo, tendo as suas condutas consideradas um crime único. Do contrário, não teria sentido unificar em um único crime o que antes eram crimes autônomos e tinham penas impostas de forma individual quando cometidos na mesma circunstância de tempo, modo e espaço.
Percebe-se que o crime de estupro teve sua pena inalterada quando da hipótese de cometimento em sua forma simples. Porém, antes do advento da Lei nº 12.015, as qualificadoras do referido crime estavam elencadas em artigo próprio – no artigo 223 do Código Penal.
Ocorre que, a referida lei revogou o artigo 223 e inseriu as qualificadoras nos parágrafos 1º e 2º do artigo 213. A referida lei também alterou de forma significativa as expressões contidas nos parágrafos do artigo 213, de forma que estendeu seus efeitos para todo e qualquer comportamento do agente que, no intuito de estuprar a vítima, acabe por resultar em qualquer dos resultados previstos nas suas formas qualificadas, quais sejam: a lesão corporal de natureza grave e morte, além da qualificadora pela condição etária da vítima, quando está for menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (quatorze) anos59.
Portanto, as formas qualificadas do crime não estão mais condicionadas ao resultado agravado pela violência empregada para alcançar o cometimento do crime -, ou seja, se a violência não fosse decorrente do estupro propriamente dito ou do atentado violento ao pudor não poderia ser considerada como uma qualificadora do crime, visto que as expressões eram “se da violência resulta lesão grave e; se do fato resulta a morte60” - mas para qualquer conduta do agente que produza o resultado normatizado como qualificado, acabando com discussão que ocorria na leitura do texto revogado, e assim ensina Rogério Greco:
A Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, ao contrário do que ocorria com as qualificadoras previstas no revogado art. 223 do Código Penal, disse, claramente, que a lesão corporal de natureza grave, ou mesmo a morte da vítima, deve ter sido produzida em consequência da conduta do agente, vale dizer, do comportamento que era dirigido no sentido de praticar o estupro, evitando-se discussões desnecessárias. Assim, não importa, por exemplo, se o agente atuou com o emprego de violência ou grave ameaça, a fim de levar a efeito o estupro, se, dessa conduta, ou seja, se do seu constrangimento resultar lesão corporal grave ou mesmo a morte da vítima, deverá responder pelas qualificadoras. A título de raciocínio, imagine-se a hipótese em que o agente, querendo o estupro, ameace gravemente a vítima, mesmo sabendo de sua condição de pessoa portadora de problemas cardíacos. Ao ouvir a ameaça, e durante a prática do ato sexual, ou seja, após o início do coito vagínico, a vítima tem um infarto fulminante, vindo, consequentemente, a falecer. Nesse caso, o agente deverá responder pelo estupro qualificado pelo resultado morte. As lesões corporais de natureza leve, bem como as vias de fato, encontram-se absorvidas pelo constrangimento empregado para a prática do delito61.
Além disso, foi na qualificadora do resultado morte que houve um aumento considerável na pena normatizada. O que antes era previsto com pena de no mínimo 12 (doze) e no máximo 25 (vinte e cinco) anos, hoje conta com a pena máxima de 30 (trinta) anos.
Nas causas de aumento de pena, previstas no inciso III e IV do artigo 234-A, se deram as alterações mais significativa, no sentido de ter sido inserida uma figura nova, que se aplica a todos os crimes conta a dignidade sexual62.
As demais causas de aumento de pena, previstas no artigo 22663 permaneceram inalteradas, sendo que a alteração se deu somente na inserção do artigo 234-A.
Assim, verificam-se as possíveis penas que são impostas a qualquer agente autor do crime de estupro, seja homem ou mulher. Conforme preconiza a Carta Magna, somado ao fato da Lei nº 12.015 tornar homens e mulheres possíveis autores do crime de estupro, não há nenhum instituto jurídico que diferencie a cominação de pena para homens e mulheres. Ademais, a mulher autora do crime de estupro recebe a mesma pena que seria imposta ao homem.
Portanto, se a agente comete o crime na sua forma simples, a pena será estabelecida na sua cominação mínima, de 6 anos, ao passo que na cominação máxima a pena estabelecida será de 10 anos.
Da mesma forma, quando presente as condições que tornam o crime simples na sua forma considerada qualificada, as penas devem ser aplicadas com isonomia entre homens e mulheres, visto que possuem as mesmas condições fáticas de atingirem os resultados conceituados como qualificados.
Imagine-se a mulher que, desejando manter relações sexuais com um homem, aponta arma de fogo para a vítima e o ameaça afim de realizar a prática da conjunção carnal. Diante da negativa por parte do homem, atira, acerta o homem e acaba provocando lesão grave e mesmo assim consegue consumar o crime. Desse modo, acaba de incorrer na prática de estupro qualificado pelo resultado da lesão corporal grave. Ao passo que, se o homem vem a falecer, em decorrência de hemorragia por conta do ferimento a bala, ou mesmo que venha a sofrer um ataque cardíaco, a mulher incorrerá na prática do crime de estupro em sua forma qualificada pelo resultado morte, visto que não é mais exigido a violência apenas como gerador do resultado qualificado, podendo o resultado ser gerado até mesmo a partir da grave ameaça.
Por essas razões, não há que se falar em distinções de nenhuma espécie com relação as penas a serem cominadas no crime de estupro entre homens e mulheres pois, nem mesmo teria sentido a alteração trazida pela Lei nº 12.015/09, o que também estaria contrariando a Carta Magna nacional, que diz em seu texto legal que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações64 e proíbe qualquer distinção em razão do sexo.
Da mesma forma, as causas de aumento de pena devem ser aplicadas a ambos possíveis sujeitos ativos do delito. Exemplificando, é perfeitamente possível que duas mulheres, em concurso, atuem de forma a constranger um homem a realizar a prática da conjunção carnal com uma delas ou com ambas, ou que pratique qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal, ou até mesmo ambas ações. Para aqueles mais céticos, nesse exemplo encontra-se uma hipótese que tem a chance mais elevada de ocorrer, visto que é relativamente mais fácil compelir o homem contra a sua vontade a praticar a conjunção carnal ou ato libidinoso diverso, se estiver a mulher acompanhada de outra, e uma delas, por exemplo, estiver apontando uma arma para o homem e ameaçando-o verbalmente.
No mesmo sentido, é o que ocorre na hipótese do inciso II do artigo 226. É o que se pode observar através dos dados revelados em pesquisa publicada pelo IPEA, onde foi constatado que em torno de 70% dos casos, os estupros são praticados por namorados, pais, padrastos ou amigos, que se aproveitam do fator confiança que tem para com a vítima e acabam por cometerem o delito65.
Já nas causas de aumento de pena previstas no artigo 234-A do Código Penal, surge uma grande dúvida, mais precisamente na causa de aumento de pena elencada no inciso III do referido artigo66, pois existe agora a possibilidade da mulher, na figura de autora do crime de estupro, contrair a gestação.
A possibilidade de uma mulher aparecer no polo ativo do crime de estupro é praticamente incontroversa. Esse foi o sentido da alteração proposta pela Lei nº 12.015/09, visando a proteção da dignidade e liberdade sexual da mulher e estendendo a proteção ao homem, respeitando a proposição da Constituição Federal de 1988, qual seja, tratamento igual à mulheres e homens. Porém, quando a mulher autora do delito contrair gestação surge a discussão acerca da penalização que deve ser cominada para a agente autora.
Quando o autor do crime de estupro é homem, e este acaba por proporcionar, com a prática da conjunção carnal forçada, que a vítima contraia a gestação, recebe a cominação da pena e a mesma sofre um de aumento de pena. Assim, se o crime for cometido na sua forma simples, a pena, que varia de 6 a 10 anos pode ser aumentada pela metade.
A mulher vítima do estupro já sofria as consequências do crime praticamente pelo resto de sua vida, fossem as consequências físicas, fossem as consequências psicológicas. Ocorre que, além dessas consequências, ainda existe a possibilidade desta mulher contrair a gravidez e ter de carregar o fruto do ato criminoso durante toda a gestação em seu ventre.
Embora o aumento de pena não tenha o condão de desfazer a gestação da vítima, tem como objetivo punir com mais rigor um crime que já tem uma reprovabilidade social muito grande, mesmo dentro dos presídios.
Ao mesmo tempo, insta salientar que a vítima de estupro que contrair gravidez poderá fazer uso do benefício elencado no artigo 128, inciso II, do Código Penal67, que trata da possibilidade de aborto no caso de gravidez resultante de estupro, se assim for a sua vontade e, sendo incapaz, devendo o seu representante legal dar o consentimento.
Este assunto é pacífico no meio jurídico. Porém, diversas dúvidas surgem quando o autor do delito é uma mulher. Deve ela receber a cominação legal prevista para o crime de estupro com causa de aumento de pena devido a gestação resultante?
Quando a causa de aumento de pena por gravidez resultante do estupro é aplicada ao homem autor, é compreensível e até mesmo fácil de visualizar a sua fundamentação a partir das questões biológicas pertinentes a situação.
[...] no aborto sentimental, leva-se em consideração a inexigibilidade de que a mulher leve adiante uma gravidez e venha dar à luz a uma criança que foi concebida durante um ato de violência absurdo, o qual lhe acarreta sérios danos emocionais e psíquicos, muitas vezes bem maiores do que as próprias sequelas físicas relativas ao evento68.
Mesmo que a vítima faça uso do benefício do artigo 128, passará por um procedimento médico, em tese, proporcionado pelo autor do crime. Inúmeros são os problemas que a mulher poderá ter em consequência dessa gestação a contragosto, motivo pelo qual se mostra necessária, e até mesmo justa, a causa de aumento de pena ao homem que cometer o crime de estupro e desse resultar a gravidez da vítima.
2.2 A possibilidade de aplicação das causas de aumento de pena do artigo 234-A do Código Penal e a (im)possibilidade do aborto sentimental
É sabido que a Carta Magna de 1988 pôs homens e mulheres em pé de igualdade, em direitos e deveres69. A Lei nº 12.015 veio para amparar a dignidade sexual do homem, proporcionando a referida igualdade até mesmo em assuntos que digam respeito a crimes contra a dignidade sexual, parece ilógico que a mulher autora do crime de estupro que contraia a gestação não seja afetada pela causa de aumento de pena prevista no Artigo 234-A, inciso III, do Código Penal70.
Quando a mulher é vítima do crime de estupro e acaba por contrair a gestação, a causa de aumento de pena tem fundamento no desvalor do resultado proporcionado pela gestação71.
Analisando a condição de igualdade trazida pela Constituição Federal o mesmo deve ser feito quando em caso contrário. Se a mulher estupradora contrai a gestação, o desvalor do resultado para o homem revela-se bastante grave, visto que esse terá responsabilidades para com o futuro filho no que tange a alimentos, gastos com educação, saúde e até mesmo com a própria criação da criança72, já que existe a possibilidade da mãe não poder e até mesmo, não querer exercer suas responsabilidades frente ao nascituro. Portanto, mostra-se possível a aplicação da causa de aumento de pena quando a própria autora do crime de estupro contrair a gestação
Todavia, quando a vítima é o homem, o aumento de pena se justifica não pelas consequências da gravidez da mulher autora do crime, mas com referência ao homem vítima da conduta criminosa, isso porque, este, enquanto vítima, também poderá sofrer graves prejuízos com uma gravidez indesejada decorrente de um ato violento. Dentre os vários prejuízos que o homem poderá sofrer, podemos citar o aspecto financeiro/patrimonial, como os relacionados à sucessão hereditária, pensão alimentícia, gastos com a criação de um filho(a), etc73.
Outra questão que deve ser avaliada no caso concreto é a da afetividade, pois a probabilidade desta criança ser rejeitada pelo pai é altíssima, ante a ausência de vínculos afetivos que devem estar presentes nas relações familiares, criando uma situação de risco à criança, pois
[...] o papel dado à subjetividade e à afetividade tem sido crescente no Direito de Família, que não mais pode excluir de suas considerações a qualidade dos vínculos existentes entre os membros de uma família, de forma que possa buscar a necessária objetividade na subjetividade inerente às relações. Cada vez mais se dá importância ao afeto nas considerações das relações familiares; aliás, um outro princípio do Direito de Família é o da afetividade74.
O aspecto psicológico da criança advinda do ato criminoso também deve ser considerado no momento de aplicação da causa de aumento da pena, enquanto circunstância vinculada às consequências do crime. Isso porque, “a conduta ilícita da mulher também virá a atingir os interesses da futura criança, a qual certamente sofrerá danos psicológicos e afetivos pelo fato de saber-se originada de um ato criminoso e não de um relacionamento normal”75
Esse parece ser entendimento pacífico, no sentido de aplicação isonômica da cominação das penas, tanto às mulheres, quanto aos homens, não havendo de ser feita nenhuma distinção com relação ao sexo daquele que incorreu em ato criminoso.
Assim sendo, conclui-se que a causa de aumento de pena da gravidez pode e deve ser aplicada também nos casos em que a grávida não é vítima do crime de estupro, mas sua autora. O “desvalor do resultado” segue intensificado, ainda que por razões diversas, desta feita enfocando os interesses e sentimentos da vítima masculina da infração e da própria futura criança76.
Como já citado anteriormente, a aplicação de penas de forma igualitária entre homens e mulheres decorre do princípio da isonomia, previsto na Constituição Federal. Portanto, entende-se que é possível a aplicação de causa de aumento de pena para o crime de estupro praticado pela mulher quando a autora contrair a gestação.
Para a solução dessa situação deve o "desvalor do resultado" ser aferido não com relação às consequências advindas da prenhez para a mulher criminosa, mas sim com referência ao homem vitimado pela conduta. Nesse passo entende-se que resta incólume a motivação da exasperação penal em virtude do incremento do "desvalor do resultado". Isso porque o homem – vítima também sofrerá sérios prejuízos com o advento de uma gravidez indesejada originada de um coito violento. A situação pode atingir o homem vitimado sob o aspecto financeiro – patrimonial (problemas de sucessão hereditária, pensão alimentícia, gastos com a criação de um filho etc.) e também afetivo – emocional (dilema da convivência com a criança e a mãe criminosa; conflitos com a família do homem – vítima, relativos à sua esposa e outros filhos originários de relações legais etc.). Efetivamente a gravidez resultante do estupro praticado pela mulher contra o homem pode prejudicar muito este segundo e até mesmo, em certos casos, constituir um dos fins da prática delituosa. Imagine-se uma mulher que coage um homem muito rico ao coito, visando exatamente a gravidez para locupletar-se com a maternidade de um herdeiro abastado e os recursos de uma robusta pensão alimentícia. E se assim não for, mesmo que a gravidez se constitua em algo indesejado para a criminosa, isso não exclui sua responsabilidade pela conduta e seus resultados na medida em que atingem mais intensamente o varão – vítima sob variados aspectos, conforme acima consignado. Aliás, não se deve olvidar que a conduta ilícita da mulher também virá a atingir os interesses da futura criança, a qual certamente sofrerá danos psicológicos e afetivos pelo fato de saber-se originada de um ato criminoso e não de um relacionamento normal. Todos esses fatores não podem deixar de ser contabilizados no incremento do "desvalor do resultado" a indicar a justiça de uma exasperação punitiva dirigida à mulher infratora77.
Feitas essas considerações, passa-se à análise da problemática maior abordada pelo presente trabalho, que consiste na redação ofertada pelo Código Penal em seu artigo 128, inciso II78, vale dizer, a possibilidade do aborto nos casos em que houve estupro tendo como vítima o homem.
Caso pouco comum que pode ser trazido para esse trabalho a título comparativo ocorreu em Minas Gerais, no ano de 1994. Um menino de 11 anos acabou sendo seduzido pela professora de educação física do seu colégio. Relacionaram-se sexualmente e a professora, casada na época, acabou engravidando. Mesmo sabendo que o filho que esperava era do menino, a professora registrou-o em nome do então marido79.
No caso citado, o crime em questão, trazido para a atual realizada não seria o de estupro propriamente dito, sendo caracterizado como estupro de vulnerável, descrito no artigo 217-A do Código Penal80, porém demonstra de maneira prática uma das hipóteses descritas nesse trabalho, qual seja, a gravidez resultante do estupro praticado pela mulher, mesmo que no caso o estupro tenha sido de vulnerável.
Com o advento da Lei nº 12.015, a hipótese da mulher estupradora que tenha contraído a gestação fazer jus ao disposto no texto do referido artigo poderá ser suscitada? Poderia o homem, vítima do estupro, exigir a prática do aborto com base no mesmo artigo?
Os dois questionamentos merecem uma resposta negativa. Quando o texto do artigo 128 foi elaborado pelo legislador, evidentemente que o contexto social Brasileiro era outro.
Deve-se anotar, de início, que o art. 128, II, do CP (aborto terapêutico), exige a autorização da gestante ou de seu representante legal, se incapaz, como condição para o aborto não ser punido, quando a gravidez resulta de estupro (abrangendo o atentado violento ao pudor). A gestante está colocada aqui, obviamente, na condição de vítima, não de autora da infração penal, até porque, quando da edição do Código, estupro e atentado violento ao pudor configuravam crimes autônomos, não sendo possível a mulher figurar como estupradora81.
A vítima do crime de estupro somente poderia ser uma mulher e a hipótese de um homem figurar no polo passivo do crime não era nem sequer imaginada, pois “até o momento se está tratando de casos em que a vítima do estupro engravida e pode, induvidosamente, valer-se da autorização legal para a prática do aborto sentimental82 (grifo nosso)”.
Nesse sentido, percebe-se claramente que a proteção legal não era destinada a mulher autora do crime de estupro, mas a mulher vítima do referido crime.
A razão de ser do aborto sentimental é o reconhecimento pelo legislador do conflito e do sofrimento psíquico da vítima de estupro, daquela que necessitará buscar forças sobre — humanas para vencer a dor de conviver com terríveis lembranças durante a gestação e inclusive após o parto, por toda sua convivência com o filho advindo de uma relação sexual traumática83.
No sentido da autonomia dos crimes é que leciona o ilustre Doutrinador Damásio de Jesus, explicando de forma clara o motivo de não ser possível a mulher fazer jus ao benefício do permissivo legal proporcionado pelo artigo 128 do Código Penal, aduzindo que a mulher não poderia figurar como estupradora pela impossibilidade de ser o sujeito ativo do crime de estupro, apenas do crime de atentado violento ao pudor.
A gestante está colocada aqui, obviamente, na condição de vítima, não de autora da infração penal, até porque, quando da edição do Código, estupro e atentado violento ao pudor configuravam crimes autônomos, não sendo possível a mulher figurar como estupradora84.
Somado a isso, a legislação proíbe expressamente a prática do aborto, sendo considerado crime a sua realização. Se ao tempo de edição da lei a mulher só poderia figurar como vítima do crime de estupro, sua autora não está amparada por esse permissivo legal. Sua prática configuraria o crime previsto no artigo 124 do Código Penal85, já que nesse aspecto o direito penal Brasileiro adota um “sistema proibitivo relativo”, bastante rigoroso, permitindo a sua realização apenas em duas situações, quais sejam, “quando a prática for a única forma de salvar a vida da gestante, ou, justamente o que está sendo tratado neste trabalho, quando a gravidez for resultante do crime de estupro86”.
[...] o aborto poderá ser penalizado quando estiver tutelando o direito à vida; devendo, porém, em virtude da relatividade dos direitos fundamentais, ser despenalizado quando houver grave risco para a vida da gestante (aborto necessário), quando atentar contra a liberdade sexual da mulher (aborto sentimental)87.
Nem mesmo razões éticas poderiam ser levantadas para proporcionar a gestante a prática do aborto, já que o resultado da prática criminosa foi causado pela própria autora. Permitindo-se a prática do aborto sentimental pela autora do crime de estupro estar-se-ia criando a hipótese da geração de um direito com base em um ato ilícito88, praticado pela própria beneficiária do direito a ser criado.
Já com relação à hipótese de imposição da prática do aborto sentimental à autora, pelo homem vítima, merece igualmente resposta negativa. É preciso deixar muito claro que essa situação é extremamente adversa daquela suscitada pelo artigo 128, inciso II, em todos os seus aspectos.
Inicialmente, frisa-se que o permissivo previsto no referido artigo requer o consentimento da gestante e, quando incapaz, o consentimento do seu responsável. Portanto, mesmo que a mulher vítima do crime de estupro possa fazer uso do benefício legalmente proporcionado, é necessário que esta almeje fazer uso do referido benefício, pois se não desejar, terá sua gravidez assegurada.
Além disso, deve-se lembrar o fato de que a lei brasileira prima pela proteção da vida humana intrauterina, conformando-se a um modelo proibitivo que somente cede excepcionalmente em casos extremos e mesmo assim jamais impõe como obrigatória a prática do abortamento sentimental. Optando a gestante por levar adiante a gravidez, interesses outros, ainda que relevantes, não têm, nem podem ter o condão de se sobreporem à preservação da vida humana89.
Se a mulher enquanto vítima, não é compelida a praticar o aborto, parece ilógico e contraditório que a autora do crime de estupro - aquela que desejou o ato sexual a ponto de impor mediante grave ameaça ou violência, a realização forçada da relação sexual ao homem-vítima – fosse compelida, por imposição da vítima a interromper a gestação com base no permissivo legal.
Além de ferir o princípio da intranscendência da pena, transferindo a penalização resultante do ato criminoso ao feto, estar-se-ia penalizando a mulher autora do crime com uma pena que não está normatizada em nosso ordenamento jurídico.
E não é somente sob o prisma ético que tal solução se impõe, encontrando eco na legislação. Princípios básicos do Direito Penal como os da legalidade e da intranscendência estão a indicar o reto caminho da negativa da imposição do aborto à gestante criminosa. A legalidade impede tal imposição por ausência de semelhante previsão legal. Não há “pena de aborto” prevista para a mulher estupradora que engravida o que inviabiliza sua eventual aplicação. Para além disso, tal pena seria inviável de ser mesmo prevista, considerando o Princípio da Intranscendência, o qual não permite que a pena passe da pessoa do infrator para atingir diretamente terceiros inocentes. Ora, o aborto sentimental imposto seria um odioso exemplo de transcendência da lei penal, atingindo um terceiro cuja inocência chega ao grau mais elevado imaginável90.
Ademais, é preciso ressaltar que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil91. Dentro disso, não existe lugar para qualquer ato degradante e desumano, o que seria cometido se fosse permitido a imposição do aborto à mulher criminosa como forma de compensação pelo crime cometido, como forma de punição ou simplesmente pela vontade do autor, a fim de eximir-se da responsabilidade advinda da paternidade.
Por mais que o desvalor do resultado sofrido pelo homem tenha caráter suficiente danoso, a ponto de ser possível a aplicação da causa de aumento de pena em caso de gravidez resultante de estupro, jamais poderia ensejar a aplicação da vontade do homem-vítima sobre a mulher, mesmo que criminosa, pois estar-se-ia atentando contra princípios constitucionais que garantem à mulher autora do delito a sua integridade, física e moral além de afronta aos direitos do próprio nascituro, resguardados pelo Código Civil.
Ressalvar os direitos do nascituro, ‘desde a concepção’, como hoje assegurando, é permuta ampla, que deve ser preservada acima de divergências doutrinárias. Num fim de século em que se realça a amplitude dos direitos humanos, bem como a necessidade de defendê-los com energia, suprimir a cláusula “desde a concepção” suscitaria estranheza92
E isso ocorre por que, conforme relatado anteriormente, as situações, embora pareçam manter alguma semelhança, em verdade são extremamente distintas. Quando a mulher é vítima do crime de estupro e contrai a gestação, além de ter sofrido o ato criminoso de conduta social altamente reprovável e altamente estigmatizador, poderá ter de carregar em seu ventre o fruto advindo desse mesmo ato, além de ter de manter a provável convivência por toda a sua vida com a pessoa advinda dessa gestação e exercer as responsabilidades inerentes a condição de mãe.
Já no aborto sentimental, leva-se em consideração a inexigibilidade de que a mulher leve adiante uma gravidez e venha dar à luz a uma criança que foi concebida durante um ato de violência absurdo, o qual lhe acarreta sérios danos emocionais e psíquicos, muitas vezes bem maiores do que as próprias sequelas físicas relativas ao evento93.
Por isso, o desvalor do resultado da gestação resultante de estupro quando a mulher é vítima do referido crime fez com que o legislador entendesse necessário conceder a essa vítima-gestante a opção de prosseguir ou não com a gestação, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana e da proibição de tratamentos desumanos ou degradantes94, elencados na Constituição Federal.
Já quando a mulher é autora do crime de estupro, o desvalor do resultado ao homem vítima não é considerado motivo suficiente para ensejar a imposição da prática do aborto sentimental contra a gestante, visto que, aqui existe um duelo entre o princípio da autonomia da vontade do homem e o princípio do direito a vida. Embora o homem-vítima também poderá ter de conviver com a criança, fruto do ato criminoso, e arcar com as responsabilidades inerentes a paternidade, o processo gestacional, nos seus aspectos biológicos será todo suportado pela mulher.
Essas razões demonstram-se suficientes para não permitir que a mulher fizesse uso do benefício do aborto sentimental a fim de eximir-se da responsabilidade da gestação e, consequentemente, da criação do nascituro, já que esta é quem deu causa a própria gravidez.
Da mesma forma parece para ser vedada a imposição da prática do aborto sentimental contra a gestante, pois o ordenamento jurídico brasileiro não abre espaço para atos que venham a ferir os princípios estabelecidos pela Constituição Federal.
O princípio da legalidade também estaria sendo afrontado, pois norteia as verificações das condutas cometidas e as prováveis sanções aplicadas quando há afronta a dispositivo legal. Portanto, mesmo que a mulher estupradora venha a engravidar, não poderá ser-lhe imposto que interrompa a gestação através da prática do aborto sentimental.
Entender diferente disso incorreria na aplicação de pena não reconhecida pelo ordenamento jurídico além de ser considerado tratamento desumano e degradante, atentaria igualmente contra a proteção legal ofertada ao próprio nascituro, que tem seus direitos garantidos desde a sua concepção.
Os direitos do nascituro, assim como os da mulher, têm base nos direitos humanos e no princípio da dignidade da pessoa humana. O direito penal é considerado a “ultima ratio” 95, não devendo ser aplicado em favor do Estado, mas como forma de solucionar o conflito quando nenhum outro ramo do direito assim o fez. Ao mesmo tempo, por ser a última, ou mesmo a única alternativa, deve ser utilizado com observância aos princípios garantidores da dignidade da pessoa humana, princípios éticos de forma a tentar adequar a norma penal a situação fática.
O sistema de proteção aos bens jurídicos a que se propõe o Direito Penal não é ilimitado, eis que sua intervenção somente está legitimada quando os demais ramos ou setores do direito se mostrem incapazes ou ineficientes para a proteção ou controle social. O caráter fragmentário do Direito Penal, bem como sua natureza subsidiária são, assim, bastante conhecidos e são diversos autores que manifestam ser esse ramo do direito legitimado a intervir somente quando fracassam os outros modos de proteção a bens jurídicos tutelados. A Constituição Federal Brasileira em seu artigo 1º, inciso III estabelece como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana. Além disso, também preleciona serem invioláveis os direitos à liberdade, à vida, à igualdade, à segurança e a propriedade, assim manifestando seu artigo 5º.
Em face desses postulados, é possível refletir que a limitação a esses direitos ou garantias constitucionais somente se justifica quando houver ofensa ou ameaça de tal ordem que a intervenção do Direito Penal e a aplicação da sua consequência jurídica – a pena criminal – sejam estritamente necessárias. [...] Assim por força deste princípio, num sistema normativo-punitivo – como é o Direito Penal - a criminalização de comportamentos só deve ocorrer quando se constituir meio necessário à proteção de bens jurídicos ou à defesa de interesses juridicamente indispensáveis à coexistência harmônica e pacífica da sociedade. Não pode o Direito Penal servir de instrumento único de controle social, sob pena de banalizar-se a sua atuação que deve ser subsidiária, último remédio, última alternativa, a ‘ultima ratio’96.
Dessa forma, mostra-se injustificável aplicar a mulher, mesmo que considerada uma criminosa, imposição diversa das constantes em nosso ordenamento jurídico, assim como desproteger o nascituro afim de proporcionar ao homem-vítima a garantia de eximir-se das responsabilidades inerentes a paternidade.
Como forma de visualizar a possibilidade fática sobre o tema estudado, traz-se, a título comparativo e exemplificativo, sentença americana que condenou uma mulher autora do crime de estupro.
A mulher de 28 anos, mãe de três filhos, foi considerada culpada e terá de cumprir pena durante 9 meses em regime fechado.
Chantae Marie Gilman já tinha antecedentes por crimes de cunho sexual, e seu advogado não conseguiu reverter o valor inicialmente fixado para a sua fiança que foi de $100,000 Dólares, equivalente a R$ 400.000,00 reais. O caso aconteceu em junho de 2013 e a acusada foi sentenciada em maio deste ano97.
Portanto, através da análise doutrinária e da jurisprudência nacional e internacional estuada no presente trabalho, mostra-se plenamente possível a autoria de mulher no crime de estupro, porém não é permitido que a mesma se utilize do permissivo legal do Código Penal no sentido de realizar o aborto sentimental e eximir-se da responsabilidade com o nascituro.
Tampouco há que se falar em compelir a mulher autora do crime a praticar o aborto sentimental por imposição do homem-vítima, visto que o sistema penal Brasileiro não possui essa pena elencada naquelas descritas, não permite o tratamento desumano e degradante, e ainda, no embate entre a autonomia da vontade da vítima e o direito à vida, este último deve prevalecer.